Apresentadas por Nuno Pacheco: o próprio, Vicente Jorge Silva, Luís Cília. Ficamos, decididamente, mais
esclarecidos e enriquecidos culturalmente, com mais esta prova do quanto
devemos a Nuno Pacheco, para além
da defesa da Língua Portuguesa, em que
essencialmente o acompanhávamos. Quanto ao agradecimento de Vicente a Gorbatchov, lembro-me
de ter ficado grata a Françoise
Sagan ao ler idêntico agradecimento num seu livro, (que perdi), e por isso
compreendo o entusiasmo de Nuno
Pacheco pelo seu amigo, como homem esclarecido que, sendo de esquerda, o foi sem
a submissão de muita da nossa esquerda hodierna, cega, surda e muda a um entendimento
que não seja de mero radicalismo, facciosamente injusto. Quanto a Luís Cília, de quem nunca ouvíramos falar, um
extenso apanhado biográfico, sobre uma vida de arrebatamento talvez iracundo, nesse
país que amávamos através dos seus escritores e cantores, enquanto
trabalhávamos bem longe, sem pensar nesses que, na sua distância furtiva do
país de origem, iam minando a estabilidade desse tal país mesquinho de quem,
provavelmente, não se lhes dá a destruição da própria língua – o que não é o
caso de Nuno Pacheco, graças a
Deus.
NUNO PACHECO
REDACTOR-PRINCIPAL
Integrar em 1989 a equipa fundadora do
PÚBLICO, após oito anos no Expresso, foi um dos grandes desafios da minha vida,
faltavam ainda uns anos para o advento revolucionário da Internet. Que
não mudou a essência do que acredito que deve ser o jornalismo: uma mistura
de ética, arte e busca incessante do que é novo. E isso é
inseparável do tratamento dado à palavra, na forma como se escreve uma
história, se formula uma ideia, se incentiva um debate. Por isso sou defensor
acérrimo da diversidade da língua portuguesa, nas suas riquíssimas variantes, e
adversário do acordo ortográfico de 1990. Em apoio desta posição, invoco o facto de escrever sobre música
brasileira há quase duas décadas. Nasci no ano (e no mês) da morte de
Carmen Miranda, Agosto de 1955, mas não acho que isso conte para esta história.
I - CRÓNICA VICENTE JORGE SILVA
Um imenso adeus, como num filme
Sem a visão de Vicente Jorge Silva de
um jornalismo com padrões de qualidade internacional, o jornalismo português –
todo ele, não só o escrito – seria hoje bem mais pobre. E isso é uma pequena
parte do que colectivamente lhe devemos.
NUNO PACHECO
PÚBLICO, 8 de Setembro de 2020
Num
filme de Capra já tão gasto de ser exibido, It’s
a Wonderful Life (Do Céu Caiu uma Estrela), um anjo mostra a George Bailey (James Stewart) que,
se ele não tivesse nascido, a vida em seu redor, tudo o que ele conhecia e
prezava, seria bem diferente – para pior. No caso de Vicente Jorge Silva
não precisamos
de nenhum anjo para saber que, sem ele, sem a sua visão de um
jornalismo com padrões de qualidade internacional, o jornalismo português –
todo ele, não só o escrito – seria hoje bem mais pobre. E isso é uma pequena
parte do que colectivamente lhe devemos.
Porque centenas de pessoas dirão que conhecê-lo, privar com ele, trabalhar com
ele, foi decisivo para as suas vidas. No meu caso, comecei a lê-lo no Comércio do Funchal, nas folhinhas cor-de-rosa que já eram um caso sério
no jornalismo português, ainda a ditadura imperava. E continuei depois a lê-lo
nas páginas do Expresso, onde já despontava A Revista. Por uma qualidade que manteve ao longo de anos: uma
escrita excelente, cuidada, viva e entusiasmante.
Pessoalmente,
conheci-o bem mais tarde, em 1981,
pouco antes de ingressar nos quadros do Expresso, e isso foi
decisivo: se até aí encarava o jornalismo como missão de cidadania, ou até
de militância, passei a encará-lo também como objecto de paixão. Poucos
conseguiam transmiti-lo como ele. As olímpicas discussões em torno dos temas a
tratar semanalmente na revista (onde o acompanhei durante anos) e o empenho
posto na sua execução, tentando sempre ir mais longe, eram momentos épicos onde
ele funcionava com uma eficácia magnética, atraindo as atenções e motivando
réplicas, mesmo quando se enfurecia ou, teatralmente, atirava papéis ao ar.
Essa
lógica quase “comunitária” de jornalismo participativo (onde os
jornalistas tinham voto na matéria, não eram simples executores de ordens),
transferiu-se depois para o PÚBLICO, projecto inovador que veio abalar a ordem
estabelecida na imprensa portuguesa, e no qual muitos tiveram a honra e o
prazer de estar ao seu lado. Era mais uma, e esta decisiva, das “nossas
grandes aventuras nos mares do jornalismo”, como ele certo dia sintetizou numa
dedicatória. E nessas aventuras (que o PÚBLICO mantém) sempre contou e conta
mais o fervor das coisas, a génese do que se tem entre mãos, não a sua ilusória
aparência, que trai o essencial.
A paixão de Vicente pelo jornalismo
(amor consumado em diversas épocas e títulos) estendeu-se a outras
áreas. No cinema, que muito o inspirou na forma como titulava e
paginava artigos, com referências explícitas à Nouvelle Vague francesa
ou ao cinema italiano (Rossellini, Antonioni), não foi feliz, apesar de ter
deixado num filme, Porto Santo algumas
das suas obsessões, como o amor (pelas pessoas, pelos lugares, pelas coisas) e
o mistério que o rodeia (e rodeia pessoas, lugares e coisas). Na música, entre
a suas predilecções, encontrava-se o nome mítico da bossa nova: João
Gilberto. E
a política, onde se
aventurou num interregno ainda menos feliz, cedo o desencantou.
A centelha que lhe brilhava no
olhar, essa, manteve-a até ao final. Abria muito os olhos, muitas vezes por brincadeira (e
tantas delas com caretas quase infantis), como parte da sua forma de lidar com
o mundo. E nesse olhar que se nos tornou tão familiar, tão ternamente
familiar, estava a alma de alguém que desinquietou tudo em seu redor em
movimentos contínuos, como pólo agregador, porque o inconformismo que o roía
raramente o deixava parar. E foi esse inconformismo, aliado a
uma insatisfação que também nele era frequente, que o fez mudar, tantas vezes
quantas julgou necessárias.
Em
2017, quando o desafiaram a escolher uma capa por ocasião da edição número
10.000 do PÚBLICO, Vicente escolheu a de 26 de Dezembro de 1991, que ele
próprio idealizou no dia de Natal desse ano e que, sobre uma enorme fotografia
a preto e branco, tinha apenas duas palavras: “Obrigado,
Gorbatchov”. E em editorial escreveu: “É
tempo para agradecer ao homem que, antes de partir, descongelou a História.
Obrigado, Gorbatchov.”
Quase
30 anos passados, quando Mikhail Gorbatchov ainda vive (tem 89 anos), podemos apropriar-nos
desse título e, numa capa imaginária que a memória guardará para sempre,
escrever aquilo que será para muitos um acto de merecidíssima justiça: “Obrigado,
Vicente!” E, nesta
hora triste, homenageá-lo num imenso e intenso adeus, como num filme.
COMENTÁRIO:
Manuel de Campos Dias Figueiredo INICIANTE:
Não se pode ficar indiferente a uma tão
rica homenagem a um grande Jornalista - Vicente Jorge Silva, um exemplo! 09.09.2020
II - OPINIÃO: O canto de exílio português tem um pioneiro
e o seu nome é Luís Cília
Foi o cantor e compositor português
que mais discos gravou e lançou no exílio. O que faltará, para ter discos seus
nas lojas?
PÚBLICO, 10 de Setembro de 2020
A crónica da semana passada suscitou
a um leitor um justo reparo: como é possível falar sobre exílio e canções de
protesto sem mencionar Luís Cília? Na verdade, não é possível. Tanto assim é que Luís
Cília também vai estar em Grândola, no Encontro da Canção de Protesto,
como um dos participantes anunciados para a sessão testemunhal Cantos no
Exílio (dia 19, às 12h), na qual participarão
ainda Agnès Pellerin, Francisco Fanhais, Sérgio
Godinho e Tino Flores. Não foi uma
omissão voluntária, porque contava voltar ao tema, e faço-o falando de Luís
Cília. Até porque paira sobre ele um anátema
de exclusão do espaço público que deve ser vivamente contrariado.
Nascido
no Huambo, em Angola, a 1 de
Fevereiro de 1943, foi o poeta Daniel Filipe,
que conheceu em 1962, quem o levou a musicar poetas portugueses, dando-lhe a
ouvir discos de dois grandes intérpretes franceses, Léo Ferré
e Georges
Brassens. E é com
essa bagagem que Cília chega
a Paris no dia 1
de Abril de 1964, iniciando um exílio que duraria uma década. Não foi o
primeiro cantor português a ali chegar, José Mário Branco já lá estava desde Junho de 1963, mas foi o primeiro a
lançar-se em gravações. E foi aquele
que mais discos gravou e lançou no exílio, onde também gravaram, mas uns anos
mais tarde, José Mário Branco, Sérgio
Godinho ou Tino Flores.
Devido
a ter conhecido a cantora Collete Magny
(1926-1997), de quem ficaria amigo para o resto da
vida, gravou logo em 1964 um primeiro LP, para a etiqueta Chant du
Monde, intitulado Portugal-Angola
- Chants de Lutte, reeditado dez anos depois com novo nome, Meu País,
e com uma canção modificada, Duas melodias, devido às alterações entretanto operadas na ditadura
em Portugal (a primeira falava de Salazar, a segunda já mencionava Marcello
Caetano). No ano seguinte, 1965, sai um EP, Portugal Resiste, editado
pelo Cercle du Disque Socialiste,
onde surgiam, musicados por ele, três poemas de Manuel Alegre (Portugal resiste, Minha pena minha espada e País
de Abril) e um de Reinaldo Ferreira (Menina dos olhos tristes, que José Afonso
viria também a musicar e gravar mais tarde, em 1969). Na contracapa, em
francês, um pequeno texto (não assinado) começava com estas palavras: “Pode-se
humilhar um povo, condená-lo à miséria, metê-lo em prisões. Mas não se pode
reduzi-lo ao silêncio.” O disco era prova disso.
No
ano que antecedeu o do Maio de 68 (movimento em que Luís Cília se embrenhou, como outros cantores, actuando em
diversos lugares), mais dois discos: um single com a banda sonora que compôs e interpretou para o
filme O Salto, de Christian
de Chalonge, e o primeiro LP de uma trilogia que gravou para a Moshé-Naïm, La Poésie
Portugaise de Nos Jours e de Toujours.
Sairiam ainda mais dois discos: o
segundo em 1969, com ilustrações da pintora Vieira da Silva, já então radicada em França, e o terceiro em 1971 (24 das 40 canções gravadas
nestes três discos foram coligidas em 1996, também pela Moshé-Naïm, num único
CD ausente do mercado português). Por fim, ainda em Paris, Luís
Cília fecha o ciclo na casa onde começara, o
Chant du Monde, com o LP Contra a
Ideia da Violência, a Violência da Ideia, lançado
em 1974, à beira do fim da ditadura.
Depois
veio o 25 de Abril, que o trouxe de avião (o mesmo onde viajaram José Mário Branco e
Álvaro Cunhal, entre
outros exilados), e começaram outras músicas e outras “guerras”, em que ele, pelo
seu espírito rebelde e iconoclasta, foi fazendo um caminho muito próprio.
De França, e do seu amor à chanson, trouxe ligações duradoras (Brassens,
Magny, Ferré, envolvendo-se
na edição do livro Léo Ferré, pela
Ulmeiro, em 1984) e por cá foi-se desmultiplicando por projectos, discos em que
voltou a trabalhar palavras de poetas (e começou logo em 1974 com O
Guerrilheiro, com música e poesia portuguesa dos
séculos XIII a XIX) como Eugénio de Andrade, Jorge de Sena e
David Mourão-Ferreira, a par de música para bailado, teatro e cinema. Gravou cerca de 20 discos e está, felizmente, vivo. A página Luís Cília – Um Percurso regista a sua história. E tem muitas entrevistas, como a que
deu ao PÚBLICO em 1993. O que faltará, para ter discos seus nas
lojas?
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