sábado, 26 de setembro de 2020

Mas a crise vai passar

 

Uma história de pessimismo e angústia, de sentimento de frustração e revolta pelo abandono a que a vida o votou, ao cego da Fanie, que, ela própria, o deixou facilmente, no que se não acredita. Os cães são amigos para sempre e o cão Hachiko do professor japonês que esperou este, na estação, incansavelmente, até morrer, como o professor seu dono morrera a dar aulas, é disso prova. O Dr. Salles está, naturalmente, em desespero, e tem razão por isso, tal como os seus amigos entristecem por ele. Não, não é justo. Lute sempre, Dr. Salles. Dê-nos a sua lição de vida, como sempre fez. Ainda que com histórias sombrias de humor, que nos fazem sofrer por si. E rir consigo...

«FANIE» (conclusão)

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 25.09.20

Soe dizer-se «a pedido de várias famílias» quando já não conseguimos identificar todos os pedidos de… qualquer coisa. No caso presente, fica, pois, o registo do pedido do meu Amigo Carlos Prieto Traguelho quanto ao modo como o Sô Manel se desenrasca sozinho e ficam sem menção especial os relativos à situação actual da «Fanie». Mais aproveito para informar neste breve intróito que a fantasia ficou lá atrás no texto inicial.

* * *

Cego que se prese usa bengala como valiosa substituta dos olhos falidos. E foi isso mesmo que fez o Sô Maneç durante uns tempos depois de a «Fanie» ter regressado à escola de cães-guia mas, por alguma razão que me escapou, decidiu abandonar o «varapau». Passou então a aceitar a boleia de quem segue na direcção que ele quer. Mas – e há sempre algum «mas» - poucas são as pessoas que sabem conduzir cegos: ou andam muito depressa, ou pegam no braço do cego, ou se esquecem de avisar da presença de um degrau,… Uma molhada de brócolos.

E, contudo, é muito fácil conduzir um cego:

1º- Deixe que seja o cego a pegar no seu braço ou ombro, não o contrário;

2º- Não puxe o cego, iguale a sua velocidade em relação à dele;

3º- Passe longe dos postes e outros obstáculos pois o cego vai ao seu lado e não atrás de si;

4º- Avise da existência de degraus.

Aos poucos, as pessoas da aldeia já vão sabendo destas normas e o Sô Manel já vai dando muito menos tropeções do que de início. Tout s’arrange…

E a «Fanie»?

Perguntei directamente ao Sô Manel quando, em Julho passado (2020) também eu quase cego, nos encontrámos na esplanada.

- Mas que coincidência o Senhor perguntar-me por ela e eu ter telefonado ontem a saber se estava tudo bem. Que sim, tem estado como «mestra» de alunos cachorros mas há uma semana que está de licença de parto. Teve uma ninhada de seis canitos pretos, quatro meninos e duas meninas.

HAPPY END

Setembro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS:

Anónimo 25.09.2020: Muito obrigado Henrique, pela deferência que tiveste para comigo ao dares esta informação complementar e com ela fazeres com que a minha pitada de ansiedade desaparecesse. Ainda bem que pudeste escrever, ao terminar, "Happy End". Entre "nem tudo está bem quando acaba bem" e "tudo está bem quando acaba bem", perfilho, no caso concreto, esta última frase. Abraço. Carlos Traguelho

Henrique Salles da Fonseca 26.09.2020: Bom dia Caro Dr. Henrique Salles da Fonseca, Fiquei muito satisfeita de o ver de novo a escrever – pelo que, deduzo, a intervenção cirúrgica, terá sido bem sucedida. Agora tem de ter muito descanso para que os olhos não se esforcem demasiado. É muito gratificante lê-lo de novo! Bem Vindo! Ao ler as suas duas crónicas sobre “Canez, a fala dos cães”, comovi-me muito, pois estão escritas com tanta sensibilidade, com tanto realismo que, afirmarei, sem errar, que conseguiu fazer um excelente entrosamento entre a fantasia e o real. Não se consegue distinguir uma da outra, está perfeito! Tenho um particular afecto pelos cães guia, pois num dos cabeleireiros que frequentava, havia uma cliente que ia sempre acompanhada com o seu cão guia que ficava serenamente à porta, em cima do tapete, à espera do regresso da dona. Os que entrávamos e saíamos, fazíamos-lhe umas saborosas festas e ela olhava-nos com um olhar muito meigo, que enternecia. Nessa altura, pensei em formular uma história pois a dona do cão-guia era também uma pessoa especial. Não o fiz e perdi a oportunidade. Agora, ao ler a sua deliciosa história, atrevo-me a lançar-lhe um desafio: porque não construir um romance? Tem todos os “ingredientes” para isso: a vida do Sô Manel pode ser recriada e daí crescer, decerto, um personagem muito interessante como aliás já o é nesta descrição! Entretanto, poderá continuar a encontrar-se, na esplanada, com o Sô Manel, ampliando os diálogos, com fantasia ou alguma realidade e da “Fanie” e dos seus quatro meninos e duas meninas, oh, haverá tanto para romancear! Até porque decerto o Sô Manel irá continuar a telefonar a saber de todos eles. Fica a minha humilde - ou atrevida?! - sugestão. Desejo-lhe uma excelente recuperação e vá fazendo pausas, muitas pausas na escrita para descansar a vista. Os meus melhores cumprimentos, Mª Emília Gonçalves

Henrique Salles da Fonseca, 26.09.2020: Muito Estimada Senhora Drª Maria Emília Gonçalves: Muito obrigado pelo seu comentário que me fez lembrar da expressão portuguesa homóloga do "Princípio de Peter" que diz «Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?». Contar uma historieta quase verdadeira é fácil mas escrever um romance é «coisa» para escritores, o que não sou. O conto que escrevi a pensar nos meus netos, tem agradado a quem o tem lido mas se o multiplicasse para o nível superior, arriscava-me a maçar a plateia e isso não quero fazer. Mas fica o mote para quem o queira fazer. Não será plágio, será valorização. Na qualidade de contista, sou mais espaçado que bissexto mas vou compilar alguns escritos para «O LIVRO DOS NETOS». Melhores cumprimentos e continuemos...

 

«FANIE»

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 22.09.20

Canez, a fala dos cães.

O Sô Manel é o cego da aldeia. Cegou já adulto tardio, está reformado com modesto conforto. Embarcadiço que foi, conheceu o mundo mas, agora, o seu mundo é a aldeia e, mesmo assim, nem toda – fica-se pelo parque central e respectivos limites pois mora do lado sul e o café a que vai diariamente fica no do norte. Não lhe conheço família, mas pelo modo como veste, adivinho que tenha quem por ele veja e dele cuide – um cego não acerta nas cores nem engoma correctamente os vincos da roupa. Mas o que mais dá para ver na sua indumentária é o boné. Deve ter sido comprado nalgum porto inglês e estou mesmo a imaginar um Lord britânico gorducho e de grande bigodaça à caça do «famoso grouse» debaixo de um boné daqueles. Mas o Sô Manel não caça e limita-se a tomar um café simples, sem «mosca»[i] nem outros baptismos.

O seu luxo era «Fanie», a cadela guia que o levava de casa ao café e de volta [ii].

Preta, raça Labrador, de meia idade, bem tratada, lembrava-me o tal Lord da bigodaça, estava gorducha. O seu trabalho diário limitava-se a conduzir o dono ao café e volta numa distância total de menos de trezentos metros. O resto do tempo passava-o a comer, a dormir e a fazer mimos ao dono. Pouco se mexia e o Sô Manel achava que a cadela estava a ficar farta daquela vida, vida estúpida para qualquer cão. E começou a pensar que não tinha o direito de submeter a cadela a tanta desmotivação. Pensou soltá-la no parque mas logo imaginou a canzoada labrega da aldeia à volta dela a tentar indecências na via pública e afastou a ideia. A «Fanie continuava a usar o quintal da casa para as suas precisões. E de ideia em ideia, foi rejeitando todas as hipóteses sem descortinar uma que lhe agradasse e pudesse dar alguma alegria à sua amiga. Sentia que a neura avançava pela vida da «Fanie» e desesperava-se com tentar retribuir a bondade da cadela. Ele não se dava ao direito de causar neura a quem só lhe fazia bem. E tomou a decisão: devolveria a «Fanie» à escola dos cães-guia se lhe garantissem que ela ficaria como «mestra» dos cães alunos e que não voltaria a ser submetida a um suplício neurótico a guiar algum cego de mau feitio. Ele próprio havia de se desenrascar sem guia. Já conhecia bem o caminho, tinha um ou outro ponto de referência pelo tacto, contava os passos, ia libertar a cadela.

Telefonou para a escola, obteve a garantia que pediu, combinaram a data e a hora em que estariam na esplanada do café para a «Fanie» regressar à sua origem dos tempos infantis.

Nessa tarde, como sempre, lá foram até à esplanada mas a certa altura, o Sô Manel ouve vozes desconhecidas e sente a cadela a mudar de rumo. Assusta-se e grita: -Fanie, Fanie, para onde vais que me desgraças? Mas logo uma das tais vozes desconhecidas lhe disse que não havia perigo, que o cão estava a desviar-se das obras que estavam a fazer no passeio para os carros não voltassem a estacionar ali e os peões pudessem deixar de andar na estrada.

- E logo isto havia de acontecer no próprio dia em que combinei mandar a «Fanie» embora! – cogitava o Sô Manel - Isto tem mensagem… deixa cá compensar o pobre animal pelo berro que lhe dei. – e assim foi que, chegados à esplanada, para além do seu café, encomendou um «bolo de arroz» para a sua amiga. Esta, gulosa, tragou-o num instante quase não dando tempo de abanar o rabo. Vai daí, regressou a rotina e, com ela, o seu par, o tédio. E a sempre presente paciente bondade de «Fanie» com a mão mole do dono ao longo do dorso numa festa suave…

Até que chegou o dia combinado para a cadela mudar de vida.

Estranhamente, o dono metera quase todos os seus brinquedos (todos menos um dos mais pequenos) num saco grande de supermercado. Não percebia o que se estava a passar mas lá cumpriu a sua missão até ao outro lado do parque. Lenta, paciente e bondosamente (sem bulhas com gentes nem cães), chegaram à esplanada, tomaram café e «bolo de arroz» sem perceber mas sem perguntas e ali ficaram com as pessoas do costume a dizerem as baboseiras do costume mas o saco dos brinquedos e o «bolo de arroz»…???

Foi então que chegou um carro com o escrito «Escola de cães-guia» que parou ali mesmo à frente. Um rapaz e uma rapariga apearam-se e, mesmo antes de cumprimentarem o Sô Manel, a rapariga pôs um joelho no chão em frente da «Fanie», afagou-lhe a cabeça com as mãos por baixo das orelhas, deu-lhe uma pequena turra testa com testa, disse qualquer coisa e a cadela, como só as «mulheres» sabem fazer, emitiu um gorjeio que toda a gente percebeu ser um choro de felicidade. Era a sua antiga dona nos tempos em que era cachorrinha. O rapaz deu-lhe uma bolacha daquelas de que os cães mais gostam e só então disseram ao Sô Manel que já ali estavam. Cumprimentos feitos, palavras de circunstância, troca dos documentos da identidade da cadela e despedidas rápidas. Ao Sô Manel tremeu-se-lhe o queixo, formou-se-lhe uma bola na garganta, engoliu um soluço e estendeu a mão para afagar o dorso da sua amiga preta mas a cadela já lá não estava. À janela traseira do carro, a «Fanie» sorria como só os cães felizes sabem sorrir.

O Sô Manel ainda sibilou «Fanie, Fanie», meteu a mão no bolso e afagou o pequeno brinquedo que cativara à sua amiga.

Na esplanada fez-se silêncio e naquele dia os donos do estabelecimento ofereceram o café e o «bolo de arroz». É que, por ali, todos sabem que em canez, bondade se diz «Fanie».

Setembro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

NOTA FINAL – Esta história é quase verdadeira; a fronteira com a fantasia situa-se onde o leitor quiser

[i]- Vinho moscatel de Setúbal

[ii]- Sugiro a quem me lê que não se assuste com o tempo pretérito da frase

COMENTÁRIOS

Anónimo 23.09.2020: VIVA Henrique, que alegria me deu a leitura da tua ternurenta estória, e não importa o quanto ela seja ficção. É comovente, pelo seu conteúdo e pela forma como a escreveste. Fica-me, todavia, uma pitada de angústia – Como o Sr. Manel se terá visto sem a sua cadela guia “Fanie”? Mas, como dizes, a decisão foi ponderada e tudo, certamente, terá corrido muito bem! Desde criança que gostava que me contassem estórias com animais, daí ter desenvolvid grande afecto por eles. Uma das estórias que estava na “moda” por aqueles tempos era a de “O menino da mata e o seu cão Piloto”, que era considerada literatura de cordel e vendida sob a forma de fascículo. Ao ler, muitíssimos anos depois, a obra de Pacheco Pereira sobre Cunhal, tomei conhecimento que o PCP utilizava a capa do fascículo daquela estória para distribuir clandestina e camufladamente a sua propaganda; isto é, o menino e o seu cão da capa davam lugar, no interior, a textos doutrinários comunistas. Um dos meus livros de juventude foi “Homens e Bichos”, de Axel Munthe. Creio que é nele que consta a frase tão citada “Quanto mais conheço os homens mais gosto dos animais”. Julgo que Alexandre Herculano tem uma frase semelhante. Mas na tua estória, não há lugar a “maniqueísmos”. Gosta-se do homem, Sr. Manel, e gosta-se do animal, “Fanie”. Bem hajas. Carlos Traguelho

 

Anónimo 23.09.2020: Belo conto. Conto de reis! Abraço e melhoras

 

Henrique Salles da Fonseca 23.09.2020: Adorei até às lágrimas. Helena Salazar Antunes Morais

 

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