terça-feira, 8 de setembro de 2020

Mundo fascinante

 

Qual pasmaceira! São histórias de terror, estas que já temos escutado e lido, que Teresa de Sousa, valentemente, nos resume. Só desejamos que lhe não suceda mal algum, ainda que seja por conta da nossa insignificância como povo. Quanto às alianças económicas germano-russas – e também Trump _ putinianas - fazem parte dos jogos do poder, qu’en savons-nous? Já a Bíblia conta… e os poetas gregos também segundo Frederico Lourenço, que traduz alguns, entre os quais Teógnis, e a banalidade intemporal dos seus conselhos ao amigo, e a consciência trágica da astúcia humana, que ele, afinal, metaforiza no polvo, de que Vieira se serviu também, na sua extraordinária diatribe aos peixes, num sentido, em todo o caso, mais negativo do que o polvo de Teognis (séc. VI a.C), que até serve de exemplo de flexibilidade:

«Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor  (in Sermão de Sto António aos Peixes)

Escrevera Teógnis (séc. VI a. C):

“Coração, mostra a todos os amigos uma disposição variável,  /  misturando a disposição que é própria de cada um.  /  Toma como modelo o polvo astuto, que parece  / .confundir-se com a rocha a que está agarrado.  /  Ora vai nesta direcção, ora assume um aspecto diferente.  /  A sabedoria é melhor do que a inflexibilidade /  em demasia te não agites com os cidadãos agitados,  /  Ó Cirno, mas segue a vida do meio, como eu…..  (in ”POESIA GREGA” – De Hesíodo a Teócrito»  -  Frederico Lourenço

OPINIÃO

Como lidar com ditadores

Como enfrentar os ditadores quando o líder da maior e mais poderosa democracia do mundo olha para o lado?

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 6 de Setembro de 2020

1.O que fazer quando o regime russo recorre sistematicamente ao envenenamento dos seus opositores – dentro e fora das fronteiras da Rússia? A resposta não é fácil. Nos últimos dias foi possível observar como as democracias têm dificuldade em encontrar uma resposta comum, simultaneamente eficaz e credível. Alexei Navalny, uma das caras mais emblemáticas da oposição a Vladimir Putin, encontra-se internado e a recuperar num hospital de Berlim, graças à pressão internacional que levou a Rússia a aceitar a sua transferência. Navalny, como outros antes dele, foi envenenado com um agente químico de fabrico exclusivamente militar – o novichok, fabricado pela União Soviética nos anos 70 e 80no aeroporto de Tomsky, na Sibéria Ocidental, quando se preparava para embarcar com destino a Moscovo, depois de uma acção de campanha contra a corrupção, o seu tema de eleição. O Kremlin nega qualquer responsabilidade. A Europa pede um inquérito rigoroso. A NATO também.

O desplante com que Putin desafia o Ocidente já fez do novichok um velho conhecido. O caso mais recente foi a tentativa de envenenamento com o mesmo agente químico de um antigo espião russo a viver no Reino Unido, Sergei Skipral, e da sua filha Yulia, em 2018. É longa a lista de opositores ao regime de Putin eliminados por envenenamento ou, pura e simplesmente, abatidos a tiro. Ana Politovskaya, jornalista da Novaya Gazeta que denunciou os crimes cometidos na Tchetchénia, sobreviveu a uma tentativa de envenenamento em 2004 e foi abatida a tiro à porta da sua casa de Moscovo, em 2006. No mesmo ano, Alexander Litvinenko, ex-agente do FSB (sucessor do KGB), que trabalhava para o MI6, foi envenenado em Londres por polónio. A sua agonia fez manchetes no mundo inteiro. Boris Nemtsov, antigo vice-primeiro-ministro de Boris Ieltsin e uma das figuras mais proeminentes da oposição a Putin, foi abatido a tiro numa ponte de Moscovo a 500 metros do Kremlin. Um dos seus consultores sobreviveu a duas tentativas de envenenamento em 2015 e dois anos depois. São os casos mais mediáticos. Haverá muitos mais. O Kremlin enjeitou sempre qualquer responsabilidade.

Em Tomsky, numa sessão pública, alguém perguntou a Navalny como explica ao facto de continuar vivo. Corria o boato de que seria uma “toupeira” do Kremlin. Segundo a descrição da Der Spiegel, o opositor sorriu: “Agora tenho de passar a justificar o facto de não ter sido assassinado?” Apontou para o pin que alguém na audiência usava ao peito e onde se lia “A Ponte Nemtsov”. “Se eles me matarem, criar-lhes-ei mais problemas, tal como aconteceu com Nemtsov – pins, T-shirts, manifestações em seu nome.” Ninguém na sala poderia imaginar que seriam as suas últimas horas antes de ficar em risco de vida.

2. Foi a própria Angela Merkel quem pressionou directamente Putin para autorizar a transferência do dissidente russo para Berlim. Foi ela quem anunciou, na quinta-feira, que Navalny tinha sido “inequivocamente” envenenado, classificando o acto de “tentativa de homicídio”. A chanceler intimou o Kremlin a apurar responsabilidades, exigindo um inquérito transparente. A NATO já fez a mesma exigência. Os líderes europeus excederam-se em palavras de condenação. A Comissão falou de mais sanções, embora acrescentando que primeiro é preciso apurar os factos. Josep Borrel, o chefe da diplomacia europeia, pediu a Putin que colaborasse numa investigação internacional.

O passado recente ensina-nos que, de um modo geral, as palavras de condenação e as decisões tomadas pelas instituições europeias não têm capacidade de dissuasão junto de Putin, que prossegue o seu comportamento criminoso e cínico. Foi o que fez novamente, ainda que as suas palavras tenham perdido toda a credibilidade. E teve, mais uma vez, a prestimosa ajuda de Donald Trump.

O Presidente americano voltou a comprovar a sua estranha amizade – ou cumplicidade – com o candidato a ditador russo, ao declarar que Washington vai abrir uma investigação, mas que não lhe parece que o perigo venha do seu amigo do Kremlin. Preferiu apontar o dedo a Pequim, como se fosse verosímil que o regime chinês decidisse envenenar um opositor de Putin na própria Rússia. “É interessante que toda a gente mencione sempre a Rússia, mas eu penso que, nesta altura, a China é provavelmente a nação sobre a qual devíamos estar a falar, muito mais do que a Rússia.” Foram estas as suas palavras. Está longe de ser a primeira vez que defende Putin publicamente, incluindo contra as suspeitas largamente confirmadas de intervenção russa na campanha presencial de 2016 (através de meio electrónicos), comprovada pelos serviços secretos americanos. A imprensa dos Estados Unidos lembrava ontem que o Presidente ainda não se pronunciou publicamente sobre informações dos serviços secretos segundo as quais a Rússia oferecia um prémio monetário aos talibãs por cada soldado americano abatido no Afeganistão. Para um país que tem por hábito venerar os seus militares, é ir talvez longe demais.

Está aqui o maior problema das democracias: como enfrentar os ditadores quando o líder da maior e mais poderosa democracia do mundo olha para o lado e age de acordo com uma lógica que não tem nada a ver com os valores e os interesses das democracias ocidentais? vale de pouco aos seus olhos. A força da Aliança está na comunidade de valores entre as duas margens do Atlântico e na força militar dos EUA. Quando o secretário-geral da NATO ou os governos europeus avisam o regime de Moscovo de que sofrerá consequências, o mais provável é que Putin se limite a sorrir. Enquanto se mantiver a distância política entre os dos lados do Atlântico, que não parou de aumentar desde que Trump foi eleito, a NATO vale de pouco aos seus olhos. A força da Aliança está na comunidade de valores entre as duas margens do Atlântico e na força militar dos EUA.

3. Depois, há as dificuldades da própria Europa para encontrar uma estratégia comum suficientemente credível para fazer a Rússia pensar duas vezes. A Alemanha teria sempre um papel decisivo. Em 2014, quando Obama estava na Casa Branca, a chanceler foi determinante para a aplicação de duras sanções económicas contra Moscovo na sequência da agressão à Ucrânia e da anexação da Crimeia. Até agora, a União Europeia sempre renovou essas sanções. Mas a ambiguidade alemã face à Rússia não desapareceu. Tem raízes históricas e traduz um interesse económico imediato. Foi um escândalo quando o chanceler social-democrata Gerhard Schroeder (1998-2005) alinhou com Putin na construção de um gasoduto ligando directamente o território russo à Alemanha para abastecê-la de gás natural produzido russo. Não houve consequências. Na altura, a Alemanha justificou o empreendimento alegando não querer ficar dependente do gasoduto que atravessava a Ucrânia e cuja torneira Putin mandava fechar de cada vez que havia em Kiev manifestações pró-europeias. Os Bálticos e a Polónia protestaram veementemente, sem qualquer resultado.

Nos últimos dias, aumentou significativamente a pressão, fora e dentro da Alemanha, para que o novo gasoduto seja suspenso. O politólogo alemão Klaus Segbers argumentava num artigo publicado no semanário alemão Die Zeit que já houve conversa suficiente com Putin. Deixou de fazer sentido. Escreve o jornal que, com a ocupação de partes da Geórgia e da Ucrânia, o caso do voo MH17 da Malasya Airlines, abatido sobre a Ucrânia, e os sucessivos assassínios de políticos da oposição, Moscovo provou não estar interessado em dialogar com o Ocidente. O próprio presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Bundestag e membro da CDU da chanceler, Norbert Rottgen, pediu o fim do Nord Stream II. Outros políticos sugeriram, pelo menos, uma moratória. A chanceler afastou essa hipótese. Mas, no geral, os analistas sublinham que a Europa tem poucos meios para fazer pressão sobre Putin, a não ser a solução “impossível” de deixar de comprar o seu gás.

O problema é que as democracias têm cada vez mais dificuldade em lidar com os ditadores, de resto em número crescente. A China pode ser o maior desafio estratégico que enfrentam. Não é o único. Deixar o campo aberto aos regimes autoritários não será o melhor caminho para conter o expansionismo de Pequim. O que fazer? A esperança só pode estar numa mudança de inquilino na Casa Branca.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

TÓPICOS

RÚSSIA  MUNDO  VLADIMIR PUTIN  OPINIÃO  ALEXEI NAVALNY  UNIÃO EUROPEIA  UCRÂNIA

 

COMENTÁRIOS:

Joao EXPERIENTE: 1 Pois é, tanto arengar e tanto implicar e criar casos com os russos … Ah Ah e os russos estão na deles, até parece que nem ligam puto. Óbvio que estas arengas e narrativas inflamatórias é para consumo interno cá, para justificar as guerras, os esforços de guerra, o armamento, e os negócios chorudos que nós pagamos. Pois é, se houver uma oportunidade fazem à Rússia o que fizeram ao Iraque e a muitos outros, bombardeamento, limpeza étnica, terraplanagem transformando aquilo em terreno fértil para exploração das empresas americanas, holandesas, francesas, inglesas, etc … o habitual.

2 Mas este é um osso mais duro de roer, durante séculos todas as potências já tentaram abocanhar aquilo e não conseguiram, nem os teutões nem o Clinton, no entretanto nem os polacos/lituanos nem o Napoleão, nem os ingleses, espanhóis, croatas, italianos, australianos, americanos, checos, alemães, japoneses, nem sequer o Hitler conseguiu e bem que tentou, … todos tentaram, até os portugueses lá andaram, e as razões inventadas foram muitas, muitas mentiras à escolha para empolgar as hostes. E cá andam agora estes arautos a proclamar e a anunciar mais uma cruzada, agora pela “Liberdade” e contra o “Comunismo” quando não se trata nem de liberdade nem de comunismo mas sim de dominar e abocanhar, como sempre matando e roubando uns ... para encher os bolsos dos outros ... e morra quem morrer. 06.09.2020

Dragon EXPERIENTE: Australianos?????

Gabriela Cardia INICIANTE: Vendo bem, o melhor será tratar Putin como a sua extrema-esquerda trata os ditadores venezuelanos, cubanos, comunistas ... 06.09.2020

123 456.882731 EXPERIENTE: Qual extrema-esquerda? Quais são as características que definiriam uma extrema-esquerda? E porque é que acha que essas características são "extremas"? 06.09.2020

Jose EXPERIENTE:Toda a ingerência nos assuntos internos dos povos, nações e seus Estados é crime expansionista, colonialismo e terrorista. As relações entre os povos, nações e seus Estados têm de decorrer no quadro do direito internacional, por meios diplomáticos para serem relações civilizadas. Ingerências, sanções, cercos, bloqueios, sabotagens, roubos, golpes são actos de guerra selvagem e bárbara. 06.09.2020

joorge EXPERIENTE: Obviamente, uma tentativa de assassinato é acto monstruoso. Mas as reacções deveriam ser um pouco mais pensadas. Temo que o resultado disto tudo seja: a Europa passa a comprar muiiiito mais caro o gaz aos EUA; a Rússia passa a vender o gaz à China; a China - mais uma vez - cresce; a Europa - mais uma vez - empobrece. E as relações Rússia / China fortalecem-se cada vez mais. Mas isto é tudo conversa e Putin sabe bem. Vê-se, aliás, pela resposta: despreocupadíssima e arrogante. Ele agora está mais preocupado com o gigantesco gasoduto para a China. 06.09.2020

manuel.m2 INICIANTE: Há anexações e anexações. Por exemplo a da Crimeia e a dos Montes Golã, território soberano da Síria. A Autora fala nas severas sanções impostas pela UE a quem perpetrou a primeira ,mas nunca nada disse sobre as consequências da segunda. Não quererá a Autora esclarecer finalmente os seus leitores ? Fala também no gasoduto em construção no Báltico que ligará directamente a Alemanha à Rússia e que será alternativa ao único actualmemte existente que atravessa a Ucrânia, país que recebe pingues lucros pelo facto, além de ter o poder politico ,ela sim, de fechar a torneira quando lhe convier, privando a Rússia da sua principal fonte de receitas. Quanto ao envenenamento de Navalny ocorre a velha pergunta de Cícero: Cui bono? A quem aproveita? 06.09.2020

vinha2100 MODERADOR: Brilhante, como sempre. Mas parece que a solução “impossível” a que a Teresa se refere está aí a ser considerada: inviabilizar o Nordstream 2. Isso, meus amigos, seria um golpe de génio e uma verdadeira machadada para a ditadura assassina de Putin. 06.09.2020

Francisco Manuel Napoleão INICIANTE: A rede transatlântica está em verdadeira euforia. Geralmente a sua propaganda de tão depravada não vai a papel. Que os jornais publiquem qualquer coisa sobre a Rússia em tempos de crise é uma óbvia necessidade económica pois os dividendos com a publicidade com essas notícias disparam. Mas é verdadeiramente fascinante como os parasitas da propaganda saltaram da gaveta, inventando todo o tipo de propostas e radicalismos bélicos que se alguma vez fossem postos em prática rebentariam com o mundo em horas. Porque nenhuma das propostas em causa foram alguma vez equacionadas? O mundo ocidental simplesmente cairia em bancarrota, fome, desemprego. Basta uma faísca. Tudo isto tem a ver com a maior burla financeira na Alemanha, cujo homem julgam estar refugiado na Rússia. Pesquisem! 06.09.2020

Dragon EXPERIENTE Nome do homem, por favor. 06.09.2020

JLourenço INICIANTE: A única bitola de Trump é a dos seus interesses pessoais. É de longa data o seu namoro com Putin. Há que mostrar-se reconhecido para com o mestre e não levantar grandes ondas. 06.09.2020

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