Uma história de pessimismo e angústia,
de sentimento de frustração e revolta pelo abandono a que a vida o votou, ao
cego da Fanie, que, ela própria, o deixou facilmente, no que se não acredita. Os
cães são amigos para sempre e o cão Hachiko do professor japonês que esperou este, na
estação, incansavelmente, até morrer, como o professor seu dono morrera a dar aulas,
é disso prova. O Dr. Salles está, naturalmente, em desespero, e tem
razão por isso, tal como os seus amigos entristecem por ele. Não, não é justo.
Lute sempre, Dr. Salles. Dê-nos a sua lição de vida, como
sempre fez. Ainda que com histórias sombrias de humor, que nos fazem sofrer por
si. E rir consigo...
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 25.09.20
Soe
dizer-se «a pedido de várias famílias» quando já não conseguimos identificar
todos os pedidos de… qualquer coisa. No caso presente, fica, pois, o registo
do pedido do meu Amigo Carlos Prieto Traguelho quanto ao modo como o Sô Manel
se desenrasca sozinho e ficam sem menção especial os relativos à situação
actual da «Fanie». Mais aproveito para informar neste breve intróito que a
fantasia ficou lá atrás no texto inicial.
*
* *
Cego
que se prese usa bengala como valiosa substituta dos olhos falidos. E foi isso
mesmo que fez o Sô Maneç durante uns tempos depois de a «Fanie» ter regressado
à escola de cães-guia mas, por alguma razão que me escapou, decidiu abandonar o
«varapau». Passou então a aceitar a boleia de quem segue na direcção que ele
quer. Mas – e há sempre algum «mas» - poucas são as pessoas que sabem
conduzir cegos: ou andam muito depressa, ou pegam no braço do cego, ou se
esquecem de avisar da presença de um degrau,… Uma molhada de brócolos.
E,
contudo, é muito fácil conduzir um cego:
1º- Deixe que seja o cego a pegar
no seu braço ou ombro, não o contrário;
2º- Não puxe o cego, iguale a sua
velocidade em relação à dele;
3º- Passe longe dos postes e
outros obstáculos pois o cego vai ao seu lado e não atrás de si;
4º- Avise da existência de
degraus.
Aos
poucos, as pessoas da aldeia já vão sabendo destas normas e o Sô Manel já vai
dando muito menos tropeções do que de início. Tout s’arrange…
E
a «Fanie»?
Perguntei
directamente ao Sô Manel quando, em Julho passado (2020) também eu quase cego,
nos encontrámos na esplanada.
- Mas
que coincidência o Senhor perguntar-me por ela e eu ter telefonado ontem a
saber se estava tudo bem. Que sim, tem estado como «mestra» de alunos cachorros
mas há uma semana que está de licença de parto. Teve uma ninhada de seis
canitos pretos, quatro meninos e duas meninas.
HAPPY
END
Setembro de 2020
Henrique Salles da
Fonseca
COMENTÁRIOS:
Anónimo 25.09.2020: Muito
obrigado Henrique, pela deferência que tiveste para comigo ao dares esta
informação complementar e com ela fazeres com que a minha pitada de ansiedade
desaparecesse. Ainda bem que pudeste escrever, ao terminar, "Happy
End". Entre "nem tudo está bem quando acaba bem" e "tudo
está bem quando acaba bem", perfilho, no caso concreto, esta última frase.
Abraço. Carlos
Traguelho
Henrique Salles da
Fonseca 26.09.2020: Bom
dia Caro Dr. Henrique Salles da Fonseca, Fiquei muito satisfeita de o ver de
novo a escrever – pelo que, deduzo, a intervenção cirúrgica, terá sido bem
sucedida. Agora tem de ter muito descanso para que os olhos não se esforcem
demasiado. É muito gratificante lê-lo de novo! Bem Vindo! Ao ler as suas duas
crónicas sobre “Canez, a fala dos cães”, comovi-me muito, pois estão escritas
com tanta sensibilidade, com tanto realismo que, afirmarei, sem errar, que
conseguiu fazer um excelente entrosamento entre a fantasia e o real. Não se
consegue distinguir uma da outra, está perfeito! Tenho um particular afecto
pelos cães guia, pois num dos cabeleireiros que frequentava, havia uma cliente
que ia sempre acompanhada com o seu cão guia que ficava serenamente à porta, em
cima do tapete, à espera do regresso da dona. Os que entrávamos e saíamos,
fazíamos-lhe umas saborosas festas e ela olhava-nos com um olhar muito meigo,
que enternecia. Nessa altura, pensei em formular uma história pois a dona do
cão-guia era também uma pessoa especial. Não o fiz e perdi a oportunidade. Agora,
ao ler a sua deliciosa história, atrevo-me a lançar-lhe um desafio: porque não
construir um romance? Tem todos os “ingredientes” para isso: a vida do Sô Manel
pode ser recriada e daí crescer, decerto, um personagem muito interessante como
aliás já o é nesta descrição! Entretanto, poderá continuar a encontrar-se, na
esplanada, com o Sô Manel, ampliando os diálogos, com fantasia ou alguma
realidade e da “Fanie” e dos seus quatro meninos e duas meninas, oh, haverá
tanto para romancear! Até porque decerto o Sô Manel irá continuar a telefonar a
saber de todos eles. Fica a minha humilde - ou atrevida?! - sugestão. Desejo-lhe
uma excelente recuperação e vá fazendo pausas, muitas pausas na escrita para
descansar a vista. Os meus melhores cumprimentos, Mª Emília Gonçalves
Henrique Salles da
Fonseca, 26.09.2020: Muito
Estimada Senhora Drª Maria Emília Gonçalves: Muito obrigado pelo seu comentário que me fez lembrar
da expressão portuguesa homóloga do "Princípio de Peter" que diz
«Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?». Contar uma historieta quase
verdadeira é fácil mas escrever um romance é «coisa» para escritores, o que não
sou. O conto que escrevi a pensar nos meus netos, tem agradado a quem o tem
lido mas se o multiplicasse para o nível superior, arriscava-me a maçar a
plateia e isso não quero fazer. Mas fica o mote para quem o queira fazer. Não
será plágio, será valorização. Na qualidade de contista, sou mais espaçado que bissexto
mas vou compilar alguns escritos para «O LIVRO DOS NETOS». Melhores
cumprimentos e continuemos...
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A BEM
DA NAÇÃO, 22.09.20
Canez, a fala dos cães.
O
Sô Manel é o cego da aldeia. Cegou já adulto tardio, está reformado com modesto
conforto. Embarcadiço que foi, conheceu o mundo mas, agora, o seu mundo é a
aldeia e, mesmo assim, nem toda – fica-se pelo parque central e respectivos
limites pois mora do lado sul e o café a que vai diariamente fica no do norte.
Não lhe conheço família, mas pelo modo como veste, adivinho que tenha quem por
ele veja e dele cuide – um cego não acerta nas cores nem engoma
correctamente os vincos da roupa. Mas o que mais dá para ver na sua
indumentária é o boné. Deve ter sido comprado nalgum porto inglês e estou mesmo
a imaginar um Lord britânico gorducho e de grande bigodaça à caça do «famoso
grouse» debaixo de um boné daqueles. Mas o Sô Manel não caça e limita-se a
tomar um café simples, sem «mosca»[i] nem outros baptismos.
O
seu luxo era «Fanie», a cadela guia que o levava de casa ao café e de volta [ii].
Preta,
raça Labrador, de meia idade, bem tratada, lembrava-me o tal Lord da bigodaça,
estava gorducha. O seu trabalho diário limitava-se a conduzir o dono ao café e
volta numa distância total de menos de trezentos metros. O resto do tempo
passava-o a comer, a dormir e a fazer mimos ao dono. Pouco se mexia e o Sô
Manel achava que a cadela estava a ficar farta daquela vida, vida estúpida para
qualquer cão. E começou a pensar que não tinha o direito de submeter a cadela a
tanta desmotivação. Pensou soltá-la no parque mas logo imaginou a canzoada
labrega da aldeia à volta dela a tentar indecências na via pública e afastou a
ideia. A «Fanie continuava a usar o quintal da casa para as suas precisões. E
de ideia em ideia, foi rejeitando todas as hipóteses sem descortinar uma que
lhe agradasse e pudesse dar alguma alegria à sua amiga. Sentia que a neura
avançava pela vida da «Fanie» e desesperava-se com tentar retribuir a bondade
da cadela. Ele não se dava ao direito de causar neura a quem só lhe fazia bem.
E tomou a decisão: devolveria a «Fanie» à escola dos cães-guia se lhe
garantissem que ela ficaria como «mestra» dos cães alunos e que não voltaria a
ser submetida a um suplício neurótico a guiar algum cego de mau feitio. Ele
próprio havia de se desenrascar sem guia. Já conhecia bem o caminho, tinha um
ou outro ponto de referência pelo tacto, contava os passos, ia libertar a
cadela.
Telefonou
para a escola, obteve a garantia que pediu, combinaram a data e a hora em que
estariam na esplanada do café para a «Fanie» regressar à sua origem dos tempos
infantis.
Nessa
tarde, como sempre, lá foram até à esplanada mas a certa altura, o Sô Manel
ouve vozes desconhecidas e sente a cadela a mudar de rumo. Assusta-se e grita: -Fanie,
Fanie, para onde vais que me desgraças? Mas logo uma das tais vozes
desconhecidas lhe disse que não havia perigo, que o cão estava a desviar-se das
obras que estavam a fazer no passeio para os carros não voltassem a estacionar
ali e os peões pudessem deixar de andar na estrada.
-
E logo isto havia de acontecer no próprio dia em que combinei mandar a «Fanie»
embora! – cogitava o Sô Manel - Isto tem mensagem… deixa cá compensar o pobre animal
pelo berro que lhe dei. – e assim foi que, chegados à esplanada, para além do
seu café, encomendou um «bolo de arroz» para a sua amiga. Esta, gulosa,
tragou-o num instante quase não dando tempo de abanar o rabo. Vai daí,
regressou a rotina e, com ela, o seu par, o tédio. E a sempre presente paciente
bondade de «Fanie» com a mão mole do dono ao longo do dorso numa festa suave…
Até
que chegou o dia combinado para a cadela mudar de vida.
Estranhamente,
o dono metera quase todos os seus brinquedos (todos menos um dos mais pequenos)
num saco grande de supermercado. Não percebia o que se estava a passar mas lá
cumpriu a sua missão até ao outro lado do parque. Lenta, paciente e
bondosamente (sem bulhas com gentes nem cães), chegaram à esplanada, tomaram
café e «bolo de arroz» sem perceber mas sem perguntas e ali ficaram com as
pessoas do costume a dizerem as baboseiras do costume mas o saco dos brinquedos
e o «bolo de arroz»…???
Foi
então que chegou um carro com o escrito «Escola de cães-guia» que parou ali
mesmo à frente. Um rapaz e uma rapariga apearam-se e, mesmo antes de
cumprimentarem o Sô Manel, a rapariga pôs um joelho no chão em frente da
«Fanie», afagou-lhe a cabeça com as mãos por baixo das orelhas, deu-lhe uma
pequena turra testa com testa, disse qualquer coisa e a cadela, como só as
«mulheres» sabem fazer, emitiu um gorjeio que toda a gente percebeu ser um
choro de felicidade. Era a sua antiga dona nos tempos em que era cachorrinha. O
rapaz deu-lhe uma bolacha daquelas de que os cães mais gostam e só então
disseram ao Sô Manel que já ali estavam. Cumprimentos feitos, palavras de
circunstância, troca dos documentos da identidade da cadela e despedidas
rápidas. Ao Sô Manel tremeu-se-lhe o queixo, formou-se-lhe uma bola na
garganta, engoliu um soluço e estendeu a mão para afagar o dorso da sua amiga
preta mas a cadela já lá não estava. À janela traseira do carro, a «Fanie»
sorria como só os cães felizes sabem sorrir.
O
Sô Manel ainda sibilou «Fanie, Fanie», meteu a mão no bolso e afagou o pequeno
brinquedo que cativara à sua amiga.
Na
esplanada fez-se silêncio e naquele dia os donos do estabelecimento ofereceram
o café e o «bolo de arroz». É que, por ali, todos sabem que em canez, bondade
se diz «Fanie».
Setembro de 2020
Henrique Salles
da Fonseca
NOTA FINAL – Esta história é quase verdadeira; a fronteira com a
fantasia situa-se onde o leitor quiser
[i]- Vinho moscatel de Setúbal
[ii]- Sugiro a quem me lê que não se assuste com o tempo
pretérito da frase
Anónimo 23.09.2020: VIVA Henrique, que alegria me deu a leitura da tua
ternurenta estória, e não importa o quanto ela seja ficção. É comovente, pelo
seu conteúdo e pela forma como a escreveste. Fica-me, todavia, uma pitada de
angústia – Como o Sr. Manel se terá visto sem a sua cadela guia “Fanie”? Mas,
como dizes, a decisão foi ponderada e tudo, certamente, terá corrido muito bem!
Desde criança que gostava que me contassem estórias com animais, daí ter
desenvolvid grande afecto por eles. Uma das estórias que estava na “moda” por
aqueles tempos era a de “O menino da mata e o seu cão Piloto”, que era
considerada literatura de cordel e vendida sob a forma de fascículo. Ao ler,
muitíssimos anos depois, a obra de Pacheco Pereira sobre Cunhal, tomei
conhecimento que o PCP utilizava a capa do fascículo daquela estória para
distribuir clandestina e camufladamente a sua propaganda; isto é, o menino e o
seu cão da capa davam lugar, no interior, a textos doutrinários comunistas. Um
dos meus livros de juventude foi “Homens e Bichos”, de Axel Munthe. Creio que é
nele que consta a frase tão citada “Quanto mais conheço os homens mais gosto
dos animais”. Julgo que Alexandre Herculano tem uma frase semelhante. Mas na
tua estória, não há lugar a “maniqueísmos”. Gosta-se do homem, Sr. Manel, e gosta-se
do animal, “Fanie”. Bem hajas. Carlos Traguelho
Anónimo
23.09.2020: Belo conto. Conto de reis! Abraço e
melhoras
Henrique Salles da
Fonseca 23.09.2020: Adorei
até às lágrimas. Helena Salazar Antunes Morais
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