segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Como na tal caverna


De que trata Platão, na sua “República”: os homens estão acorrentados, virados para uma parede, com uma luz por trás – provavelmente a do sol, que cria no muro fronteiro para o qual estão virados, as sombras da única verdade que conhecem, sombras dos objectos reflectidos e não os próprios objectos, como lhes ensinará o prisioneiro que consegue libertar-se e sair da caverna. António Barreto, julgo que por espírito de contradição pouco honesto, pois que ele foi dos que saiu da caverna, quer-nos prisioneiros dela, na ignorância efectiva das realidades e isso é má-fé – ou puro exibicionismo de uma superioridade que, provocatoriamente, finge desconhecer as realidades de uma deficiente formação cultural, ou apenas indisponibilidade temporal, na maioria das famílias – e que a escola deve suprir. A questão do ensino da cidadania nas escolas, julgo que não deve contestar-se, desde que seja orientada com seriedade e sem parti pris, no objectivo de esclarecer os jovens sobre o significado das designações políticas que os encaminharão – ou não – na vida, o que é também o papel da escola.

António Barreto teve comentadores que o apoiaram, mas não os coloquei, por deles discordar, obviamente.

OPINIÃO   Uma questão de educação

A escola deve ser democrática, na sua função social, permitindo o acesso de todos, mas não deve ensinar a democracia nem a cidadania. Não deve muito menos orientar comportamentos e atitudes, modelar espíritos e formar consciências.

ANTÓNIO BARRETO     PÚBLICO, 13 de Setembro de 2020

É uma discussão muito interessante, eterna e que volta sempre que é enterrada. Deve ou não a educação inculcar valores? Formar cidadãos? Modelar mentalidades? Educar os jovens no cumprimento dos seus deveres? Respeitar as regras morais estabelecidas pela Constituição? Reproduzir as crenças das gerações anteriores? A todas estas perguntas, a minha resposta é negativa. Não! A educação dispensada pelo Estado em regime democrático, designadamente a escolaridade obrigatória, não deve inculcar valores, moldar espíritos, formar consciências, criar cidadãos… Nem sequer produzir boas pessoas ou cidadãos exemplares. A instrução ajuda muito ao desenvolvimento humano, mas não são aquelas as suas funções.

Àquelas perguntas, ao longo das décadas e dos séculos, foram sendo dadas  A cidadania diversas, sendo que a controvérsia não cessou. Nunca houve acordo nem consenso. Mas, de vez em quando, ao coexistir com outras polémicas mais prementes, esta disputa acalmava-se. Agora, reapareceu! E ainda bem. Como é sabido, a discussão faz-se à volta do conteúdo da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento. O facto imediato é o da contestação de uns pais que desejavam retirar os filhos dessas aulas que consideravam atentatórias da formação que lhes queriam dar, pelo que reclamaram o direito à objecção de consciência. Aplaudido por organismos políticos e educativos mais situados à esquerda, o Estado recusou. No que foi muito criticado por vozes, organizações e personalidades, geralmente colocadas à direita. Mas, por uma vez, o afrontamento não é totalmente preto e branco. Há gente da direita no primeiro campo e gente de esquerda no segundo.

O currículo nacional, devidamente aprovado pelas leis vigentes e estabelecido pelos órgãos de soberania, não deixa abertas as portas à objecção de consciência. Nem de outra maneira poderia ser. Um currículo nacional serve para isso mesmo: para ser seguido, como unificador cultural de um país, sem objecções, até porque os programas académicos não devem dar o flanco a variedades ideológicas e a opções políticas ou religiosas. Deve, pois, ser respeitado.

O problema não é o da objecção de consciência. O problema principal é o da disciplina: não deveria simplesmente existir! Com este conteúdo em que tudo cabe, com este objectivo que é o de formar consciências, com esta preocupação que é a de modelar espíritos e orientar comportamentos em todas as áreas possíveis, da cultura à política, do direito às artes, dos afectos à sexualidade, do ambiente à natureza, esta disciplina deveria ser prontamente eliminada.

A escola deve ser democrática, na sua função social, permitindo o acesso de todos, mas não deve ensinar a democracia nem a cidadania. Não deve muito menos orientar comportamentos e atitudes, modelar espíritos e formar consciências. A melhor disciplina imaginável é um verdadeiro “Código da Estrada” da democracia, um guia para a Constituição e a Administração Pública. Sem juízos morais, sem regras de comportamento, sem valores éticos e sem imposição de valores.

A disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento é uma armadilha e um tremendo equívoco. Tal, aliás, como outras variedades de que se fala com frequência: Educação para a Saúde, Educação para um Ambiente sustentável, Educação para a Saúde reprodutiva e Educação para a Igualdade. Ao abrigo dos melhores sentimentos, estamos em pleno delírio de ideologia e propaganda, ou antes, da manipulação e intoxicação. Vejam-se os conteúdos dos programas dessa disciplina e note-se a despudorada afirmação do que é ou deve ser virtuoso! Perceba-se o ambiente mental onírico e beato com que se desenvolvem os programas.

Esta “educação para a cidadania” é própria de todas as correntes políticas, culturais e educativas autoritárias que se arrogaram um qualquer direito de formar gerações e orientar consciências, para tal utilizando a escola, a escolaridade obrigatória e os programas escolares.

Foi esta a educação defendida pelos grandes republicanos de boa e má memória, firmes detentores da verdade, combatentes estremes da oligarquia monárquica, defensores da nova escola laica, livre e igual e partidários de uma escola empenhada que não se pode sequer conceber como neutra. A sua escola republicana era uma escola empenhada e parcial.

Foi também esta a educação própria dos corporativistas, integralistas, fascistas e salazaristas que sempre consideraram que a escola não deve nem pode ser neutra, que deve transmitir valores, ideias e convicções, que deve ensinar as boas regras de comportamento público, que deve ajudar todos a respeitar a lei e a moral e, acima de tudo, engrandecer o país e a nação. Esta escola não era neutra, antes devia cultivar os valores da nação, de Deus, do trabalho, da família, da Constituição e da ordem estabelecida.

Mas também é uma educação assim, empenhada, a que é própria dos comunistas e dos socialistas revolucionários de todos os tempos, desde as escolas soviéticas até às variantes tropicais do bolivarianismo e do castrismo. Denunciaram com energia a escola cristã, a escola fascista e a escola capitalista. E sempre consideraram que a escola não é nem deve ser neutra, antes deve traduzir e veicular os valores das classes trabalhadoras e do partido, em permanente louvor do socialismo.

Esta escola empenhada, inimiga da neutralidade, é também a própria das correntes católicas mais fervorosas, desde sempre adeptas de manter uma escola confessional, de estreita associação entre a religião, a moral e o civismo e que ensine a temer a Deus, lutando empenhadamente contra as perversões laicas da escola pública. Esta concepção de escola empenhada é própria finalmente das correntes mais sofisticadas das ciências de educação, da pedagogia crítica e da educação activa, preparadas para formar cidadãos e criar agentes de virtude, prontas para o culto da pedagogia da libertação, inimigas da escola neutra que consideram uma armadilha dos poderosos. São estas as formas mais disfarçadamente ideológicas e despóticas, próprias dos autoritários.

Em quase todas estas ideias totalitárias, notamos a permanente obsessão com a “educação integral do ser humano”, inquietação que atrai tanto os católicos empenhados como os comunistas de vocação e os fascistas de aspiração. Sempre, no século XX, os autoritários ambicionaram moldar o carácter e, para isso, fundaram os Lusitos portugueses, os Balilas italianos, os Pioneiros soviéticos, os Flechas espanhóis, os Escuteiros cristãos, os Pimfs alemães… Sempre os déspotas sonham com a educação e a formação das jovens gerações!

Sociólogo

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COMENTÁRIOS:

Gualter Cabral EXPERIENTE: Barreto, no bom estilo do contraditório, mete os pés pelas mãos, e daí, nem sequer sai uma açorda; pois os argumentos nem sequer são compatíveis. Já se falou, barafustou, e como muito bem dizia Agustina no livro "Meninos de Ouro": -" Em Portugal gasta-se um tempo enorme a discutir, a verberar, a fazer do "outro" um adversário: a perfídia, a desonestidade e , sobretudo, a ineficácia". Não há, pois, una norma de conduta na relação entre pessoas que se basei no respeito mútuo é Barreto, e mais uns quantos pretender subverter as boas intenções com guerrilhas palavrosas que nada têm de substantivo. Como muito bem diz o aforismo popular: " O silêncio é de ouro" quando os "argumentos" são falaciosos.

Manuel Pessoa INICIANTE: Há diferença entre educação e instrução. Em tempos idos já foi tentado este disfarce para se fingir que não se estava, através da instrução, a tentar formar mentalidades. O problema é, portanto, muito antigo. A par disso há que perguntar se as orientações transmitidas sob a designação de Moral e Religião e ou OPAN condicionaram as gerações que a elas foram submetidas. AB sabe bem que a resposta é não rotundo. Por isso me confrange o alarido à volta duma disciplina que 1- pode ser melhorada; 2- vai impactar negativamente na formação da juventude de hoje na mesma medida que a RM e a OPAN o fizeram no nosso tempo; 3 - pode ser a única oportunidade para muitos jovens ouvirem falar de cidadania. Uma pergunta a AB: que confiança lhe merecem os que opinam e se dizem neutros?

Jorge Macedo Rocha INICIANTE: Gostava que o autor explicasse como é possível ensinar um código da estrada da democracia sem transmitir valores morais, nem dizer que a democracia vale mais do que o resto. É como dizer que se deve respeitar o limite de velocidade sem explicar porquê. Todas as sociedades humanas se baseiam em valores morais. Até o valor da liberdade negativa (no sentido de Isiah Berlin) é um valor moral. Não é possível fazer uma escola moralmente asséptica. A discussão é até que ponto é que violamos as consciências das pessoas. Onde está a fronteira? Na minha opinião a disciplina está muito longe dessa fronteira. E mesmo que esteja perto, não justifica que os pais usem os filhos para fazer valer o seu ponto de vista.

João Rijo INICIANTE: Que desilusão profunda ao ler este texto. A escola não serve para ensinar cidadania nem democracia??? Tenho na minha memória alguns raros exemplos de professores que o fizeram no meu percurso escolar através dos conteúdos programáticos. Por sinal ou coincidência, fazendo uma retrospectiva, foram dos melhores professores que tive em comparação com outros. Custa-me ver o António Barreto a escrever este tipo de opinião. A escola deve ter um papel de formação de cidadania nos seus alunos. E não se confunda isso com um regime totalitário. É mesmo só cidadania.

 

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