A de Nuno Pacheco, como, de resto, se pensava. Que nunca “a voz” lhe
doa, todavia, bem o desejamos, embora sem esperança…
Com um coronavírus a desvitalizar-nos mais ainda, excepto no
arranjinho, pouco se pode esperar de equilíbrio e racionalidade, ou mesmo só de vergonha na cara.
OPINIÃO
Façam à língua o mesmo que ao euro:
igual na face, mas reversos diferentes
O único acordo admissível é reconhecer
as variantes nacionais e fixá-las como partes de um corpo comum, o da língua
portuguesa.
NUNO PACHECO
PÚBLICO, 14 de
Maio de 2020
Como
pedra lançada num lago, o Dia
da Língua não cessa
de produzir ondulações. Há dias,
chegou-nos a mensagem que, a tal propósito, difundiu o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo.
Disse ele: “A experiência
humana não se narra num idioma global asséptico, invertebrado. Narra-se nas
línguas específicas. Em cada qual a humanidade se articula em formas
diferentes. Em cada língua há coisas que somente nela se podem dizer.” Pois. Já
o primeiro-ministro português, António Costa, dissera à agência Lusa:
“O português tem uma característica
importante, tem-se sabido adaptar a diferentes territórios onde tem evoluído.
[…] Hoje é uma língua que pertence a muito mais pessoas no Mundo do que só a
nós portugueses e isso traduz-se em formas diversas de escrever.”
Impossível não pensar num dos poemas que o modernista brasileiro Oswald de
Andrade (1890-1954) incluiu no seu livro Pau Brasil (1925): “Para dizerem milho dizem mio/ Para melhor
dizem mió/ Para peor pió/ Para telha dizem têia/ Para telhado dizem teado/ E
vão fazendo telhados.” (“Vicio na fala”, pág. 33).
Porquê?
Porque dizem “telhados”, mas fazem “teados”. Uma atitude coerente com
declarações como estas seria olhar para a língua portuguesa como um património
comum, sim, mas com pleno direito às suas diferenças: orais, vocabulares e
ortográficas. E não insistir num acordo ortográfico moribundo
que a ninguém aproveita. Um bom
exemplo foi-nos dado pela moeda única europeia, o euro. Cada moeda de 1 euro
tem o mesmíssimo valor e a mesma imagem numa das faces; mas na outra são todas
diferentes, reflectindo cada qual o seu país. Assim podia ser a língua
portuguesa: com o mesmo valor para cada uma das suas variantes nacionais, mas
reservando cada qual os seus traços específicos, aplicáveis nos respectivos países.
A insistência num acordo ortográfico que ignora tais diferenças, fingindo que
não existem, já não fazia sentido em 1945 nem em 1990, mas hoje é cada vez mais
obsoleta.
Um
pequeno exemplo, retirado do inglês: escrevamos no programa de texto Word as palavras
britânicas colour, centre, grey, mould, plough,
theatre, traveller e as suas variantes americanas color, center, gray, mold, plow, theater e traveler.
Se as sujeitarmos ao corrector ortográfico do Reino Unido, vemos que ele só
valida as primeiras. Idem, com os correctores ortográficos (são 16, ao todo) da
África do Sul, Austrália, Belize, Caribe, Hong Kong, Irlanda, Jamaica, Malásia,
Nova Zelândia, Singapura, Zimbabwe e Trinidad e Tobago — aceitando, apenas esta
última, o uso de dupla grafia em plow/plough. O corrector dos Estados
Unidos só “chumba” as variantes britânicas colour, centre, mould e traveller,
admitindo como aceitáveis as grafias das restantes; o das Filipinas idem,
embora rejeitando a grafia theatre; e o Canadá aceita todas as variantes.
O
que sucede no nosso idioma? Mesmo com o acordo “unificador”, há no programa Word
duas variantes no corrector ortográfico: “Portuguese (Portugal)” e “Portuguese
(Brazil)”. Onde estão os outros países? Optam, que remédio, por uma ou outra!
Quem ousa falar em “colonialismo” a propósito da rejeição do acordo, devia
reflectir nisto. Porque “colonialismo” é o que o acordo ortográfico veio
reforçar, ao pretender impor uma norma “universal” que afinal… são duas.
De modo ínvio, o dito Vocabulário
Ortográfico Comum (VOC) do Instituto Internacional da Língua
Portuguesa (IILP) acolhe vocabulários nacionais (cada um com a sua
bandeirinha), mas para os despejar num “saco” comum que é uma misturada
inqualificável. Feito com critério, o que não sucedeu
no VOC (como já aqui
se demonstrou), essa poderia ser uma base para a fixação das
variantes nacionais e o seu uso posterior nos correctores de texto, trabalho
que não dispensaria um dicionário normativo comum (que até hoje não existe),
consagrando nele todas as variantes, mas indicando explicitamente a sua
etimologia e os países onde se aplicam.
Recorrendo
a dois paladinos do acordo ortográfico, Evanildo Bechara disse em
2014 no Congresso Nacional Brasileiro: “O
problema educacional da ortografia, do ensino da língua escrita, não se prende
rigorosamente à ortografia, prende-se ao bom ensino de língua, a um
desenvolvimento pedagógico (…). As mais complicadas são a inglesa e a francesa,
e sabemos que o índice cultural desses dois países mostra que não é por uma
reforma ortográfica que o índice cultural de um país vai melhorar”; e
João Malaca
Casteleiro afirmou ao
PÚBLICO, no ano seguinte, 2015, que “se não houvesse esta necessidade de
um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na ortografia: os
ingleses não mexem há muito tempo na deles, porque não tem sido preciso”.
Aqui, têm razão. O único pressuposto errado é a “necessidade de um
acordo com o Brasil”. Porque o
único acordo admissível é reconhecer as variantes nacionais e fixá-las como
partes de um corpo comum, o da língua portuguesa. Que se tenha feito o inverso,
não espanta; e há até no Parlamento uma iniciativa legislativa de
cidadãos para corrigir esse acto abusivo. Mas porquê, ainda hoje,
insistir nesta indescritível e tão inútil pantomina?
TÓPICOS
COMENTÁRIOS:
mzeabranches
INICIANTE: Mais uma vez, muito obrigada, Nuno
Pacheco! Vai sendo mais que tempo de acabarmos com esta 'mania' de uniformizar
o que não tem uniformização possível! Esperemos que a Assembleia da República
(AR) se decida enfim a ouvir a voz dos cidadãos - expressa pela ILC-AO -
lutando há anos em defesa da língua portuguesa, nas suas efectivas e naturais
variantes, a começar pela nossa. E se corrija assim o erro cometido em Maio de
2008, pela Res. n.º 35/2008, quando a AR aprovou o indefensável e
anti-democrático Segundo Protocolo Modificativo, abrindo as portas à aplicação
do AO90 em Portugal. E talvez fosse tempo de cuidarmos do ensino da nossa
língua, suporte da nossa identidade e cultura, e que anda tão maltratada,
desfigurada e ridicularizada! 14.05.2020
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