quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Uma poética homenagem


Do escritor João Morgado a Ernesto Melo e Castro. A Internet ajuda a compreender, com visitas a espécimes “poéticos” engenhosos, de facto. Mas facilmente regressei aos velhos conceitos clássicos que repõem a arte em estruturas mentais de uma outra racionalidade e emoção artística. As transfigurações, de rebuscamentos visuais que sejam – e não só – por vezes não passam dos pedaços de carne e órgãos espalhados, de que se compõem as figuras humanas ou outras, tão belas na sua inteireza, tão degradadas na sua decomposição, como puro entretenimento vistoso, que faz sorrir e não comove. Desumaniza.

Visitar os olhos do poeta Ernesto Melo e Castro

Ernesto Melo e Castro recebeu-me em São Paulo no seu escritório feito de livros, de muitos livros. “Cerca de cinco mil livros. É o meu universo.”

JOÃO MORGADO Escritor. Autor do romance biográfico de Camões “O Livro do Império”

OBSERVADOR, 01 set 2020, 07:08

Morreu o poeta Ernesto Melo e Castro. Este covilhanense era poeta e homem de corpo inteiro. Mas visitei-lhe os olhos quando o fui visitar na sua casa, em São Paulo, em Setembro do ano passado. Apenas os olhos, como quando se entra numa casa enorme, mas nos sentamos a conversar apenas numa das suas divisões. Ernesto Melo e Castro foi sempre uma enorme casa da poesia, uma casa aberta, não lhe cheguei a conhecer todos os cómodos, pois havia muito a percorrer entre o alpendre e o desvão. Fiquei-me por ali, a indagar-lhe os olhos.

Vivia no Brasil há mais de duas décadas, tão longe da nossa terra, Covilhã, tão perto de tudo o resto, que o mundo é onde estamos. Visitei-lhe os olhos vivos com que olhou a realidade e a descobriu tão diferentes de como todos a víamos. Os olhos envelhecem, não o olhar.

Ernesto Manuel de Melo e Castro afirmou-se como um nome sagrado na poesia visual e experimental, quer em Portugal, quer no Brasil onde publicou uma série considerável de livros engenhosos, cheios de poemas, de infopoemas, ideogramas, traços e letras selvagens, desordeiras….

Recebeu-me no seu escritório feito de livros, de muitos livros. “Cerca de cinco mil livros. É o meu universo.” A biblioteca de uma vida feita de letras, de leitura, de viagens página a página. “Li o seu romance. Há muito que não lia um romance…” Teceu elogios. Encantou-se pela novela “Céu do Mar” — agradeci. Falámos de escritas, de leituras, e eu pregado nos seus olhos vivos de onde a poesia brotou para serigrafias, com uma presença gráfica, visual, forte. A imaginar que aquelas suas longas barbas seriam uma cascata de letras, uma cachoeira de caracteres tipográficos a contarem as suas memórias.

O corpo estava já quebradiço pelas maleitas do tempo, 87 anos na altura. Dizia que tinha medo de viajar para Portugal que a viagem era longa. “Da última vez senti-me mal!”. Também não pareceu muito saudoso de um país que nem sempre o acarinhou. “Recebi das críticas mais insultuosas em Portugal, recebi o esquecimento de alguns colegas que eu tanto estimava, vi aqueles que eu mais estimava, como o António Ramos Rosa, morrer quase no anonimato injusto”, disse um dia, para quem quis ouvir, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio a São Paulo e lhe outorgou a Ordem do Infante Dom Henrique.

Apresentou-se com um rosto tranquilo, uma figura helénica, com aquele carisma que sempre o caracterizou. Persistia-lhe aquela cintilação nos olhos que insiste em negar e esconder a fragilidade do resto do corpo. Naquela casa sentia-se em paz, forte entre os livros. Deixou-se banhar pela luz natural que vinha da janela, e continuou a inspirar e expirar poemas.

Confidenciou-me que continuava a escrever à mão; escrevia à mão e virava as folhas ao contrário para ninguém ver. “Não gosta que o leiam”, comenta a Elza, a sua esposa, outra apaixonada das letras, que o complementou na vida, que o amparou com ternura. Também lhe brilham os olhos na cumplicidade.

Com voz cândida, cheia de palavras amigas, Ernesto Melo e Castro falou da minha escrita, da Covilhã, dos têxteis, da universidade… e eu, que nunca me encontrei com ele nesta terra de bons panos que é a nossa, fui apertar-lhe a mão lá no Brasil, porque a admiração não tem fronteiras e nos faz bem sair do caminho, para nos perdermos num abraço… despedimo-nos com um “até à próxima na Covilhã”. Agora que o seu corpo partiu, parece difícil, mas o mundo que nós vemos não é igual ao que ele sempre viu, e por certo encontrará uma outra ‘Covilhã’ num outro universo qualquer, onde nos poderemos encontrar para falar de literatura… Em mim, os seus olhos vão continuar a brilhar!

CRÓNICA  OBSERVADOR  POESIA  LITERATURA  CULTURA

 

E. M. de Melo e Castro

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

 

E. M. de Melo e Castro, nome literário de Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro ComIH (Covilhã, 1932 - São Paulo, 29 de agosto de 2020), foi um engenheiro, poeta, ensaísta, escritor e artista plástico português.

Figura multifacetada, autor de uma obra caracterizada pela construção de experiências com vários materiais e vários média, a acção de E. M. de Melo e Castro foi particularmente marcante na emergência da poesia experimental em Portugal.

Biografia

Filho de Ernesto de Campos Melo e Castro (Covilhã, 1896 — Covilhã, 1973), neto materno do 1.Visconde da Coriscada e Comendador da Ordem da Instrução Pública a 1 de Agosto de 1955, e de sua mulher e duas vezes prima Maria Gonzaga de Campos e Melo Geraldes.

Foi casado com a escritora Maria Alberta Menéres e pai da cantora Eugénia Melo e Castro.

Licenciatura em Engenharia Têxtil pela Universidade de Bradford (1956); Doutoramento em Letras pela Universidade de São Paulo (1998). Foi professor no Instituto Superior de Arte, Design e Marketing (IADE) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

Destacou-se como um dos pioneiros da Poesia Visual (concreta) em Portugal. Ideogramas data de 1962 e reúne 29 poemas concretos, publicados sem qualquer introdução ou nota explicativa; este livro é considerado um marco fundador da Poesia Concreta e do Experimentalismo em Portugal. Participou no primeiro e foi um dos organizadores do segundo número da revista Poesia Experimental, em 1964 e 1966, respectivamente (Ver: Poesia Experimental Portuguesa). Entre as diversas antologias e suplementos em que colaborou, assinale-se a organização de Hidra (1969) e Operação 1 (1967). Também colaborou revista Arte Opinião (1978-1982).

A prática poética de Melo e Castro "tem sido acompanhada por uma teorização sistemática sobre a linguagem e as tecnologias de comunicação. Na sua extensa obra cruzam-se múltiplas práticas e formas experimentais: a explosão grafémica e gráfica que combina a fragmentação da palavra com a espacialização da escrita alfabética e do desenho geométrico; o poema-objeto tridimensional e a instalação; a recombinação intermédia de escrita, som e imagem em movimento; a performance que inscreve a presença corporal, vocal e gestual do autor nas práticas sociais e técnicas de comunicação; a teorização do poema como dispositivo de crítica do discurso no universo saturado dos média". Figura marcante no contexto artístico português dos anos de 1960 e 1970, nas décadas que se seguiram dedicou-se a investigar e a espelhar no seu trabalho as relações entre a arte e o desenvolvimento tecnológico. Foi autor de um conjunto de obras pioneiras na utilização do vídeo e do computador na produção literária, que constituem uma "síntese da consciência autorreflexiva da ciência e da arte contemporânea" (na Universidade Aberta, nomeadamente, desenvolveu entre 1985 e 1989 um projecto de criação de videopoesia denominado Signagens).

A sua prolífica actividade artística foi apresentada em numerosas exposições colectivas, em Portugal e no estrangeiro (entre as quais a histórica Alternativa Zero, 1977); realizou diversas exposições individuais (Galeria 111, Lisboa, 1965; Galeria Buchholz, 1974; Galeria Quadrum, 1978; etc.), espectáculos e happenings (Galeria Divulgação, 1975; Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985; etc.). Na sua actividade enquanto poeta e crítico publicou dezenas de livros (entre os quais a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, 1959, em colaboração com Maria Alberta Menéres).

Em 2006, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves apresentou O Caminho do Levema, uma grande exposição retrospectiva da sua obra; da poesia concreta e experimental à infopoesia, passando pela videopoesia, sem esquecer a criação de imagens fractais, a mostra reuniu uma seleção de obras representativas de quase cinco décadas de trabalho. Em Coimbra, na sua exposição Do Leve à Luz (integrada no ciclo Nas Escritas PO.EX, 2012), apresentou 14 novos Videopoemas.

A 10 de junho de 2017, foi feito Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

Morreu na noite de 29 de agosto de 2020, aos 88 anos, em São Paulo.

 

Transgressão

"[...]para mim, trabalhar o verso, trabalhar a prosa, trabalhar o signo não verbal, quer com meios gráficos convencionais ou com meios tecnológicos avançados, faz parte de um processo total que eu chamo poiésis, isto é, a produção do artefacto, a produção do objecto, mas do objecto novo, evidentemente. E é justamente nesta inovação, ou nos aspectos transgressivos em relação às normas estabelecidas para a produção de versos, de poemas em prosa ou até mesmo de poemas visuais, é na transgressão que, para mim, se encontra o ponto crucial dessa produção". E. M. de Melo e Castro, 2001[

 

Algumas obras

Poesia[editar |editar código-fonte]

Entre o Som e o Sul (1960)   Queda Livre (1961)    Mudo Mudando (1962)   Ideogramas (1962)

Objeto Poemático de Efeito Progressivo (1962)      Poligonia do Soneto (1963)   Versus-in-Versus (1968)    Álea e Vazio (1971   Visão/Vision (1972)       Ciclo de Queda Livre (1973) – antologia      Concepto Incerto (1974)        Resistência das Palavras(1975)   Autologia: Poemas Escolhidos 1951-1982 (1983) – antologia          Entre o Rigor e o Excesso: um Osso(1994)    Finitos mais Finitos (1996)     Trans(a)parências – Poesia I, 1950-1990 (1990) – antologia; Grande Prémio de Poesia Inaset – Inapa, 1990     Enquanto Jactos e Hiatos (1994)  Algorritmos: Infopoemas (1998)

 

Poesia experimental portuguesa

Poesia Experimental Portuguesa, Experimentalismo Português ou PO-EX, é um movimento poético surgido no início da década de 1960 e lançado a partir da publicação em julho de 1964 da revista Poesia Experimental, organizada por António Aragão e Herberto Helder, contando com a colaboração de António Barahona da Fonseca, António Ramos Rosa, E. M. de Melo e Castro e Salette Tavares. O «1º caderno antológico» de Poesia Experimental foi publicado nos Cadernos de Hoje (MONDAR editores). Teve continuidade (2º caderno) em edição dos autores, em 1966.

Tendo entre seus principais autores e teóricos poetas como E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly e M. S. Lourenço, os dois primeiros muito ligados inicialmente à Poesia Concreta, o movimento foi forte, pelo menos até os anos de 1980, sendo substituído por outras tendências da Segunda vanguarda, como a Poesia visual e a Poesia sonora.

Antecedentes

As raízes da poesia experimental portuguesa remontam aos anos 1950. Num clima muito criativo, desenvolvem-se, no pós-guerra, três posições poéticas fundamentais:

Grupo da Távola Redonda, com António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira, que tenta uma renovação da lírica tradicional;

Surrealistas, representados por António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos;

Aproximação ao realismo da revista Árvore e de António Ramos Rosa, que tenta uma interiorização da experiência do real através de um distanciamento dos modelos de Fernando Pessoa.

Tudo isto prepara a famosa "ruptura dos 60" que consiste numa mudança radical da posição do poeta em relação aos seus instrumentos de trabalho.

 

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