domingo, 13 de setembro de 2020

Tudo por-água-abaixo


Como nos vários lugares da Terra, afinal. Ao menos, naqueles tempos do seu (- de Pessoa - ) “Nevoeiro” havia alguma esperança ainda. Hoje, já nem podemos ter esperança na Hora.

Quinto

NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

Define com perfil e ser

Este fulgor baço da terra

Que é Portugal a entristecer —

Brilho sem luz e sem arder

Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.

Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ânsia distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

              Valete, Fratres.

Fernando Pessoa

 

O português não vai em grupos: as regras da contingência /premium

Nos restantes lugares, incluindo em casa, o limite para ajuntamentos chega a dez (caso reúna onze alminhas na sala e a polícia aparecer, não hesite em entregar aquele cunhado insuportável).

ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador

OBSERVADOR, 12 set 2020

Apesar dos factos em contrário, a verdade é que a Covid é a maior ameaça à humanidade desde a invenção da gaita-de-foles. À cadência actual de mortos por dia, Portugal arrisca ficar desabitado em 10 mil ou 15 mil anos. Por isso, é muito importante o estado de contingência decretado pelo dr. Costa para todo o país a partir de dia 15. E é uma sorte sermos orientados por uma personalidade assim iluminada. E é mera sensatez eu ceder este espaço, habitualmente de opinião, ao inventário das ordens a cumprir escrupulosamente. Ei-las.

Ajuntamentos
Depende. Nos restaurantes dos centros comerciais, a menos de 300 metros das escolas e a mais de 3 mil km de um centro de abastecimento alimentar, os ajuntamentos estão limitados a quatro pessoas. Cinco, se uma usar trela. Nos restantes lugares, incluindo em casa, a coisa chega a dez (caso reúna onze alminhas na sala e a polícia aparecer, não hesite em entregar aquele cunhado insuportável). Doze em cada treze virologistas subscrevem estas decisões. Catorze em cada quinze cunhados são contra. Claro que um agregado familiar superior a dez alminhas não será separado, mas para quem partilha o lar com mais de nove criaturas a Covid é o menor dos seus problemas. Adenda: o limite de convivas sobe para 30 mil, ou dois milhões, se se tratar de uma pândega legal, ou seja, de eleitores do dr. Costa ou dos partidos aliados do dr. Costa (PSD excluído).

Álcool

As exactas “autoridades” que nos mandam lavar as mãos com álcool dificultam que lavemos a tripa com o dito. Há uma explicação para isto. A chatice é que ninguém, incluindo as “autoridades”, sabe qual é. O certo é que não se pode comprar bebidas alcoólicas após as oito da noite, excepto nas bombas de gasolina, em que não se pode comprá-las nunca, e nos restaurantes, em que se pode comprá-las sempre (se a pinga acompanhar a refeição: faça como os comunistas no Avante e mande vir uma reles carcaça, mas depois não se queixe que as vítimas da fome não se aguentam de pé). Novamente, o raciocínio subjacente é claríssimo. À primeira vista, parece que o vírus é seduzido por bêbados – mas só a certas horas, e sobretudo na proximidade de outros produtos inflamáveis. À segunda vista, é possível que o vírus não tenha nada a ver com o assunto e a restrição dos copos pretenda unicamente a erradicação de vícios malignos e a formação de um povo casto, conforme convém. Alguém conhece a situação de casinos e bordéis?

Comércio
Os estabelecimentos comerciais só podem abrir a partir das 10 horas, já que às 9 o vírus ainda anda vivaço e entretanto cansa-se. Felizmente, um estudo realizado por antropólogos da Universidade de Stanford apurou que o vírus não toma pequeno-almoço, não cuida do corpo e não se penteia, pelo que pastelarias, cafés, ginásios e cabeleireiros podem abrir mais cedo. Quanto aos horários de fecho, o dr. Costa deixou a matéria a cargo de especialistas: os autarcas. É uma decisão sábia. Os mesmos cérebros que investem 300 mil euros dos contribuintes para edificar uma rotunda e outros 300 mil para colocar-lhe em cima uma obra de arte jeitosa são os sujeitos ideais para, mediante algoritmos recursivos e equações de terceiro grau, decidirem se um supermercado deve fechar às 20.17 ou às 22.39. Em qualquer dos casos, o importante é diminuir os horários, aumentar a densidade de clientes nas lojas e confundir o bicho, que face à diversidade de escolha é incapaz de se decidir por um hospedeiro e vai embora aborrecido.

Discotecas
Podem abrir enquanto padarias ou casas de chá. Está por decidir se as casas de chá e as padarias podem abrir enquanto discotecas. E se uma loja de atoalhados pode abrir enquanto sede do sindicato dos vidreiros.

Festas
A menos que organizadas por estalinistas, trotskistas ou demais humoristas, cuja higiene convence o vírus de que já não há lugar para ele, as festas são proibidas. Em festas celebradas por pessoas normais, o vírus tende a sentir-se convidado e a integrar-se por osmose. Depois os talheres e as sobremesas não são suficientes e ninguém sabe porquê.

Futebol
Descontado o prof. Marcelo e cinco vultos anónimos, não são permitidos espectadores, o que significa que a média dos últimos 30 anos na generalidade dos estádios permanece inalterada. Para o dr. Costa, não se pode comparar o comportamento do público no futebol com o do cinema ou de um concerto musical, heavy metal e Camané incluídos. No futebol, os adeptos tendem a trocar afectos e cuspo, o que estimularia a propagação do vírus.

Isqueiros
Para já, não é preciso voltar a tirar licença para o respectivo uso. É questão de tempo. Até lá, convém fumar, uma das raras desculpas para dispensar a máscara sem ouvir impropérios de algum tarado, perdão, cidadão exemplar.

Lares
Não são problema. Dos milhões de mortos portugueses por Covid, os velhotes dos lares representam somente algumas centenas. Isto porque, explica o dr. Costa, logo em Abril o governo entrou em acção – e ainda não saiu. Para cúmulo, agora temos brigadas médicas distritais para intervir nos lares e aperfeiçoar os cuidados anteriores, tão fabulosos que são insusceptíveis de aperfeiçoamento.

Máscaras

Não é obrigatório usar máscara na rua. Mas é bastante aconselhável. Há meses que os espanhóis a usam até para saltar de pára -quedas e o número de infectados desceu para escassos 10 mil por dia. A máscara não serve apenas para nos proteger do vírus. Aliás, não serve de todo para isso: é um acessório de moda, uma afirmação de civilidade, um símbolo de obediência. Em muitos rostos, é também um melhoramento apreciável. Para os renitentes, a obrigatoriedade da máscara em transportes públicos e repartições do Estado é um excelente pretexto para não frequentar semelhantes pocilgas. Os bons cidadãos não tiram a deles desde 12 de Março, o que reforça sobremaneira o distanciamento social. Os cumprimentos de cortesia devem continuar a realizar-se com os cotovelos, a zona do corpo para onde se deve tossir e espirrar.

Trabalho
Como o “teletrabalho”, o “desfasamento” de horários só acontecerá nas duas áreas metropolitanas, que o resto do país está na lavoura ou na taberna e dá cabo do vírus com a sachola ou o bagaço. Em Lisboa e no Porto, os funcionários de uma empresa passam a chegar às pinguinhas, de dez em dez minutos para não se roçarem à porta. A técnica vai eliminar o ancestral procedimento de “o último a sair apaga a luz”, já que o primeiro acabou de entrar. Uma possível vantagem é que o “desfasamento” do horário dos trabalhadores, aliado à diminuição do horário da empresa, leva a que alguns limitem o expediente a meia hora diária. É mau para a produtividade e óptimo para a Netflix. Infelizmente, a pausa para café e para almoço é igualmente desencontrada, o que é bom para evitar os colegas que falam de bola ou decoração e péssimo para comentar a série que viram ontem. O dr. Costa garantiu que não haverá “um polícia ou um inspector atrás de cada pessoa, em cada local de trabalho”, até porque devemos assegurar o distanciamento social: o polícia vigia a dois metros. Além disso, o dr. Costa prometeu “controlo suplementar”, a cargo de uma Autoridade para as Condições do Trabalho. Ou pela ASAE. Ou pela FIFA. O vírus, que se aproveitava da chegada simultânea dos trabalhadores para saltar-lhes em cima, nem sabe onde se meteu. Se tudo correr pelo melhor, a empresa, esfrangalhada pelas regras e pelas multas, declara falência em dois tempos e, ao terceiro, o vírus está sozinho no parque de estacionamento.

Transportes públicos

Muitas das regras agora anunciadas evitam que os transportes públicos se encham nas horas de ponta. O problema é que, devido às regras ou às greves, fora das horas de ponta não há transportes públicos. Se houver, é ainda pior: as pessoas terão de andar neles.

CORONAVÍRUS  SAÚDE PÚBLICA  SAÚDE

 

COMENTÁRIOS:

Gens Ramos: O Dr. António, esqueceu-se de legislar onde colocar a máscara quando não está a ser usada. 1- na mão esquerda ou direita; 2- no queixo; 3- no braço/antebraço; 4 - no bolso; 5- na bolsa/oferta da farmácia; 6- noutro sítio que não estes.

Jorge Martins: simplesmente brilhante, o retrato perfeito da palhaçada em que vivemos. Estamos a começar uma tragédia de proporções nunca vistas na vertente econômica, financeira e de liberdade da nossa sociedade. Uma parte considerável disto teria sido evitável, mas ainda, para maior infelicidade, este povo no qual me incluo nunca o vai saber, perceber. Daqui a pouco aplaudiremos entudiasticamente os que nos meteram neste buraco. Triste sina a nossa.

David Pereira Há mais vida para além do Covid…: Esta situação da pandemia é algo que vem pôr as pessoas cara a cara com a finitude da vida e que mostra essa vulnerabilidade apesar de todos os avanços que a humanidade tem feito. Os governos têm que agir e as pessoas têm que ser responsáveis. Contudo, parece evidente que muitas medidas estão a ser tomadas porque as pessoas estão também a exigir ingenuamente que as autoridades façam isto desaparecer imediatamente, então é medida atrás de medida para dar o “conforto” que se está a fazer alguma coisa, faça ela muito sentido ou não. As pessoas não podem estar debaixo dos lençóis até que haja 0 casos durante 4 semanas. Muitas vidas irão ser afectadas ou perdidas por outras causas, falta de diagnóstico e tratamento de mais variadas doenças ou simples stress e ansiedade, se continuar a haver uma obsessão patológica com esta pandemia. Para não falar nas repercussões a longo-prazo na liberdade individual.

pedro dragone: é fácil fazer piadolas à volta de uma pandemia provocada por um vírus que, apesar de tudo, não é dos mais letais. Até ver. Se lhe der uma mutação como aconteceu com o vírus da gripe espanhola, que na segunda vaga (precisamente a de outono/inverno) matou que se fartou, as brincadeiras acabam. Ou, pelo menos, acabará quem lhes ache piada... Outro cenário provável é o nº de infecções disparar a um ritmo tal que os serviços de saúde (privados incluídos) colapsam, deixando gente a morrer em casa (na peste bubónica morriam até na rua...). E isso, com este vírus que tem uma enorme e ímpar capacidade de disseminação, é relativamente fácil de acontecer...

Ping PongYangpedro dragone: Talvez o Dr. AG não se leve sequer a sério... o meu receio são algumas das cabecitas mais fracas que possam ter algum tipo de exposição a cenas deste tipo... Isto aqui está perfeitamente contido, mas nunca fiando!

                                               

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