De Maria João Avillez. Ainda bem que retomou
as suas lides no Observador, embora eventualmente apenas para
recordar o seu grande amigo morto, da forma personalizada e evocativa com que
se lhe dirige em espírito, reconstituindo vivências de ambos, em tempo de
irmanação de ideais políticos então estabelecidos, não comuns, contudo, a
outros que se sentiram defraudados por tal estabelecimento. Mas é sempre um
prazer ler MJA, sobretudo quando, é certo, corajosamente satiriza o status de desmandos
vários no nosso país, causados pelo estabelecimento dos ditos ideais.
Vicente /premium
A minha vida, pura e simplesmente,
nunca será desligável profissionalmente (nem humanamente) da tua e por isso
levaste contigo um bocadinho de mim, tanto – mas tanto – foi o que vivemos
juntos.
Maria João Avillez
OBSERVADOR, 09 set 2020
1Morreste-me.
Assim dito parece uma coisa meia dramática, meia piegas mas não é senão isto.
Partiste. Tu acharás que foste para parte incerta, eu sei que não e que até me
estás a ouvir, mas o que me entristece até ao fundo do coração é que naquele
meu pequeno reduto de amigos onde antecipo que a cumplicidade será instantânea
ou que as coisas se resolvem com um olhar ou uma meia palavra, já são hoje mais
os mortos que os vivos. E, agora, tu. A minha vida, pura e simplesmente, nunca
será desligável profissionalmente (nem humanamente) da tua e por isso levaste
contigo um bocadinho de mim, tanto – mas tanto – foi o que vivemos juntos.
Primeiro
no Expresso, depois no Público, que o mesmo é falar numa considerabilíssima parte do
melhor jornalismo que se fez — que tu fizeste — no país. Ah, quantas coisas,
histórias, vida: descobertas, inovação, emoção, amores, desamores, tensões,
zaragatas que por vezes deslizavam para tremendas — ou mesmo fatais — zangas;
somas de egos, maus feitios, talento a rodos, sintonias, dessintonias. Tudo
isto sempre tão inspirado quanto assente na tua aguda perspicácia, no risco que
tratavas por tu, nessa criatividade que era a tua assinatura e da qual fui —
sorte minha — uma atentíssima e vivíssima “testemunha-praticante” (não me
ocorre melhor expressão).
E
na liberdade, claro está. Primeiro mandamento: liberdade de pensar, dizer, escrever, discutir,
discordar. Aprendi e ganhei por estar profissionalmente ao teu lado (muitas
vezes discordando, mas que importância?), tão gloriosos foram esses teus (e
também um bocadinho nossos) anos oitenta
(1981/89) quando dirigias a Revista do Expresso. E que bem a “bolavas”,
tão bem que julgo que nunca mais voltou a ter a mesma cintilação: tudo por ali
passava — do novo ao diferente; tudo ali se descobria; tudo ali se discutia ou
polemizava culturalmente, politicamente, civilizacionalmente.
Que
anos de oiro, santo Deus, e nós tão novos… Era uma equipa, lembras-te? O Nuno Pacheco, o
Augusto Seabra, o Miguel Esteves Cardoso, o António Mega, que, se a memória não
me atraiçoa, idealizou contigo o primeiro número da tua era na Revista. Mais
tarde o Zé Manuel Fernandes, o Vítor Malheiros, o Eduardo Prado Coelho, a Clara
Ferreira Alves, o Alexandre Melo, o Espada (e temo ter esquecido alguém). E
todo este produtivo e meio louco mundo supervisionado e atendido pela Teresa
Schmidt, abelha mestra daquela redacção sui generis. A curiosidade estava
alerta, a ousadia sempre a bom nível, havia consciência e consistência. E
havia chama, noitadas, boémia e homéricas discussões à mistura. (Devia ser
uma espécie de “marca da casa”: já muito tempo antes, na década de setenta,
o dr. Balsemão, coitado, que então nos “dirigia”, se fartava — sempre em vão —
de avisar para o ar dos corredores que “aquilo não era o Scala de Milão”,
quando confrontado com um conjunto “de prima donas caprichosas” que nunca
aterravam na Rua Duque de Palmela antes do meio dia, quando ele, director do
jornal, chegava bem antes disso a uma redacção quase deserta.)
A
César, porém, o que é de César: se nada terá talvez igualado esses anos
oitenta, muito do seu fulgor se deve à bênção de Marcelo
Rebelo Sousa, à época
director do Expresso. O
Marcelo desses anos merece evocação: previu, promoveu e amparou o caudal
criativo de Vicente Jorge Silva e confiou na sua equipa. Nunca seria eu a
esquecê-lo e tu, Vicente, sei que ainda menos.
2Depois
a saga continuou com a fundação do Público,
onde voltaste a imprimir — ampliando-a — a tua qualidade: muito bom jornalismo,
mas agora num registo diário, supremo desafio. Ganho, aliás. Também o testemunhei e nele
participei: tantas reportagens, tantas entrevistas, tantas capas do Magazine
por ti “sopradas” ou “encomendadas” que eu depois te dava a ler num
alvoroço, antes de elas “saírem”, à espera de “aprovação” — e foi sempre assim.
Com certeza que te recordas de como era definitivo para mim um sim ou um
não teu… Devo-te, aliás, o melhor livro que fiz quando insististe que devia
publicar em livro — devidamente ampliadas — uma série de longas entrevistas
saídas no Público por ocasião do vigésimo aniversário de Abril de 74.
Dizer
que tenho vontade de chorar é dizer pouco, ficará sempre dolorosamente aquém.
Nada disto volta, nada será (ao menos) parecido, nem sei sequer se alguém disto
se lembra: as memórias são traiçoeiras ou justiceiras, raramente amáveis e
rarissimamente generosas. E a trezentos quilómetros de Lisboa tudo isto é ainda
mais triste, se possível. Uma dor despida onde me falta o aconchego e as
lágrimas dos nossos companheiros de viagem e de aventura.
3Como
tu bem sabes, e a Rosana também — e ainda hoje falávamos nisso as duas —, o
legado que me deixas é muito maior do que teres sido um criativo, um
catalisador, um fulgurante dinamizador de equipas, um óptimo director e um
grande jornalista, um cineasta apaixonado. Falta a pedra essencial que foi
fazendo de nós ao longo da vida muito mais que dois colegas. Falo de
amizade, já percebeste. Antiga, antiga… Semeada quando ambos entrámos
para o Expresso, em Setembro de 1974 (desculpa se me engano na data, mas
acho que não), frutificada ao longo de anos em Lisboa ou no Funchal, e
vicejante desde o início, mesmo que não nos víssemos a toda a hora e muito
discordássemos politicamente. Mas, oh, como falávamos bem entre nós, como
recordo os nossos jantares a quatro no “Riso” do Funchal, debruçado sobre o
mar, ou a mania que tinhas de ir comer “bodião”, connosco, na parte antiga da
cidade; a generosidade em nos emprestar a vossa casa na Madeira num verão dos
anos noventa, para irmos de férias com os filhos, com o “pretexto” de que vocês
“não precisavam dela pois iam para o Porto Santo”; os jantares no Campo Grande
e os almoços no nosso “oeste”, a vozearia, o riso quase contínuo (nunca mais
riremos os dois, nós que tínhamos o riso solto e a pender para o mesmo lado da
observação); as tuas magníficas “imitações” e descrições que fazias, ao
vivo e a cores, de tanta gente…; as discussões sem fim; uma genuína alegria
a escorrer; e tu sempre, sempre, a encher a sala e a “ocupar” a conversa com
uma originalíssima graça e essa tão peculiar personalidade que jamais me
atreveria a definir. Nem é preciso: preciso é continuar a tentar fazer bom
jornalismo e sobretudo a lembrar-te muitas vezes, evocar-te, falar de ti.
Ressuscitar-te. Em Portugal morre-se sempre de vez. Prometo-te que cá em casa
não vamos deixar que isso aconteça.
4Partiste.
Partiste e agora é isto, tristeza. Aquela desamparada, inconfundível tristeza
como costuma ser aquela da irremediabilidade.
COMENTÁRIOS:
Armando Heleno: Juntamente com Adelino Gomes, penso
que eram os decanos do jornalismo português, sobretudo os mais representativos.
Alberto Sousa: Homenagem sentida e elevada... Tão contrária a estes tempos de mediocridade
militante!...
Tomás Nunes: Excelente homenagem a um espírito livre! Excelente homenagem à Liberdade!
Graciete
Madeira: Belissimo texto!
Maria Nunes: Bonita e comovente homenagem.
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