No post-mortem, o que é costume. Mas são
dois bonitos retratos sobre Vicente
Jorge Silva - que morreu ontem. Homenagem costumeira, nestes
casos. Mal parecia que assim não fosse, pois que o “póstumo” tem muita força
momentânea. Na tristeza do momento – também eu me habituara a lê-lo, na última
página do Público, por vezes com zanga – fica o soneto de Antero, a lembrar, arrastadamente,
um desapego à vida, que Vicente
Jorge Silva não tinha, de certeza, mas que fica aqui, com o
sentimento desse eterno absurdo que acompanha a peregrinação do homem nesta
Terra:
DESPONDENCY
Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...
Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do sul se levantaram...,
Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...
Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida.
II – CRÓNICA: Para o Vicente, debruçado a ler e a rir — e
a dizer que nos esquecemos do mais importante
As perguntas do Vicente hão-de
acompanhar-nos sempre. As respostas vão aparecendo nos jornais que lemos e nos
filmes que vemos, acompanhadas agora pela pena de ele já não os poder ler ou
ver. Vai ter muitas saudades da vida, o
Vicente Jorge Silva. E a vida ainda não sabe as saudades que vai ter dele.
MIGUEL ESTEVES
CARDOSO
PÚBLICO, 8 de
Setembro de 2020
Escrevo sobre o Vicente Jorge Silva cheio de
tristeza por ele já não estar vivo porque nunca conheci uma pessoa tão viva como ele.
Lembro-me do que ele me disse sobre uma vez em que ele
esteve morto e voltou à vida e tenho uma esperança não muito secreta de que ele
repita a brincadeira.
Morreu
Vicente Jorge Silva (1945-2020): um jornalista exigente que fez história no
jornalismo
Disse ele da morte que era uma chatice e que ele era o
inimigo mortal da chatice.
Vivia para o que estava vivo, para o que era novo,
para o que tinha graça, para o que estava na moda.
Ele próprio tinha um feitio clássico e aristocrático,
apaixonado pela justiça e pela beleza, tendo consciência da rapidez e da
volatilidade das várias modas em todas as artes.
Mas percebia que o momento é que interessa no momento
e que o objecto do entusiasmo é importante só porque sem objecto, seja ele qual
for, não há entusiasmo — e o entusiasmo é o que distingue a vida vivida daquela
que é meramente observada.
O Vicente era um brincalhão, um mimado, um entusiasta,
um teimoso, um iconoclasta, um artista: era uma criança.
Agia como se nunca tivesse sido reprimido, como um
espírito livre que, não contente com a liberdade que tinha, queria essa mesma
liberdade para toda a gente.
Era o contrário de um tirano. Era um libertador.
Queria que toda a gente tivesse o que ele tinha. Era implacavelmente generoso.
Nunca conheci uma pessoa mais fácil de convencer.
Como era frontal, transparente e sincero, sem qualquer
cuidado de não ofender, havia quem o achasse bruto. Não era bruto. Era terno.
Queria que fôssemos igualmente directos e corajosos com ele, como ele, como
quiséssemos, como achássemos bem.
Eu era um dos “tontaços” que trabalharam com ele, na Revista
do Expresso e no guião de um
filme — A Casa e o Mar —
que ele não chegou a filmar.
Havia muitas pessoas de quem ele gostava mais do que
de mim, mas por isso mesmo sou testemunha da atmosfera que ele criou: uma
atmosfera onde as artes podiam respirar, fosse qual fosse a sua atitude para
com as várias manifestações que podiam ter.
Não era indiferença: era respeito. Embora fizesse questão de se exprimir o
mais violentamente possível sobre as tonterias
da semana, martelando-nos sobre a vacuidade dos protagonistas da moda,
encorajava-nos a procurá-los e defendê-los com a mesma veemência com que ele os
atacava.
O Vicente ensinou-me
na prática, página por página, que os jornais e as revistas são fervedores que
apanham as paixões do momento enquanto elas ainda ardem, que é a coisa mais
bonita que podem fazer.
O Vicente ensinou-me na prática, dia após dia, que a
obrigação de um jornal é ser interessante, de preferência irresistível. Tem de
criar uma apetência imediata de ser lido. Esta frase parece banal, mas cada vez
está mais longe de ser aprendida.
Ser inteligente; ser provocador; ser incómodo para os
poderes instalados; inovar; despertar curiosidades; ser insaciavelmente
desconfiado; ser indomável; ser irrequieto e exigente; ser blasé e volúvel, ser sério e frívolo
ao mesmíssimo tempo... nada disto se pode ser sem primeiro ter sido lido.
Ser lido é o maior
triunfo — foi esta a lição que o Vicente aplicou. Tudo o que vem depois — discordar,
amaldiçoar o tempo que se perdeu a ler aquilo, achar que não podia estar mais
mal escrito ou ser mais injusto ou ridículo ou pernicioso — é a festa, é o
prazer, é a apoteose.
O Vicente como pessoa era melhor ainda. Era virado
para os outros, para nós. Para cada um tinha uma brincadeira, uma maneira de
falar, uma atenção só para aquela pessoa.
Aplicava a sua enorme sensibilidade para o bem. Para o
bem dele, dos outros e para o Bem com letra grande, gótica. O amor que tinha
pelos outros exprimia-se através de uma apaixonada curiosidade, que se irritava
por não conseguir resposta: mas porque é que ela fez aquilo?; o que é que leva
uma pessoa violeta e azul a ser tão verde e branca? Mas porquê?
As perguntas do Vicente hão-de acompanhar-nos sempre.
As respostas vão aparecendo nos jornais que lemos e nos filmes que vemos,
acompanhadas agora pela pena de ele já não os poder ler ou ver.
Vai ter muitas saudades
da vida, o Vicente Jorge Silva.
E a vida ainda não sabe as saudades que vai ter dele.
TÓPICOS: OPINIÃO
VICENTE JORGE
SILVA JORNALISMO
IMPRENSA PÚBLICO
MEDIA
II - OPINIÃO: Tudo o que devo a Vicente Jorge Silva
Devo imenso a Vicente Jorge Silva,
grande criador do jornalismo português. Devo-lhe, desde logo, a profissão que
escolhi. Decidi ser jornalista por causa do jornal PÚBLICO que Vicente criou, e
esse PÚBLICO, o PÚBLICO da primeira metade da década de 90, quando os meios
superabundavam e uma nova geração emergia das faculdades, é bem capaz de
constituir a maior agremiação de talento do jornalismo português em democracia,
até hoje inultrapassada.
JOÃO MIGUEL
TAVARES,
PÚBLICO, 8 de
Setembro de 2020
Vicente Jorge
Silva morreu na madrugada desta terça-feira, aos 74 anos, no dia em que eu completei 47, e essa triste
coincidência de datas e de números fez crescer em mim a vontade de escrever
sobre ele e sobre este estranho mistério: o de devermos tanto a quem conhecemos
tão pouco. Suponho que a reverência que devotamos aos grandes criadores derive
daí – de sentirmos para com eles uma dívida imensa, por ser impossível
devolver-lhes algum dia sequer uma ínfima parte daquilo que nos deram.
Devo imenso a Vicente Jorge Silva,
grande criador do jornalismo português.
Devo-lhe, desde logo, a profissão que escolhi. Decidi ser jornalista por causa
do jornal PÚBLICO que Vicente criou, e esse PÚBLICO, o PÚBLICO da primeira
metade da década de 90, quando os meios superabundavam e uma nova geração
emergia das faculdades, é bem capaz de constituir a maior agremiação de talento
do jornalismo português em democracia, até hoje inultrapassada. O Vicente
não fez o PÚBLICO por causa de mim. Mas, em 1990, eu senti que o PÚBLICO tinha
sido feito à minha medida.
O
primeiro número do jornal saiu em Março de 1990, quando tinha 16 anos e estava a um ano e meio de
entrar para a faculdade. Pedi aos meus pais para comprarem o primeiro número. E
depois o segundo. Depois o terceiro. Depois a primeira semana. E por aí fora,
até encher um armazém com a colecção completa de mais de dez anos de PÚBLICO,
que guardava meticulosamente em sacos de plástico numerados. A meteorologia e a
fauna inimiga do papel haveriam de comprometer irremediavelmente essa colecção,
mas o mais importante ficou: após dois anos e meio passados no Técnico, a arrastar-me
pela Engenharia Química, decidi que aquilo não era para mim, que queria ser
jornalista, e trocar definitivamente as curvas de titulação pela pirâmide
invertida. Até hoje.
O
PÚBLICO do Vicente não foi apenas um jornal de que gostei muito. O PÚBLICO do
Vicente foi a minha escola.
Para um miúdo oriundo de Portalegre na era pré-internet, foi através das suas
páginas que aprendi muito daquilo que sei e daquilo que sou. Nas longas viagens
de autocarro entre Lisboa e Portalegre, ouvia os discos que o Fernando
Magalhães, o Nuno Pacheco ou o Luís Maio me diziam para ouvir, num leitor de CD
portátil que ganhei num concurso do PÚBLICO. Nas salas do cinema King, via os
filmes que o Manuel Cintra Ferreira, o Mário Jorge Torres ou o Vasco Câmara me
diziam para ver. À noite, lia os livros que o Eduardo Prado Coelho me
aconselhava. De dia, aprendia o que era reportagem com o Adelino Gomes, o Pedro
Rosa Mendes ou a Alexandra Lucas Coelho. E sobre todos eles, sobre tudo
isto, pairava a figura tutelar do Vicente, que eu lia religiosamente, mesmo
quando chamava rasca à minha geração.
A
independência, a criatividade e a irreverência do Vicente vinham agarradas às
páginas do PÚBLICO, como a tinta ao papel. O verdadeiro jornalista é aquele que
gosta de notícias acima de tudo, independentemente da sua origem ou de quem
possa incomodar. O verdadeiro jornalista tem convicções ideológicas e
preferências políticas, mas o seu amor à notícia está muito acima delas – ele
não só se está nas tintas para o facto de uma notícia desfavorecer aqueles que
lhe estão mais próximos, como até sente um certo gosto quando isso acontece,
por ser mais uma oportunidade para reafirmar a sua independência. Vicente Jorge
Silva era um verdadeiro jornalista. E é por isso que ele continua a ser, hoje e
sempre, uma verdadeira inspiração.
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