É, parece-me, o objectivo destas inscrições
doutrinárias sobre pluralidades sexuais como matéria preponderante para uma
disciplina sobre cidadania, a qual se alheia dos valores morais e cívicos
formativos do carácter e da reflexão, para se requintarem preferencialmente em
universos de intimidades condutores dos caracteres. Pouah!
Leiamos o texto de João Carlos Espada, e dois dos seus comentadores, (entre 101, a maioria desses acaloradamente avessa a explicações que não sejam do envolvimento partidário) e suspiremos de ineficácia, pese embora a racionalidade da demonstração.
CIDADANIA: MONISTA
OU PLURALISTA? /PREMIUM
Não se trata sobretudo de saber se a
disciplina Cidadania e Desenvolvimento deve ou não ser obrigatória. Trata-se de
saber, em primeiro lugar, se deve ser monista ou pluralista.
JOÃO CARLOS ESPADA
OBSERVADOR, 7/6/20
O
abaixo-assinado sobre os alunos de Famalicão terá tido pelo menos o mérito de
suscitar um intenso debate sobre um tema que até agora estava ausente na nossa
pra conduzir naça pública. Refiro-me
sobretudo ao preferentemente conteúdo da
disciplina ‘Cidadania e Desenvolvimento’. (Declaração de interesse: subscrevi
aquele abaixo-assinado.)
No âmbito deste estimável debate,
artigos inflamados e extensos (contra) abaixo-assinados têm vindo a defender a
obrigatoriedade da referida disciplina.
Mas parece haver nesta causa uma dissonância cognitiva. Não se trata sobretudo
de saber se a disciplina deve ou não ser obrigatória. Trata-se
de saber, em primeiro lugar, se a disciplina deve ser monista ou pluralista. Se
for monista, não pode ser obrigatória — de acordo com a nossa Constituição pluralista.
Esta dissonância cognitiva faz lembrar um debate antigo sobre a
Constituição de 1975. Devem as nacionalizações ser consagradas na Constituição?
Ralf Dahrendorf abordou
este tema crucial de forma relativamente simples a propósito de um impulso de sinal
contrário ocorrido na Europa de Leste após a queda do comunismo em 1989. Em
Reflexões sobre a Revolução na Europa (Gradiva, 1991), ele tentou refrear a tentação de colocar
nas Constituições das novas democracias pós-comunistas um modelo de ‘capitalismo
puro’. Tratava-se de certa forma de um impulso simétrico ao de colocar o
‘socialismo’ na Constituição portuguesa após a queda da ditadura em 1974.
Contrariando esses impulsos, Dahrendorf recordou
a distinção entre política constitucional e política normal. Na política
constitucional só há duas opções: ou uma Constituição demo-liberal pluralista,
ou uma Constituição autoritária e monista. A diferença reside sobretudo no
facto de que a Constituição demo-liberal pluralista permite e garante a
concorrência entre várias opções ao nível da política normal.
Por
exemplo, privatizar ou estatizar os caminhos de ferro são opções da política
normal e por isso não devem constar das normas constitucionais — mas apenas dos
programas de diferentes partidos que concorrem entre si civilizadamente no
Parlamento, sob a protecção da Constituição pluralista.
Na época actual, a estatizacão dos meios de produção deixou de estar
na moda como alegado requisito indispensável da democracia. O seu lugar foi agora ocupado
por teorias alegadamente emancipadoras sobre sexo, género e questões afins
(designadamente ambientais). A
teoria da moda actual consiste basicamente em dizer que não há democracia sem o
reconhecimento de que a identidade sexual é uma construção social, por isso
arbitrária e que, por isso, todos os comportamentos sexuais são arbitrários ou
equivalentes.
Pessoalmente,
não tenho nada contra a expressão pública e livre desse ponto de vista. Até
acho estimulante que o argumento possa ser amplamente apresentado — como diria
John Stuart Mill, gerará um estimável esforço intelectual para justificar a
posição clássica de que a identidade sexual tem um fundamento natural.
Mas
ficaria bastante aborrecido (para dizer o mínimo) se me viessem dizer que eu,
para poder ser considerado cidadão democrata, teria de subscrever a teoria da
identidade sexual como construção social.
Em rigor, para regressar ao exemplo de Dahrendorf, isto equivaleria a dizer
que, para ser democrata, seria necessário defender ou a estatizacão dos
caminhos de ferro (no caso português pós 1974) ou a sua privatização (no caso
da Europa de Leste pós 1989).
Acontece, simplesmente, que é isto mesmo que diz a disciplina de
‘Cidadania e Desenvolvimento’. Por
outras palavras, a disciplina de ‘Cidadania e Desenvolvimento’ sustenta a
doutrina monista segundo a qual a defesa das regras gerais da cidadania
democrática impõe a concordância com doutrinas específicas sobre sexualidade e
identidade de género.
Acontece, simplesmente, que esse entendimento da identidade de
género é apenas um entendimento particular —
o qual, numa democracia pluralista, é livre de se
exprimir e de concorrer com outros entendimentos particulares. E, por isso
mesmo, numa democracia pluralista, esse entendimento particular não pode ser
imposto como único intérprete da democracia.
Por outras palavras ainda: uma
disciplina sobre ‘Cidadania e Desenvolvimento’ poderá eventualmente incluir a
teoria sobre o género como ‘construção social’. Mas, se o fizer, terá
obrigatoriamente de citar essa teoria como uma proposta particular que concorre
com outras — que terão necessariamente de ser citadas, pelo menos em pé de
igualdade.
Há, naturalmente, uma outra hipótese mais simples: que a disciplina de
‘Cidadania’ (o ‘desenvolvimento’ poderia ficar na gaveta, como diria Mário
Soares) se centre basicamente no estudo da nossa Constituição pluralista e das
regras de civilidade, cortesia e respeito mútuo que nos permitem viver em
liberdade ordeira sob a lei — e não sob os caprichos autoritários dos chamados
“teóricos do género”.
Post
scriptum: Na noite da
passada sexta-feira, patrulhas activistas da chamada ‘Extinction Rebellion’
(alegadamente ambientalistas) bloquearam as tipografias de vários jornais britânicos
que consideram ‘reaccionários’ (incluindo The Telegraph e The Times).
Denunciando o inadmissível ataque à imprensa livre, o Telegraph abriu durante o
fim da semana as suas edições online a leitura gratuita. Disse o jornal: ’Do
enjoy — and feel free to agree or disagree. That’s democracy…’ [Talvez a
recomendação pudesse ser recordada aos autoritários defensores da doutrina
monista oficial de ‘Cidadania e Desenvolvimento’…]
COMENTÁRIOS:
pedro dragone: Um
artigo muito bem feito que toca na essência da questão. Na minha modesta
opinião a disciplina de Cidadania devia focar-se EXCLUSIVAMENTE no ensino das
REGRAS (que em muitos casos são leis a cumprir!) que pontuam e balizam o nosso
comportamento em sociedade, nas relações interpessoais, na utilização adequada
e segura dos espaços públicos, físicos e virtuais. E pouco mais que isso,
eventualmente abordando questões de educação para um alimentação e vida
saudáveis; ou relacionadas com literacia financeira básica p.e.
Questões
de natureza ideológica, religiosa ou sobre sexualidade não fazem o menor
sentido numa disciplina desta natureza. Poderiam contudo ser ministradas
em disciplinas opcionais, tais como filosofia, organização política,
história das religiões, teorias ou psicologia da sexualidade, etc, etc, mas,
como refere JCE, ministradas de uma forma plural para reflectir as dierentes
visões sobre o tema.
Com
estas restrições (a coisas básicas, objectivas e altamente consensuais) faz
todo o sentido que a disciplina seja obrigatória.
Porque essa disciplina é uma arma de moral política
disfarçada de ensino, como já se está a ver e era previsível que fosse. Ao
menos "Religião e Moral" diz ao que vamos, "Cidadania" é
algo de parecido com as escolas comunistas-fascistas ou das distopias em que o
Estado cria as crianças como peças normalizadas. Na China, obviamente que as
crianças são bem lavadas em "cidadania"! Quando crescidas recebem
pontos de acordo com o seu "bom" comportamento, e possivelmente
aplaudem e pedem mais. As que não aplaudem e não pedem mais, pois são encaminhadas para um "tratamento"
específico.
Joaquim Moreira: Trata-se de
uma abordagem muito correcta e lúcida, mas que vai directamente ao assunto, ou
à verdadeira razão, de só agora surgir a contestação. Na verdade, esta
disciplina de Cidadania, já há muito tempo que existia. O problema está no seu
“Desenvolvimento”, e nas, “teorias alegadamente emancipadoras sobre sexo,
género e questões afins”, que são a doutrina da esquerda, do momento. Por
isso, como diz e bem João Carlos
Espada: “Não se trata
sobretudo de saber se a disciplina deve ou não ser obrigatória. Trata-se
de saber, em primeiro lugar, se a disciplina deve ser monista ou pluralista. Se
for monista, não pode ser obrigatória — de acordo com a nossa Constituição
pluralista”. Infelizmente,
apesar desta clareza, até já os liberais de direita, compreendem a doutrina
desta seita. Ao aceitarem, sem manifestar o mínimo descontentamento, esta
disciplina obrigatória, de “Cidadania e Desenvolvimento”. E até colaborarem no
desconhecimento do que contém lá dentro!
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