De que trata Platão, na sua “República”: os homens
estão acorrentados, virados para uma parede, com uma luz por trás –
provavelmente a do sol, que cria no muro fronteiro para o qual estão virados,
as sombras da única verdade que conhecem, sombras dos objectos reflectidos e
não os próprios objectos, como lhes ensinará o prisioneiro que consegue
libertar-se e sair da caverna. António
Barreto, julgo que por espírito de contradição pouco honesto, pois que ele foi
dos que saiu da caverna, quer-nos prisioneiros dela, na ignorância efectiva das
realidades e isso é má-fé – ou puro exibicionismo de uma superioridade que,
provocatoriamente, finge desconhecer as realidades de uma deficiente formação
cultural, ou apenas indisponibilidade temporal, na maioria das famílias – e que
a escola deve suprir. A questão do ensino da cidadania nas escolas, julgo que não deve
contestar-se, desde que seja orientada com seriedade e sem parti pris, no objectivo de esclarecer os jovens sobre o
significado das designações políticas que os encaminharão – ou não – na vida, o
que é também o papel da escola.
António Barreto teve comentadores que o apoiaram, mas não os coloquei, por deles discordar, obviamente.
OPINIÃO Uma
questão de educação
A escola deve ser democrática, na sua
função social, permitindo o acesso de todos, mas não deve ensinar a democracia
nem a cidadania. Não deve muito menos orientar comportamentos e atitudes,
modelar espíritos e formar consciências.
ANTÓNIO BARRETO PÚBLICO, 13 de Setembro de 2020
É uma discussão muito interessante,
eterna e que volta sempre que é enterrada. Deve ou não a educação inculcar
valores? Formar cidadãos? Modelar mentalidades? Educar os jovens no cumprimento
dos seus deveres? Respeitar as regras morais estabelecidas pela Constituição?
Reproduzir as crenças das gerações anteriores? A todas estas perguntas, a minha resposta é
negativa. Não! A educação dispensada pelo Estado em regime democrático,
designadamente a escolaridade obrigatória, não deve inculcar valores, moldar
espíritos, formar consciências, criar cidadãos… Nem sequer produzir boas
pessoas ou cidadãos exemplares. A instrução ajuda muito ao desenvolvimento
humano, mas não são aquelas as suas funções.
Àquelas
perguntas, ao longo das décadas e dos séculos, foram sendo dadas A cidadania diversas, sendo que a controvérsia
não cessou. Nunca houve acordo nem consenso. Mas, de vez em quando, ao
coexistir com outras polémicas mais prementes, esta disputa acalmava-se. Agora,
reapareceu! E ainda bem. Como é sabido, a discussão faz-se à volta do
conteúdo da disciplina de Educação para
a Cidadania e o Desenvolvimento. O facto
imediato é o da contestação de uns pais que desejavam retirar os filhos dessas
aulas que consideravam atentatórias da formação que lhes queriam dar, pelo que reclamaram o direito à objecção de
consciência. Aplaudido
por organismos políticos e educativos mais situados à esquerda, o Estado
recusou. No que foi muito criticado por vozes, organizações e personalidades, geralmente
colocadas à direita. Mas, por uma vez, o afrontamento não é
totalmente preto e branco. Há gente da direita no primeiro campo e gente de
esquerda no segundo.
O
currículo nacional, devidamente aprovado pelas leis vigentes e estabelecido
pelos órgãos de soberania, não deixa abertas as portas à objecção de
consciência. Nem de outra maneira poderia ser. Um currículo nacional serve
para isso mesmo: para ser seguido, como unificador cultural de um país, sem
objecções, até porque os programas académicos não devem dar o flanco a
variedades ideológicas e a opções políticas ou religiosas. Deve, pois, ser
respeitado.
O problema não é o da objecção de
consciência. O problema principal é o da disciplina: não deveria simplesmente
existir! Com este
conteúdo em que tudo cabe, com este objectivo que é o de formar consciências,
com esta preocupação que é a de modelar espíritos e orientar comportamentos em
todas as áreas possíveis, da cultura à política, do direito às artes, dos
afectos à sexualidade, do ambiente à natureza, esta disciplina deveria ser
prontamente eliminada.
A
escola deve ser democrática, na sua função social, permitindo o acesso de
todos, mas não deve ensinar a democracia nem a cidadania. Não deve muito menos
orientar comportamentos e atitudes, modelar espíritos e formar consciências. A
melhor disciplina imaginável é um verdadeiro “Código da Estrada” da democracia,
um guia para a Constituição e a Administração Pública. Sem juízos morais, sem
regras de comportamento, sem valores éticos e sem imposição de valores.
A disciplina de Educação para a
Cidadania e o Desenvolvimento é uma armadilha e um tremendo equívoco. Tal, aliás, como outras variedades de que se fala com
frequência: Educação para a Saúde, Educação para um Ambiente
sustentável, Educação para a Saúde reprodutiva e Educação para a Igualdade. Ao
abrigo dos melhores sentimentos, estamos em pleno delírio de ideologia e propaganda,
ou antes, da manipulação e intoxicação. Vejam-se os conteúdos dos programas
dessa disciplina e note-se a despudorada afirmação do que é ou deve ser
virtuoso! Perceba-se o ambiente mental onírico e beato com que se desenvolvem
os programas.
Esta
“educação para a cidadania” é própria de todas as correntes políticas,
culturais e educativas autoritárias que se arrogaram um qualquer direito de
formar gerações e orientar consciências, para tal utilizando a escola, a
escolaridade obrigatória e os programas escolares.
Foi
esta a educação defendida pelos grandes republicanos de boa e má memória,
firmes detentores da verdade, combatentes estremes da oligarquia monárquica,
defensores da nova escola laica, livre e igual e partidários de uma escola
empenhada que não se pode sequer conceber como neutra. A sua escola republicana
era uma escola empenhada e parcial.
Foi
também esta a educação própria dos corporativistas, integralistas, fascistas e
salazaristas que sempre consideraram que a escola não deve nem pode ser neutra,
que deve transmitir valores, ideias e convicções, que deve ensinar as boas
regras de comportamento público, que deve ajudar todos a respeitar a lei e a
moral e, acima de tudo, engrandecer o país e a nação. Esta escola não era
neutra, antes devia cultivar os valores da nação, de Deus, do trabalho, da
família, da Constituição e da ordem estabelecida.
Mas
também é uma educação assim, empenhada, a que é própria dos comunistas e dos
socialistas revolucionários de todos os tempos, desde as escolas soviéticas até
às variantes tropicais do bolivarianismo e do castrismo. Denunciaram com
energia a escola cristã, a escola fascista e a escola capitalista. E sempre
consideraram que a escola não é nem deve ser neutra, antes deve traduzir e
veicular os valores das classes trabalhadoras e do partido, em permanente
louvor do socialismo.
Esta
escola empenhada, inimiga da neutralidade, é também a própria das correntes
católicas mais fervorosas, desde sempre adeptas de manter uma escola
confessional, de estreita associação entre a religião, a moral e o civismo e
que ensine a temer a Deus, lutando empenhadamente contra as perversões laicas
da escola pública. Esta concepção de escola empenhada é própria finalmente das
correntes mais sofisticadas das ciências de educação, da pedagogia crítica e da
educação activa, preparadas para formar cidadãos e criar agentes de virtude,
prontas para o culto da pedagogia da libertação, inimigas da escola neutra que
consideram uma armadilha dos poderosos. São estas as formas mais disfarçadamente
ideológicas e despóticas, próprias dos autoritários.
Em
quase todas estas ideias totalitárias, notamos a permanente obsessão com a
“educação integral do ser humano”, inquietação que atrai tanto os católicos
empenhados como os comunistas de vocação e os fascistas de aspiração. Sempre,
no século XX, os autoritários ambicionaram moldar o carácter e, para isso,
fundaram os Lusitos portugueses, os Balilas italianos, os Pioneiros soviéticos,
os Flechas espanhóis, os Escuteiros cristãos, os Pimfs alemães… Sempre os
déspotas sonham com a educação e a formação das jovens gerações!
Sociólogo
TÓPICOS EDUCAÇÃO ESTADO HISTÓRIA RELIGIÃO PORTUGAL CIDADANIA OPINIÃO
COMENTÁRIOS:
Gualter
Cabral EXPERIENTE: Barreto, no bom estilo do contraditório,
mete os pés pelas mãos, e daí, nem sequer sai uma açorda; pois os argumentos
nem sequer são compatíveis. Já se falou, barafustou, e como muito bem dizia
Agustina no livro "Meninos de Ouro": -" Em Portugal gasta-se um
tempo enorme a discutir, a verberar, a fazer do "outro" um
adversário: a perfídia, a desonestidade e , sobretudo, a ineficácia". Não
há, pois, una norma de conduta na relação entre pessoas que se basei no
respeito mútuo é Barreto, e mais uns quantos pretender subverter as boas
intenções com guerrilhas palavrosas que nada têm de substantivo. Como muito bem
diz o aforismo popular: " O silêncio é de ouro" quando os
"argumentos" são falaciosos.
Manuel Pessoa INICIANTE: Há diferença entre educação e instrução. Em tempos idos
já foi tentado este disfarce para se fingir que não se estava, através da
instrução, a tentar formar mentalidades. O problema é, portanto, muito antigo.
A par disso há que perguntar se as orientações transmitidas sob a designação de
Moral e Religião e ou OPAN condicionaram as gerações que a elas foram
submetidas. AB sabe bem que a resposta é não rotundo. Por isso me confrange o
alarido à volta duma disciplina que 1- pode ser melhorada; 2- vai impactar
negativamente na formação da juventude de hoje na mesma medida que a RM e a
OPAN o fizeram no nosso tempo; 3 - pode ser a única oportunidade para muitos
jovens ouvirem falar de cidadania. Uma pergunta a AB: que confiança lhe merecem
os que opinam e se dizem neutros?
Jorge
Macedo Rocha INICIANTE: Gostava que o autor explicasse como é
possível ensinar um código da estrada da democracia sem transmitir valores
morais, nem dizer que a democracia vale mais do que o resto. É como dizer que
se deve respeitar o limite de velocidade sem explicar porquê. Todas as
sociedades humanas se baseiam em valores morais. Até o valor da liberdade
negativa (no sentido de Isiah Berlin) é um valor moral. Não é possível fazer
uma escola moralmente asséptica. A discussão é até que ponto é que violamos as
consciências das pessoas. Onde está a fronteira? Na minha opinião a disciplina
está muito longe dessa fronteira. E mesmo que esteja perto, não justifica que
os pais usem os filhos para fazer valer o seu ponto de vista.
João
Rijo INICIANTE: Que desilusão profunda ao ler este texto. A escola não
serve para ensinar cidadania nem democracia??? Tenho na minha memória alguns
raros exemplos de professores que o fizeram no meu percurso escolar através dos
conteúdos programáticos. Por sinal ou coincidência, fazendo uma retrospectiva,
foram dos melhores professores que tive em comparação com outros. Custa-me ver
o António Barreto a escrever este tipo de opinião. A escola deve ter um papel
de formação de cidadania nos seus alunos. E não se confunda isso com um regime
totalitário. É mesmo só cidadania.
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