terça-feira, 8 de setembro de 2020

A escola fofoqueira


É, parece-me, o objectivo destas inscrições doutrinárias sobre pluralidades sexuais como matéria preponderante para uma disciplina sobre cidadania, a qual se alheia dos valores morais e cívicos formativos do carácter e da reflexão, para se requintarem preferencialmente em universos de intimidades condutores dos caracteres. Pouah!

Leiamos o texto de João Carlos Espada, e dois dos seus comentadores, (entre 101, a maioria desses acaloradamente avessa a explicações que não sejam do envolvimento partidário) e suspiremos de ineficácia, pese embora a racionalidade da demonstração.

CIDADANIA: MONISTA OU PLURALISTA? /PREMIUM

Não se trata sobretudo de saber se a disciplina Cidadania e Desenvolvimento deve ou não ser obrigatória. Trata-se de saber, em primeiro lugar, se deve ser monista ou pluralista.

JOÃO CARLOS ESPADA

OBSERVADOR, 7/6/20

O abaixo-assinado sobre os alunos de Famalicão terá tido pelo menos o mérito de suscitar um intenso debate sobre um tema que até agora estava ausente na nossa pra conduzir   naça pública. Refiro-me sobretudo ao  preferentemente conteúdo da disciplina ‘Cidadania e Desenvolvimento’. (Declaração de interesse: subscrevi aquele abaixo-assinado.)

No âmbito deste estimável debate, artigos inflamados e extensos (contra) abaixo-assinados têm vindo a defender a obrigatoriedade da referida disciplina. Mas parece haver nesta causa uma dissonância cognitiva. Não se trata sobretudo de saber se a disciplina deve ou não ser obrigatória. Trata-se de saber, em primeiro lugar, se a disciplina deve ser monista ou pluralista. Se for monista, não pode ser obrigatória — de acordo com a nossa Constituição pluralista.

Esta dissonância cognitiva faz lembrar um debate antigo sobre a Constituição de 1975. Devem as nacionalizações ser consagradas na Constituição?

Ralf Dahrendorf abordou este tema crucial de forma relativamente simples a propósito de um impulso de sinal contrário ocorrido na Europa de Leste após a queda do comunismo em 1989. Em Reflexões sobre a Revolução na Europa (Gradiva, 1991), ele tentou refrear a tentação de colocar nas Constituições das novas democracias pós-comunistas um modelo de ‘capitalismo puro’. Tratava-se de certa forma de um impulso simétrico ao de colocar o ‘socialismo’ na Constituição portuguesa após a queda da ditadura em 1974.

Contrariando esses impulsos, Dahrendorf recordou a distinção entre política constitucional e política normal. Na política constitucional só há duas opções: ou uma Constituição demo-liberal pluralista, ou uma Constituição autoritária e monista. A diferença reside sobretudo no facto de que a Constituição demo-liberal pluralista permite e garante a concorrência entre várias opções ao nível da política normal.

Por exemplo, privatizar ou estatizar os caminhos de ferro são opções da política normal e por isso não devem constar das normas constitucionais — mas apenas dos programas de diferentes partidos que concorrem entre si civilizadamente no Parlamento, sob a protecção da Constituição pluralista.

Na época actual, a estatizacão dos meios de produção deixou de estar na moda como alegado requisito indispensável da democracia. O seu lugar foi agora ocupado por teorias alegadamente emancipadoras sobre sexo, género e questões afins (designadamente ambientais). A teoria da moda actual consiste basicamente em dizer que não há democracia sem o reconhecimento de que a identidade sexual é uma construção social, por isso arbitrária e que, por isso, todos os comportamentos sexuais são arbitrários ou equivalentes.

Pessoalmente, não tenho nada contra a expressão pública e livre desse ponto de vista. Até acho estimulante que o argumento possa ser amplamente apresentado — como diria John Stuart Mill, gerará um estimável esforço intelectual para justificar a posição clássica de que a identidade sexual tem um fundamento natural.

Mas ficaria bastante aborrecido (para dizer o mínimo) se me viessem dizer que eu, para poder ser considerado cidadão democrata, teria de subscrever a teoria da identidade sexual como construção social. Em rigor, para regressar ao exemplo de Dahrendorf, isto equivaleria a dizer que, para ser democrata, seria necessário defender ou a estatizacão dos caminhos de ferro (no caso português pós 1974) ou a sua privatização (no caso da Europa de Leste pós 1989).

Acontece, simplesmente, que é isto mesmo que diz a disciplina de ‘Cidadania e Desenvolvimento’. Por outras palavras, a disciplina de ‘Cidadania e Desenvolvimento’ sustenta a doutrina monista segundo a qual a defesa das regras gerais da cidadania democrática impõe a concordância com doutrinas específicas sobre sexualidade e identidade de género.

Acontece, simplesmente, que esse entendimento da identidade de género é apenas um entendimento particularo qual, numa democracia pluralista, é livre de se exprimir e de concorrer com outros entendimentos particulares. E, por isso mesmo, numa democracia pluralista, esse entendimento particular não pode ser imposto como único intérprete da democracia.

Por outras palavras ainda: uma disciplina sobre ‘Cidadania e Desenvolvimento’ poderá eventualmente incluir a teoria sobre o género como ‘construção social’. Mas, se o fizer, terá obrigatoriamente de citar essa teoria como uma proposta particular que concorre com outras — que terão necessariamente de ser citadas, pelo menos em pé de igualdade.

Há, naturalmente, uma outra hipótese mais simples: que a disciplina de ‘Cidadania’ (o ‘desenvolvimento’ poderia ficar na gaveta, como diria Mário Soares) se centre basicamente no estudo da nossa Constituição pluralista e das regras de civilidade, cortesia e respeito mútuo que nos permitem viver em liberdade ordeira sob a lei — e não sob os caprichos autoritários dos chamados “teóricos do género”.

Post scriptum: Na noite da passada sexta-feira, patrulhas activistas da chamada ‘Extinction Rebellion’ (alegadamente ambientalistas) bloquearam as tipografias de vários jornais britânicos que consideram ‘reaccionários’ (incluindo The Telegraph e The Times). Denunciando o inadmissível ataque à imprensa livre, o Telegraph abriu durante o fim da semana as suas edições online a leitura gratuita. Disse o jornal: ’Do enjoy — and feel free to agree or disagree. That’s democracy…’ [Talvez a recomendação pudesse ser recordada aos autoritários defensores da doutrina monista oficial de ‘Cidadania e Desenvolvimento’…]

ESCOLAS   EDUCAÇÃO 

COMENTÁRIOS:

pedro dragone: Um artigo muito bem feito que toca na essência da questão. Na minha modesta opinião a disciplina de Cidadania devia focar-se EXCLUSIVAMENTE no ensino das REGRAS (que em muitos casos são leis a cumprir!) que pontuam e balizam o nosso comportamento em sociedade, nas relações interpessoais, na utilização adequada e segura dos espaços públicos, físicos e virtuais. E pouco mais que isso, eventualmente abordando questões de educação para um alimentação e vida saudáveis; ou relacionadas com literacia financeira básica p.e.

Questões de natureza ideológica, religiosa ou sobre sexualidade não fazem o menor sentido numa disciplina desta natureza. Poderiam contudo ser ministradas em  disciplinas opcionais, tais como filosofia, organização política, história das religiões, teorias ou psicologia da sexualidade, etc, etc, mas, como refere JCE, ministradas de uma forma plural para reflectir as dierentes visões sobre o tema.

Com estas restrições (a coisas básicas, objectivas e altamente consensuais) faz todo o sentido que a disciplina seja obrigatória.

Porque essa disciplina é uma arma de moral política disfarçada de ensino, como já se está a ver e era previsível que fosse. Ao menos "Religião e Moral" diz ao que vamos, "Cidadania" é algo de parecido com as escolas comunistas-fascistas ou das distopias em que o Estado cria as crianças como peças normalizadas. Na China, obviamente que as crianças são bem lavadas em "cidadania"! Quando crescidas recebem pontos de acordo com o seu "bom" comportamento, e possivelmente aplaudem e pedem mais. As que não aplaudem e não pedem mais, pois são encaminhadas para um "tratamento" específico.

Joaquim Moreira: Trata-se de uma abordagem muito correcta e lúcida, mas que vai directamente ao assunto, ou à verdadeira razão, de só agora surgir a contestação. Na verdade, esta disciplina de Cidadania, já há muito tempo que existia. O problema está no seu “Desenvolvimento”, e nas, “teorias alegadamente emancipadoras sobre sexo, género e questões afins”, que são a doutrina da esquerda, do momento. Por isso, como diz e bem João Carlos Espada: “Não se trata sobretudo de saber se a disciplina deve ou não ser obrigatória. Trata-se de saber, em primeiro lugar, se a disciplina deve ser monista ou pluralista. Se for monista, não pode ser obrigatória — de acordo com a nossa Constituição pluralista”. Infelizmente, apesar desta clareza, até já os liberais de direita, compreendem a doutrina desta seita. Ao aceitarem, sem manifestar o mínimo descontentamento, esta disciplina obrigatória, de “Cidadania e Desenvolvimento”. E até colaborarem no desconhecimento do que contém lá dentro! 

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