Eu também fui das pessoas ingénuas que
li e reli a obra narrativa de Júlio
Dinis que o meu pai guardava na estante, juntamente com outros escritores
portugueses do século XIX, e digo ingénuas por ter um dia reivindicado para Júlio Dinis, perante um colega ledor dos escritores
estrangeiros, (alguns dos quais eu também lera, de empréstimo), o estatuto de o
nosso maior romancista, como criador de ficções de um realismo sem parti pris, realmente
apoiado em enredos de uma imaginação não rebuscada e simpática, sem pedantismos
de linguagem, mas de linguagem nobre e certeira, e criatividade de quem soubera
inspirar-se nas tendências romanescas desempoeiradas da literatura britânica
feminina do século XIX. É claro que o meu colega sorriu da minha simplicidade
de preferência, ele próprio mais de acordo com a definição de Eça sobre Júlio Dinis como um escritor que «viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve».
Ainda bem que temos um Júlio Dinis na nossa colectânea de escritores, geralmente “pesados” de intencionalidade política, mais ou menos “vergastante”, mas de fraca versatilidade imaginativa, criadora de enredos. Seja como for, José Pacheco Pereira não teve receio de referir Júlio Dinis num seu texto de homem erudito e de leitura variada, escolhendo-o, é certo, talvez por nos saber de pouca densidade de leituras e Júlio Dinis vir a calhar em tempo de confinamento forçado.
Ainda bem que temos um Júlio Dinis na nossa colectânea de escritores, geralmente “pesados” de intencionalidade política, mais ou menos “vergastante”, mas de fraca versatilidade imaginativa, criadora de enredos. Seja como for, José Pacheco Pereira não teve receio de referir Júlio Dinis num seu texto de homem erudito e de leitura variada, escolhendo-o, é certo, talvez por nos saber de pouca densidade de leituras e Júlio Dinis vir a calhar em tempo de confinamento forçado.
OPINIÃO
A viagem de um rapaz confinado em si
mesmo
Hoje muito pouca gente lê Júlio Dinis,
seja pela perversidade da modernidade, seja porque o universo dos seus romances
e das suas personagens é mais estranho do que um E.T., seja, acima de tudo,
porque é um livro e hoje os livros que não sejam papel pintado estão fora de
moda. Fazem mal, não sabem o que perdem.
PÚBLICO, 2 de Maio
de 2020
Júlio Dinis já foi
durante muitas décadas um best-seller.
As pessoas liam-no não porque fossem deobrigadas pela escola (como acontece com
os Maias), mas por gosto. Era um autor popular, dando origem a filmes e uma
considerável iconografia e cujos “tipos” existem ainda na linguagem comum,
desde o “João Semana” ao “senhor Joãozinho das Perdizes”. Isto é tudo
passado, porque hoje muito pouca gente o lê, seja pela perversidade da modernidade,
seja porque o universo dos seus romances e das suas personagens é mais estranho
do que um E.T., seja, acima de tudo, porque é um livro e hoje os livros que não
sejam papel pintado estão fora de moda. Fazem mal, não sabem o que perdem.
De
tudo o que li de Júlio
Dinis (e confesso que nunca li As Pupilas do Senhor Reitor…),
as páginas que, vá-se lá saber, por que meandros da nossa cabeça por onde passa
a memória, melhor recordo, são da Morgadinha dos Canaviais, os primeiros capítulos. Tenho a ideia que quando li
o livro pela primeira vez me pareceram desinteressantes, porque o que eu queria
era a acção. Não tinha nenhuma simpatia pelo fastio e indolência da
personagem, Henrique de Souselas,
e não sabia mesmo o que era isso do spleen. E, no entanto, foram elas que mais
me marcaram a memória.
A
história começava com a viagem de Henrique de Souselas para casa da tia no
fundo dos fundos do Minho. Tinha vinte e sete anos e vivia dos rendimentos
herdados dos pais. Vinha a morrer de tédio e do “demónio” da hipocondria.
Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S.
Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Grémio, bocejava no Suíço, no Chiado
e nos círculos dos seus amigos, os quais principiaram também a achá-lo
insuportável de insipidez; porque poucas coisas há que mais perturbem o
espirito, do que o espectáculo d’um homem que boceja ou dorme, onde e quando os
outros forcejam por divertir-se.
E
ia para tão longe como se fosse para o cemitério. O homem que o acompanhava e
que comandava o macho onde vinha pousado, mais do que sentado, fala com ele sem
grande paciência para aturar a impaciência do “patrão”.
Chegados
à casa da tia, onde tinha estado na infância, o primeiro choque com a realidade
do rapaz cheio de spleen foi tentar descrever à tia a sua “moléstia”:
«Mas
afinal que moléstia é a tua, menino?
―
Eu sei lá, tia Doroteia? Nem os médicos a conhecem bem. É, entre outras coisas,
uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a
parte. Às vezes parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração;
outras, são palpitações, ânsias... Tenho quase vontade de chorar, irrito-me,
impaciento-me, não quero que me falem, nada quero ver, nada quero ouvir; não
leio, não durmo, não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.
(…)
Assim que Henrique terminou a exposição, ela disse-lhe com uma adorável
candura:
―
Então é assim uma espécie de mania!
(…)
―
Mania? Ó tia Doroteia! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte? Mania!
―
Sim, menino ― insistiu ingenuamente a boa senhora ― pois olha que não é outra
coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... sim... porque não te
morrendo ninguém, nem te doendo nada...
A
criada, que também não percebia a “mania”, tinha no entanto um exemplo para
fornecer, o de um homem da terra, que andava “por aí sempre triste, sempre a
falar só, até que a final lá foi parar...” Onde, pergunta Henrique? Ao
manicómio.
Depois
começa a terapia involuntária da “mania”. Começa na comida (como em Eça a
comida é muitas vezes o sinal de que se estava a entrar num mundo novo), o
caldo de arroz “que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera”. E depois
a cama onde dormiu debaixo de cinco cobertores como há muito tempo já não
dormia: “Dormi a noite de um sono, e acordei bem disposto; o que para mim é a
mais estranha das ocorrências.” Dois pontos para a tia, zero para o spleen. E
depois começa o romance.
O
confinamento de Henrique de Souselas era dentro da sua cabeça. A tia e a criada
desconfinaram-no. Eram de uma época pré-freudiana, percebiam o que era a fome,
a dor, a doença, mas não percebiam os estados de alma.
Como
eu também nunca os percebi, deve ser por isso que nunca esqueci estas páginas.
Historiador
COMENTÁRIOS
Maria da Fé Peres INICIANTE: Que bom descobrir como Júlio Dinis é devidamente
apreciado. Este é um autor que li em adolescente e que releio desde então. A
Morgadinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor, são verdadeiros
mananciais de escrita boa, autêntica, de prosa extraordinariamente criativa.
Quanto às personagens, essas são puramente geniais. A crítica de costumes,
certeira. E a descrição dos comportamentos humanos, perfeita. Júlio Dinis é uma
das figuras maiores da nossa literatura. A sua morte aos 32 anos foi mais do
que prematura. Muito haveria ainda a colher da sua genialidade. 03.05.2020
Ceratioidei EXPERIENTE: Excelente texto, de uma „adorável candura“. „Dormi a
noite de um sono, e acordei bem disposto; o que para mim é a mais estranha das
ocorrências.” Dois pontos para a tia, zero para o spleen. E depois começa o
romance.“ Também não percebo estes estados de alma. Nada contra o Sigi Freud.
02.05.2020
Caetano Brandão INFLUENTE: É sempre um prazer as crónicas de PP, pela pedrada na
trivialidade pela qualidade como escreve, muitas vezes pela simplicidade como
neste caso. 02.05.2020
correiaramos INICIANTE: A Morgadinha dos Canaviais é um clássico da literatura
portuguesa por várias razões: porque sobrevive à filtragem da história, sendo
ainda lido, sem o ser por obrigação, e porque dá forma àquilo que somos hoje.
Por isso, reler a Morgadinha dos Canaviais pode ser uma oportunidade que
podemos agradecer ao COVID. 02.05.2020
DCM
EXPERIENTE: Hoje numa longa fila para fazer compras
num supermercado senti-me mais confinado do que antes sentira nos últimos quase
dois meses em que nem sequer saí para fazer compras . Na fila eram mais de cem
e todos confinados, e então eu pensei que o melhor para desconfinar, é ficar em
casa e fazer compras online.
rafael.guerra EXPERIENTE Aproveite-se estar de pé nas filas para ler um bom
livro. Ficar demasiado tempo sentado faz mal à saúde. 02.05.2020
rafael.guerra EXPERIENTE: Excelente. Mais uma jóia da literatura portuguesa
servida com mestria por JPP. Faltam mais tias terra-a-terra para desmoronar
confinamentos manientos de sobrinhos. 02.05.2020
JLR INFLUENTE: Aproveito
esta óptima introdução de Pacheco Pereira à "Morgadinha" e o convite
implícito à sua leitura para o ir "surripiar" a casa dos meus pais.
Há tantos anos que lá está, esquecido... 02.05.2020
FPS INFLUENTE: Queira-se
ou não, há sempre algo de preconceituoso nos nossos hábitos de leitura, nos nossos
gostos de pintura ou na apreciação de um compositor... Não leio Júlio Diniz há
mais de 50 anos e nunca mais lhe pus olhos em cima. Verdadeiramente, por
preconceito que o homem era popularucho, diletante, superficial (sempre ouvi
dizer isto de J.Diniz). Mas a verdade é que, do que li dele, o li com agrado,
com gosto. Lembro-me vagamente de ter lido "A morgadinha..." e
"As pupilas..." nos meus 15-16, quando o seu oitocentismo me enchia
de ternura, me confortava de um mundo ideal e de sonho que, é verdade, estava
muito distante da minha realidade. Da realidade sentida, da realidade do mundo
e das pessoas que me rodeavam. Uns dias destes, mas sem preconceitos, vou ver
se regresso a Júlio Diniz... 02.05.2020
Manuel Brito.205795 MODERADOR: Li-o pela mesma idade, só que no meu caso isso foi há
sessenta anos. Tudo o que havia lá por casa, incluindo, acho, os Serões da
Província. Julgo que o achei um autor simpático mas pouco inspirado, com a sua
visão idílica do mundo rural (nunca gostei da saída absurdamente ruralista que
Eça inventou na Cidade e as Serras), numa altura em que me começava a aventurar
por outras literaturas europeias.
02.05.2020
13:23
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