Um excelente texto de Paulo Rangel, em defesa dos alunos-alvo
–se não vítimas – dos objectores de consciência que foram seus pais, com o direito
de o serem, de resto, neste caso específico. Paulo Rangel apoia e elogia a decisão do conselho de turma que
entende que os tais alunos de Famalicão, faltosos à Cidadania, devem passar de
ano, para não serem prejudicados na sua vida escolar. O texto, correcto e
educado, mereceu, contudo, um comentário irónico, ou, pelo menos, que o quis
parecer, bem à nossa moda portuguesa.
OPINIÃO
Escola de Famalicão: entre a
razoabilidade e a “virulência virtual”
Em toda esta contenda, que abriu um
debate estimulante e importante, as duas crianças parecem ser as grandes
esquecidas.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 8 de Setembro de 2020
1.O debate público está hoje muito
marcado, quando não mesmo capturado, pelo radicalismo e extremismo de posições,
que conduz invariavelmente a uma simplificação dos argumentos e a uma
“diabolização” dos interlocutores. Esta
radicalização dos discursos e dos posicionamentos é bem visível no espaço
público português, mas inscreve-se num movimento e numa tendência
verdadeiramente global. As redes sociais, que basicamente dispensaram os
grandes mediadores tradicionais (órgãos de comunicação social ou partidos, por
exemplo), são as grandes catalisadoras deste clima de “violência e virulência
virtual” em que os extremos se estimulam e alimentam reciprocamente. A verdade
é que a quase ninguém é permitido ter visões ou opiniões complexas, em que os
pontos de vista e as posições não se acantonem num dos lados da barricada.
Simplificando, se alguém é a favor da
descriminalização do aborto não pode estar contra a despenalização das drogas
leves; se alguém é a favor do casamento gay não pode posicionar-se contra a
eutanásia; se alguém se diz anti-racista e anti-colonialista não pode orgulhar-se
de Vasco da Gama ou de Os Lusíadas. Unge-se
a ideia de que só se pode ser monoliticamente progressista ou conservador,
liberal ou social, nacionalista ou cosmopolita. Na era da diversidade, não há
lugar para pensamentos híbridos nem posicionamentos tingidos. Não há matizes,
nem ângulos, nem manchas, nem esquinas. Nenhum problema pode ser visto na sua
complexidade, integrando paradoxos, contradições, dúvidas, ambiguidades. Tudo
tem de ser a “preto e branco”, ou nem isso, pois a linguagem “preto e branco”
pode ser vista como tributária do racismo. Afinal, e contra as bandeiras
multicores que em todo lado se desfraldam, nada pode ser “arco-íris”, porque
este tem sido e é, na gritaria cromática das redes sociais, um pobre, um
paupérrimo “arco-íris”: um “arco-íris” de uma só cor e de uma cor só.
2. Esta
radicalização é visível no caso da
disciplina de “Cidadania
e Desenvolvimento”, erigida em “velha-nova” querela da “Religião
e Moral”, agora em versão “laico-progressista”. É significativo que quase todos
se pronunciem – e legitimamente – sobre as questões de princípio, de filosofia
da educação e de direitos fundamentais, mas poucos se concentrem nas duas crianças que estão no meio da contenda.
Duas crianças de carne e osso, duas crianças com coração e cabeça.
Do lado dos que professam a sua fé na
imposição da moral escolar, poucos são os que se preocupam com a absoluta
desproporção da dupla reprovação retroactiva e do seu impacto na vida daquelas
duas crianças – que têm existência própria e direitos autónomos dos seus pais.
Do lado dos que apoiam a “inviolável” objecção de consciência,
poucos são os que questionam as consequências da enorme exposição pública e
mediática, primeiro na sua comunidade e agora na arena nacional, que os pais objectores
impuseram aos seus filhos. Em toda esta contenda, que abriu um debate
estimulante e importante, as duas crianças parecem ser as grandes esquecidas.
Não
ponho em causa as rectas intenções dos pais e dos seus
apoiantes ou dos seus
antagonistas, que, creio firmemente, querem o melhor para aqueles
dois jovens e decerto para todos os outros que genuinamente aspiram a
representar. A verdade é que, mesmo que inadvertidamente, ambos os lados
“instrumentalizam” os dois cidadãos menores para prosseguirem os seus fins
“axiológicos” ou “ideológicos”. Para os arautos da novel moral
pública, de nada parece interessar a desproporção manifesta e até inaudita das
sanções que, apesar de motivadas por legítimas convicções dos pais, recaem
afinal sobre os filhos. Não é
castigando os filhos que se corrigem os pais. E para os defensores da liberdade
de consciência e da coragem dos pais, nada os preocupa na intrusiva exposição
dos dois alunos a uma polémica nacional. Como estarão eles a viver este
processo, que marcas lhes deixará, como o avaliarão no futuro? Uma coisa é os
pais defenderem as suas convicções, outra, bem diversa, é fazerem dos seus
filhos menores os protagonistas dessa luta.
3. Olhando
com distância para tudo isto, e para mim sem surpresa, ainda foram os
professores dos alunos – o dito Conselho de Turma – quem foi
verdadeiramente sensato e equilibrado; pensando, antes de mais, no superior
interesse daqueles dois jovens. Decerto, não aplaudindo a falta às
aulas, mas compreendendo que os jovens não eram de todo responsáveis por esse
comportamento, resolveu passá-los de ano. Significa isto que tomou algum
partido a favor ou contra qualquer direito ou “pseudo-direito” dos encarregados
de educação? Julgo que não; limitou-se a tomar em conta a situação dos jovens,
com sentido das proporções e decerto acautelando os interesses da escola.
Os
pais, de um lado, e o ministério, do outro, meteram as crianças numa “guerra”
que não era nem devia ser a delas
4. Sempre
fui a favor da liberdade de aprender e de ensinar e, por isso, defenderei até
ao fim que uma disciplina com os conteúdos e com as finalidades da Cidadania e
Desenvolvimento seja facultativa.
Reconheço até que os pais nem foram tão longe, cingindo-se a invocar objecção
de consciência. Mas sinceramente, diante dos dados do caso, também não creio
que o “dano” infligido à educação e formação das crianças fosse sério ou grave. De resto, como sempre aconteceu com professores de
todas as disciplinas, os pais estão em posição privilegiada para rebater ou
corrigir ideias ou valores que a escola veicule ou transmita. E não é crível
que na interacção com colegas e com a sociedade em geral aqueles jovens não
sejam confrontados com mundividências bem diferentes daqueles que cultiva a respectiva
família. Parece-me, pois, que os pais, de um lado, e o ministério, do outro,
meteram as crianças numa “guerra” que não era nem devia ser a delas. Algo me
deixou esperançado: a posição madura e delicada do Conselho de Turma. Pena que
a sua sageza não tenha sido percebida.
SIM e NÃO
NÃO. Boris
Johnson. O “Brexit” saiu do radar. Mas os sinais que o primeiro-ministro
britânico tem deixado são muito preocupantes, rasgando o acordo de saída. Tudo
aponta para que teremos um “hard Brexit”.
NÃO. Parlamento
Europeu. Nada contra o retomar da normalidade. Mas reunir o plenário em
Estrasburgo, quando era possível mantê-lo em Bruxelas, deslocando milhares de
pessoas, é exponenciar riscos.
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