quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Três figuras, com biografia


Apresentadas por Nuno Pacheco: o próprio, Vicente Jorge Silva, Luís Cília. Ficamos, decididamente, mais esclarecidos e enriquecidos culturalmente, com mais esta prova do quanto devemos a Nuno Pacheco, para além da defesa da Língua Portuguesa, em que essencialmente o acompanhávamos. Quanto ao agradecimento de Vicente a Gorbatchov, lembro-me de ter ficado grata a Françoise Sagan ao ler idêntico agradecimento num seu livro, (que perdi), e por isso compreendo o entusiasmo de Nuno Pacheco pelo seu amigo, como homem esclarecido que, sendo de esquerda, o foi sem a submissão de muita da nossa esquerda hodierna, cega, surda e muda a um entendimento que não seja de mero radicalismo, facciosamente injusto. Quanto a Luís Cília, de quem nunca ouvíramos falar, um extenso apanhado biográfico, sobre uma vida de arrebatamento talvez iracundo, nesse país que amávamos através dos seus escritores e cantores, enquanto trabalhávamos bem longe, sem pensar nesses que, na sua distância furtiva do país de origem, iam minando a estabilidade desse tal país mesquinho de quem, provavelmente, não se lhes dá a destruição da própria língua – o que não é o caso de Nuno Pacheco, graças a Deus.

NUNO PACHECO

REDACTOR-PRINCIPAL

Integrar em 1989 a equipa fundadora do PÚBLICO, após oito anos no Expresso, foi um dos grandes desafios da minha vida, faltavam ainda uns anos para o advento revolucionário da Internet. Que não mudou a essência do que acredito que deve ser o jornalismo: uma mistura de ética, arte e busca incessante do que é novo. E isso é inseparável do tratamento dado à palavra, na forma como se escreve uma história, se formula uma ideia, se incentiva um debate. Por isso sou defensor acérrimo da diversidade da língua portuguesa, nas suas riquíssimas variantes, e adversário do acordo ortográfico de 1990. Em apoio desta posição, invoco o facto de escrever sobre música brasileira há quase duas décadas. Nasci no ano (e no mês) da morte de Carmen Miranda, Agosto de 1955, mas não acho que isso conte para esta história.

tp.ocilbup@ocehcap.onun

I - CRÓNICA VICENTE JORGE SILVA

Um imenso adeus, como num filme

Sem a visão de Vicente Jorge Silva de um jornalismo com padrões de qualidade internacional, o jornalismo português – todo ele, não só o escrito – seria hoje bem mais pobre. E isso é uma pequena parte do que colectivamente lhe devemos.

NUNO PACHECO

PÚBLICO, 8 de Setembro de 2020

Num filme de Capra já tão gasto de ser exibido, It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu uma Estrela), um anjo mostra a George Bailey (James Stewart) que, se ele não tivesse nascido, a vida em seu redor, tudo o que ele conhecia e prezava, seria bem diferente – para pior. No caso de Vicente Jorge Silva não precisamos de nenhum anjo para saber que, sem ele, sem a sua visão de um jornalismo com padrões de qualidade internacional, o jornalismo português – todo ele, não só o escrito – seria hoje bem mais pobre. E isso é uma pequena parte do que colectivamente lhe devemos. Porque centenas de pessoas dirão que conhecê-lo, privar com ele, trabalhar com ele, foi decisivo para as suas vidas. No meu caso, comecei a lê-lo no Comércio do Funchal, nas folhinhas cor-de-rosa que já eram um caso sério no jornalismo português, ainda a ditadura imperava. E continuei depois a lê-lo nas páginas do Expresso, onde já despontava A Revista. Por uma qualidade que manteve ao longo de anos: uma escrita excelente, cuidada, viva e entusiasmante.

Pessoalmente, conheci-o bem mais tarde, em 1981, pouco antes de ingressar nos quadros do Expresso, e isso foi decisivo: se até aí encarava o jornalismo como missão de cidadania, ou até de militância, passei a encará-lo também como objecto de paixão. Poucos conseguiam transmiti-lo como ele. As olímpicas discussões em torno dos temas a tratar semanalmente na revista (onde o acompanhei durante anos) e o empenho posto na sua execução, tentando sempre ir mais longe, eram momentos épicos onde ele funcionava com uma eficácia magnética, atraindo as atenções e motivando réplicas, mesmo quando se enfurecia ou, teatralmente, atirava papéis ao ar.

Essa lógica quase “comunitária” de jornalismo participativo (onde os jornalistas tinham voto na matéria, não eram simples executores de ordens), transferiu-se depois para o PÚBLICO, projecto inovador que veio abalar a ordem estabelecida na imprensa portuguesa, e no qual muitos tiveram a honra e o prazer de estar ao seu lado. Era mais uma, e esta decisiva, das “nossas grandes aventuras nos mares do jornalismo”, como ele certo dia sintetizou numa dedicatória. E nessas aventuras (que o PÚBLICO mantém) sempre contou e conta mais o fervor das coisas, a génese do que se tem entre mãos, não a sua ilusória aparência, que trai o essencial.

A paixão de Vicente pelo jornalismo (amor consumado em diversas épocas e títulos) estendeu-se a outras áreas. No cinema, que muito o inspirou na forma como titulava e paginava artigos, com referências explícitas à Nouvelle Vague francesa ou ao cinema italiano (Rossellini, Antonioni), não foi feliz, apesar de ter deixado num filme, Porto Santo algumas das suas obsessões, como o amor (pelas pessoas, pelos lugares, pelas coisas) e o mistério que o rodeia (e rodeia pessoas, lugares e coisas). Na música, entre a suas predilecções, encontrava-se o nome mítico da bossa nova: João Gilberto. E a política, onde se aventurou num interregno ainda menos feliz, cedo o desencantou.

A centelha que lhe brilhava no olhar, essa, manteve-a até ao final. Abria muito os olhos, muitas vezes por brincadeira (e tantas delas com caretas quase infantis), como parte da sua forma de lidar com o mundo. E nesse olhar que se nos tornou tão familiar, tão ternamente familiar, estava a alma de alguém que desinquietou tudo em seu redor em movimentos contínuos, como pólo agregador, porque o inconformismo que o roía raramente o deixava parar. E foi esse inconformismo, aliado a uma insatisfação que também nele era frequente, que o fez mudar, tantas vezes quantas julgou necessárias.

Em 2017, quando o desafiaram a escolher uma capa por ocasião da edição número 10.000 do PÚBLICO, Vicente escolheu a de 26 de Dezembro de 1991, que ele próprio idealizou no dia de Natal desse ano e que, sobre uma enorme fotografia a preto e branco, tinha apenas duas palavras: “Obrigado, Gorbatchov”. E em editorial escreveu: “É tempo para agradecer ao homem que, antes de partir, descongelou a História. Obrigado, Gorbatchov.”

Quase 30 anos passados, quando Mikhail Gorbatchov ainda vive (tem 89 anos), podemos apropriar-nos desse título e, numa capa imaginária que a memória guardará para sempre, escrever aquilo que será para muitos um acto de merecidíssima justiça: “Obrigado, Vicente!” E, nesta hora triste, homenageá-lo num imenso e intenso adeus, como num filme.

COMENTÁRIO:

Manuel de Campos Dias Figueiredo INICIANTE: Não se pode ficar indiferente a uma tão rica homenagem a um grande Jornalista - Vicente Jorge Silva, um exemplo! 09.09.2020

II - OPINIÃO: O canto de exílio português tem um pioneiro e o seu nome é Luís Cília

Foi o cantor e compositor português que mais discos gravou e lançou no exílio. O que faltará, para ter discos seus nas lojas?

NUNO PACHECO

PÚBLICO, 10 de Setembro de 2020

A crónica da semana passada suscitou a um leitor um justo reparo: como é possível falar sobre exílio e canções de protesto sem mencionar Luís Cília? Na verdade, não é possível. Tanto assim é que Luís Cília também vai estar em Grândola, no Encontro da Canção de Protesto, como um dos participantes anunciados para a sessão testemunhal Cantos no Exílio (dia 19, às 12h), na qual participarão ainda Agnès Pellerin, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho e Tino Flores. Não foi uma omissão voluntária, porque contava voltar ao tema, e faço-o falando de Luís Cília. Até porque paira sobre ele um anátema de exclusão do espaço público que deve ser vivamente contrariado.

Nascido no Huambo, em Angola, a 1 de Fevereiro de 1943, foi o poeta Daniel Filipe, que conheceu em 1962, quem o levou a musicar poetas portugueses, dando-lhe a ouvir discos de dois grandes intérpretes franceses, Léo Ferré e Georges Brassens. E é com essa bagagem que Cília chega a Paris no dia 1 de Abril de 1964, iniciando um exílio que duraria uma década. Não foi o primeiro cantor português a ali chegar, José Mário Branco já lá estava desde Junho de 1963, mas foi o primeiro a lançar-se em gravações. E foi aquele que mais discos gravou e lançou no exílio, onde também gravaram, mas uns anos mais tarde, José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Tino Flores.

Devido a ter conhecido a cantora Collete Magny (1926-1997), de quem ficaria amigo para o resto da vida, gravou logo em 1964 um primeiro LP, para a etiqueta Chant du Monde, intitulado Portugal-Angola - Chants de Lutte, reeditado dez anos depois com novo nome, Meu País, e com uma canção modificada, Duas melodias, devido às alterações entretanto operadas na ditadura em Portugal (a primeira falava de Salazar, a segunda já mencionava Marcello Caetano). No ano seguinte, 1965, sai um EP, Portugal Resiste, editado pelo Cercle du Disque Socialiste, onde surgiam, musicados por ele, três poemas de Manuel Alegre (Portugal resiste, Minha pena minha espada e País de Abril) e um de Reinaldo Ferreira (Menina dos olhos tristes, que José Afonso viria também a musicar e gravar mais tarde, em 1969). Na contracapa, em francês, um pequeno texto (não assinado) começava com estas palavras: “Pode-se humilhar um povo, condená-lo à miséria, metê-lo em prisões. Mas não se pode reduzi-lo ao silêncio.” O disco era prova disso.

No ano que antecedeu o do Maio de 68 (movimento em que Luís Cília se embrenhou, como outros cantores, actuando em diversos lugares), mais dois discos: um single com a banda sonora que compôs e interpretou para o filme O Salto, de Christian de Chalonge, e o primeiro LP de uma trilogia que gravou para a Moshé-Naïm, La Poésie Portugaise de Nos Jours e de Toujours. Sairiam ainda mais dois discos: o segundo em 1969, com ilustrações da pintora Vieira da Silva, já então radicada em França, e o terceiro em 1971 (24 das 40 canções gravadas nestes três discos foram coligidas em 1996, também pela Moshé-Naïm, num único CD ausente do mercado português). Por fim, ainda em Paris, Luís Cília fecha o ciclo na casa onde começara, o Chant du Monde, com o LP Contra a Ideia da Violência, a Violência da Ideia, lançado em 1974, à beira do fim da ditadura.

Depois veio o 25 de Abril, que o trouxe de avião (o mesmo onde viajaram José Mário Branco e Álvaro Cunhal, entre outros exilados), e começaram outras músicas e outras “guerras”, em que ele, pelo seu espírito rebelde e iconoclasta, foi fazendo um caminho muito próprio. De França, e do seu amor à chanson, trouxe ligações duradoras (Brassens, Magny, Ferré, envolvendo-se na edição do livro Léo Ferré, pela Ulmeiro, em 1984) e por cá foi-se desmultiplicando por projectos, discos em que voltou a trabalhar palavras de poetas (e começou logo em 1974 com O Guerrilheiro, com música e poesia portuguesa dos séculos XIII a XIX) como Eugénio de Andrade, Jorge de Sena e David Mourão-Ferreira, a par de música para bailado, teatro e cinema. Gravou cerca de 20 discos e está, felizmente, vivo. A página Luís Cília – Um Percurso regista a sua história. E tem muitas entrevistas, como a que deu ao PÚBLICO em 1993. O que faltará, para ter discos seus nas lojas?

 

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