quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Retrato com homenagem


No post-mortem, o que é costume. Mas são dois bonitos retratos sobre Vicente Jorge Silva - que morreu ontem. Homenagem costumeira, nestes casos. Mal parecia que assim não fosse, pois que o “póstumo” tem muita força momentânea. Na tristeza do momento – também eu me habituara a lê-lo, na última página do Público, por vezes com zanga – fica o soneto de Antero, a lembrar, arrastadamente, um desapego à vida, que Vicente Jorge Silva não tinha, de certeza, mas que fica aqui, com o sentimento desse eterno absurdo que acompanha a peregrinação do homem nesta Terra:

 

DESPONDENCY
Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...

Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do sul se levantaram...,

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida.

 

II – CRÓNICA:   Para o Vicente, debruçado a ler e a rir — e a dizer que nos esquecemos do mais importante

As perguntas do Vicente hão-de acompanhar-nos sempre. As respostas vão aparecendo nos jornais que lemos e nos filmes que vemos, acompanhadas agora pela pena de ele já não os poder ler ou ver. Vai ter muitas saudades da vida, o Vicente Jorge Silva. E a vida ainda não sabe as saudades que vai ter dele.

MIGUEL ESTEVES CARDOSO

PÚBLICO, 8 de Setembro de 2020

Escrevo sobre o Vicente Jorge Silva cheio de tristeza por ele já não estar vivo porque nunca conheci uma pessoa tão viva como ele.

Lembro-me do que ele me disse sobre uma vez em que ele esteve morto e voltou à vida e tenho uma esperança não muito secreta de que ele repita a brincadeira.

Morreu Vicente Jorge Silva (1945-2020): um jornalista exigente que fez história no jornalismo

Disse ele da morte que era uma chatice e que ele era o inimigo mortal da chatice.

Vivia para o que estava vivo, para o que era novo, para o que tinha graça, para o que estava na moda.

Ele próprio tinha um feitio clássico e aristocrático, apaixonado pela justiça e pela beleza, tendo consciência da rapidez e da volatilidade das várias modas em todas as artes.

Mas percebia que o momento é que interessa no momento e que o objecto do entusiasmo é importante só porque sem objecto, seja ele qual for, não há entusiasmo — e o entusiasmo é o que distingue a vida vivida daquela que é meramente observada.

O Vicente era um brincalhão, um mimado, um entusiasta, um teimoso, um iconoclasta, um artista: era uma criança.

Agia como se nunca tivesse sido reprimido, como um espírito livre que, não contente com a liberdade que tinha, queria essa mesma liberdade para toda a gente.

Era o contrário de um tirano. Era um libertador. Queria que toda a gente tivesse o que ele tinha. Era implacavelmente generoso. Nunca conheci uma pessoa mais fácil de convencer.

Como era frontal, transparente e sincero, sem qualquer cuidado de não ofender, havia quem o achasse bruto. Não era bruto. Era terno. Queria que fôssemos igualmente directos e corajosos com ele, como ele, como quiséssemos, como achássemos bem.

Eu era um dos “tontaços” que trabalharam com ele, na Revista do Expresso e no guião de um filme — A Casa e o Mar — que ele não chegou a filmar.

Havia muitas pessoas de quem ele gostava mais do que de mim, mas por isso mesmo sou testemunha da atmosfera que ele criou: uma atmosfera onde as artes podiam respirar, fosse qual fosse a sua atitude para com as várias manifestações que podiam ter.

Não era indiferença: era respeito. Embora fizesse questão de se exprimir o mais violentamente possível sobre as tonterias da semana, martelando-nos sobre a vacuidade dos protagonistas da moda, encorajava-nos a procurá-los e defendê-los com a mesma veemência com que ele os atacava.

O Vicente ensinou-me na prática, página por página, que os jornais e as revistas são fervedores que apanham as paixões do momento enquanto elas ainda ardem, que é a coisa mais bonita que podem fazer.

O Vicente ensinou-me na prática, dia após dia, que a obrigação de um jornal é ser interessante, de preferência irresistível. Tem de criar uma apetência imediata de ser lido. Esta frase parece banal, mas cada vez está mais longe de ser aprendida.

Ser inteligente; ser provocador; ser incómodo para os poderes instalados; inovar; despertar curiosidades; ser insaciavelmente desconfiado; ser indomável; ser irrequieto e exigente; ser blasé e volúvel, ser sério e frívolo ao mesmíssimo tempo... nada disto se pode ser sem primeiro ter sido lido.

Ser lido é o maior triunfo — foi esta a lição que o Vicente aplicou. Tudo o que vem depois — discordar, amaldiçoar o tempo que se perdeu a ler aquilo, achar que não podia estar mais mal escrito ou ser mais injusto ou ridículo ou pernicioso — é a festa, é o prazer, é a apoteose.

O Vicente como pessoa era melhor ainda. Era virado para os outros, para nós. Para cada um tinha uma brincadeira, uma maneira de falar, uma atenção só para aquela pessoa.

Aplicava a sua enorme sensibilidade para o bem. Para o bem dele, dos outros e para o Bem com letra grande, gótica. O amor que tinha pelos outros exprimia-se através de uma apaixonada curiosidade, que se irritava por não conseguir resposta: mas porque é que ela fez aquilo?; o que é que leva uma pessoa violeta e azul a ser tão verde e branca? Mas porquê?

As perguntas do Vicente hão-de acompanhar-nos sempre. As respostas vão aparecendo nos jornais que lemos e nos filmes que vemos, acompanhadas agora pela pena de ele já não os poder ler ou ver.

Vai ter muitas saudades da vida, o Vicente Jorge Silva.

E a vida ainda não sabe as saudades que vai ter dele.

TÓPICOS: OPINIÃO  VICENTE JORGE SILVA  JORNALISMO  IMPRENSA  PÚBLICO  MEDIA

 

II - OPINIÃO: Tudo o que devo a Vicente Jorge Silva

Devo imenso a Vicente Jorge Silva, grande criador do jornalismo português. Devo-lhe, desde logo, a profissão que escolhi. Decidi ser jornalista por causa do jornal PÚBLICO que Vicente criou, e esse PÚBLICO, o PÚBLICO da primeira metade da década de 90, quando os meios superabundavam e uma nova geração emergia das faculdades, é bem capaz de constituir a maior agremiação de talento do jornalismo português em democracia, até hoje inultrapassada.

JOÃO MIGUEL TAVARES,

PÚBLICO, 8 de Setembro de 2020

Vicente Jorge Silva morreu na madrugada desta terça-feira, aos 74 anos, no dia em que eu completei 47, e essa triste coincidência de datas e de números fez crescer em mim a vontade de escrever sobre ele e sobre este estranho mistério: o de devermos tanto a quem conhecemos tão pouco. Suponho que a reverência que devotamos aos grandes criadores derive daí – de sentirmos para com eles uma dívida imensa, por ser impossível devolver-lhes algum dia sequer uma ínfima parte daquilo que nos deram.

Devo imenso a Vicente Jorge Silva, grande criador do jornalismo português. Devo-lhe, desde logo, a profissão que escolhi. Decidi ser jornalista por causa do jornal PÚBLICO que Vicente criou, e esse PÚBLICO, o PÚBLICO da primeira metade da década de 90, quando os meios superabundavam e uma nova geração emergia das faculdades, é bem capaz de constituir a maior agremiação de talento do jornalismo português em democracia, até hoje inultrapassada. O Vicente não fez o PÚBLICO por causa de mim. Mas, em 1990, eu senti que o PÚBLICO tinha sido feito à minha medida.

O primeiro número do jornal saiu em Março de 1990, quando tinha 16 anos e estava a um ano e meio de entrar para a faculdade. Pedi aos meus pais para comprarem o primeiro número. E depois o segundo. Depois o terceiro. Depois a primeira semana. E por aí fora, até encher um armazém com a colecção completa de mais de dez anos de PÚBLICO, que guardava meticulosamente em sacos de plástico numerados. A meteorologia e a fauna inimiga do papel haveriam de comprometer irremediavelmente essa colecção, mas o mais importante ficou: após dois anos e meio passados no Técnico, a arrastar-me pela Engenharia Química, decidi que aquilo não era para mim, que queria ser jornalista, e trocar definitivamente as curvas de titulação pela pirâmide invertida. Até hoje.

O PÚBLICO do Vicente não foi apenas um jornal de que gostei muito. O PÚBLICO do Vicente foi a minha escola. Para um miúdo oriundo de Portalegre na era pré-internet, foi através das suas páginas que aprendi muito daquilo que sei e daquilo que sou. Nas longas viagens de autocarro entre Lisboa e Portalegre, ouvia os discos que o Fernando Magalhães, o Nuno Pacheco ou o Luís Maio me diziam para ouvir, num leitor de CD portátil que ganhei num concurso do PÚBLICO. Nas salas do cinema King, via os filmes que o Manuel Cintra Ferreira, o Mário Jorge Torres ou o Vasco Câmara me diziam para ver. À noite, lia os livros que o Eduardo Prado Coelho me aconselhava. De dia, aprendia o que era reportagem com o Adelino Gomes, o Pedro Rosa Mendes ou a Alexandra Lucas Coelho. E sobre todos eles, sobre tudo isto, pairava a figura tutelar do Vicente, que eu lia religiosamente, mesmo quando chamava rasca à minha geração.

A independência, a criatividade e a irreverência do Vicente vinham agarradas às páginas do PÚBLICO, como a tinta ao papel. O verdadeiro jornalista é aquele que gosta de notícias acima de tudo, independentemente da sua origem ou de quem possa incomodar. O verdadeiro jornalista tem convicções ideológicas e preferências políticas, mas o seu amor à notícia está muito acima delas – ele não só se está nas tintas para o facto de uma notícia desfavorecer aqueles que lhe estão mais próximos, como até sente um certo gosto quando isso acontece, por ser mais uma oportunidade para reafirmar a sua independência. Vicente Jorge Silva era um verdadeiro jornalista. E é por isso que ele continua a ser, hoje e sempre, uma verdadeira inspiração.

TÓPICOS  SOCIEDADE  VICENTE JORGE SILVA  PÚBLICO  JORNALISMO  MEDIA  COMENTÁRIOS

 

Nenhum comentário: