Digo, espectro. Deixarão de contar os que ainda se importam, como Nuno Pacheco. Não somos, de resto, mais do que isso, neste país de mentirinha. Dúvidas, temo-las em tudo, hoje, mas a escrita, segundo o Acordo espectral, arrasou a pronúncia e o futuro o dirá. E ninguém existe, por cá, que possa reverter isso, enquanto ainda é tempo de reconhecermos as diferenças fonéticas, preocupados antes com as diferenças políticas, sociais ou futebolísticas, ponto assente dos nossos interesses… espectrais.
OPINIÃO
Paira um espectro sobre os amigos do
acordo ortográfico — o espectro da fonética
O teste do Word é elucidativo: a
grafia que nos impingiram em Portugal não é tragável, nem mesmo por uma
máquina.
NUNO PACHECO
PÚBLICO, 24 de Setembro de 2020
Há dias, o jornal Voz Portucalense, semanário
da diocese do Porto, trazia um curioso artigo intitulado “Vamos aprender a
pronunciar a língua portuguesa?”. M. Correia Fernandes, o seu autor, partindo
de um facto antigo (“as palavras não se escrevem como se pronunciam”) e de uma
conclusão sensata (sendo uma convenção, a ortografia “deve servir para se
distinguirem as palavras e não para as confundir”), sugere que passemos a
pronunciar melhor as palavras e que dispensemos muitos dos anglicismos que para
aí andam a despropósito. Mas não se fica por aí. Escreve, a dado passo, o
seguinte: “Há palavras em que o acordo
ortográfico deveria ter servido para valorizar a distinção de muitos vocábulos
em que a grafia fosse orientada para ajudar a pronunciar as consoantes,
tornando-as de mudas em pronunciadas.” E dá como exemplos “contrato” (elemento jurídico) e “contracto”
(de contraído, devendo ler-se o c), “ótico” e “óptico” (lendo-se
o p), “repto” e “recto” (sugerindo que se leia o p e
também o c), dizendo que as ditas consoantes mudas deveriam ser também pronunciadas
em “facto” (já o são), “factor”, “acto”, “actor”, “concepção” e
“percepção”, etc. Tudo isto parece contrariar o acordo ortográfico de 1990,
o tal que decepou consoantes a eito. Mas o autor escreve com o acordo de 1990…
Sem desmerecer as boas intenções
implícitas no texto, dir-se-á que andamos como o bicho que corre atrás da
própria cauda a tentar mordê-la sem estranhar que ela se afaste quando se move.
O acordo ortográfico, mexendo na escrita, mexeu também na
fonética. Isto já foi dito mil vezes, mas nunca é demais repetir.
Escrever “fator” e pretender que se leia “fàtôr” (factor) é ilusório. Daqui
a uns anos, diremos “âtor”, “dir’ção”, “obj’tivo” e disparates do género. Sim,
estamos a mudar a nossa fala por causa de uma escrita aberrante que, sendo
diferente da brasileira (e nunca é excessivo insistir nisto), não respeita o
nosso sistema vocálico e as suas idiossincrasias.
O autor estranha que se diga “xesso”
em vez de excesso, ou “xêntrico” em vez de excêntrico, só
que a erosão das palavras na fala é um fenómeno antigo, persistente e é não
apenas português. Estranho era que escrevêssemos “xesso” e “xêntrico”. Coisa
que, a seu modo, o acordo faz. Há um interessante teste, que qualquer leitor
poderá fazer por si, e que consiste em dar à “máquina” do Word, programa de
texto (aqui, uns lerão “tâichtu” e outros “têchtu”, sem que a escrita se
altere), um lote de palavras para “ler” em voz alta. A máquina usa um algoritmo
introduzido por mão humana e esse algoritmo está adaptado ao português de
Portugal, como logo se percebe.
O processo é simples: copiem as palavras
indicadas para uma folha do Word em branco, escolham a opção “Rever” no menu,
coloquem o cursor do rato no início da primeira palavra e carreguem em “Ler em
voz alta”, que a máquina lerá tudo numa voz feminina sintetizada. Para parar,
basta carregar de novo no mesmo botão. Numa série de palavras, o som da escrita
segundo o acordo de 1945 e o de 1990 soará igual. Exemplos (copiem-nos e ouçam):
Acção, Ação; Acepção, Aceção; Activo,
Ativo; Actual, Atual; Baptista, Batista; Cacto, Cato; Coacção, coação;
Espectáculo, Espetáculo; Exactamente, Exatamente; Factura, Fatura; Percepção,
Perceção; Reactor, Reator; Recto, Reto; Recepção, Receção; Selecção, Seleção;
Tractor, Trator.
Porém, noutras, o contraste entre
fonéticas é chocante. E esta lista é bem maior (experimentem copiá-la e depois
ouvi-la): Adjectivo, Adjetivo; Adopção, Adoção; Arquitecto, Arquiteto; Aspecto,
Aspeto; Acto, Ato; Actor, Ator; Actores, Atores; Baptismo, Batismo; Baptizado,
Batizado; Bóia, Boia; Correcção, Correção; Correcto, Correto; Detecção,
Deteção; Detectar, Detetar; Dialecto, Dialeto; Direcção, Direção; Directa,
Direta; Efectivamente, Efetivamente; Efectivo, Efetivo; Electivo, Eletivo;
Efectuar, Efetuar; Electricidade, Eletricidade; Electrónica, Eletrónica;
Espectador, Espetador; Expectativa, Expetativa; Exacto, Exato; Excepto, Exceto;
Exceptuando, Excetuando; Factor, Fator; Fracção, Fração; Indefectível,
Indefetível; Infectado, Infetado; Infecção, Infeção; Injecção, Injeção;
Insecto, Inseto; Inspecção, Inspeção; Inspector, Inspetor; Interactivo,
Interativo; Jóia, Joia; Lectivo, Letivo; Nocturno, Noturno; Objectiva,
Objetiva; Objecto, Objeto; Perceptível, Percetível; Perspectiva, Perspetiva;
Projecção, Projeção; Projecto, Projeto; Prospecção, Prospeção; Protecção,
Proteção; Protector, Protetor; Reacção, Reação; Receptor, Recetor; Redacção,
Redação; Retrospectiva, Retrospetiva; Selectivo, Seletivo; Sector, Setor;
Sectores, Setores; Tecto, Teto; Tracção, Tração; Vêem, Veem.
Burrice da máquina? Erro no algoritmo?
Não, erro no acordo. Não se pode torcer a barra e querer que ela fique direita
ao mesmo tempo. Claro que a máquina tem falhas: abre indistintamente as vogais
em “coação” (de coar) e “coacção” (coagir); e lê “acordam” como “acurdam”. Mas
ainda assim tem suficiente “entendimento” para abrir o u em “equitativo” ou
“equidade” e fechá-lo em “equilibrado” ou “equinócio”; e dá o devido som às
vogais em contexto, abrindo o o em “quando eu acordo” (ò) e fechando-o na frase
“assinaram o acordo” (ô). Por isso, este teste é elucidativo: a grafia que nos
impingiram em Portugal não é tragável, nem mesmo por uma máquina.
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