segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Status


A corrupção não é um pecado mortal, está visto. Estes são, aprendi na doutrina que se aprendia dantes: 1º Soberba, 2º Avareza, 3º Luxúria, 4º Ira, 5º Gula, 6º Inveja, 7º Preguiça. E as respectivas virtudes suas oponentes: Contra a Soberba, Humildade; contra a Avareza, Liberalidade; contra a Luxúria, Castidade; contra a Ira, Paciência; contra a Gula, Temperança; contra a Inveja, Caridade contra a Preguiça, Diligência. Era mais ou menos assim, que se lia na Cartilha, em lenga-lenga inesquecível, escrupulosamente praticando eu alguns desses pecados, pela vida fora, sem me dar conta das infracções, sobretudo no que toca ao 4º e 5º, com reflexos sobre a saúde – daí que mortais. Muitos desses pecados estão, porém, na origem do “status” de que trata a Crónica de JPP, o da corrupção generalizada, para mais num país que aprendeu a doutrina, o que é de estranhar, e a quem a Nossa Senhora distinguiu com as suas aparições.

Não sei se ainda hoje se aprende a Cartilha e os pecados nela expostos como mortais. O certo é que não paramos de falar de corrupção, por cá. Faz parte do estatuto, nada a fazer.

 

OPINIÃO

Não deixem aos populistas a conversa sobre a corrupção...

Não se mistura “honra” com mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 19 de Setembro de 2020

… porque senão eles tornam-na num ataque contra a democracia, usando como pretexto a corrupção, que lhes é verdadeiramente indiferente. Mais do que nunca, temos que ter uma conversação rigorosa, dura, intransigente, mesmo impiedosa, sobre a corrupção. Por vários motivos: um, estrutural, porque a corrupção é endémica em Portugal; outro, de circunstância: porque vem aí da Europa o alimento da corrupção, milhares de milhões de euros. Já se vêem os bandos de pombos atrás do milho. Por último, porque nada mais fragiliza a democracia nos dias de hoje do que a corrupção num debate público envenenado pelas redes sociais, com a crise de toda a informação de qualidade, mediada e séria a ser substituída pelo clamor populista e pela crise colectiva da “educação para a cidadania” dos seus cultores...

Comecemos pelo carácter estrutural da corrupção em Portugal nos dias de hoje. O que é que se pode dizer quando temos enredados na justiça, arguidos, acusados, indiciados, toda a panóplia de graus de indiciação, um antigo primeiro-ministro, vários ex-ministros, vários secretários de Estado, autarcas, dirigentes da administração pública, militares de altas patentes, responsáveis policiais, juízes, procuradores, dirigentes desportivos de grandes clubes, empresários, gestores de topo, deputados, banqueiros, personalidades do jet-set, génios das tecnologias, uma multidão de medalhados, doutorados, homenageados, por aí adiante. Quem é que escapa?

O que aconteceu é que toda esta gente se encontrou uma ou mil vezes perante uma tentação a que não resistiu, ou que acolheu de braços tão abertos, que nem chega a ser tentação, felizes pelas oportunidades de ganhar dinheiro ilegalmente, de fugir aos impostos, de vender ou comprar um favor, de roubar com colarinho branquíssimo, de usar os seus conhecimentos nas altas esferas e os melhores conselheiros no mercado, para defraudar os “parvos” dos outros. Tiveram oportunidades, e criaram oportunidades, e é a facilidade com que isto aconteceu, e a fila enorme de gente importante que foi lá buscar o seu quinhão, que mostra que não é um problema de meia dúzia de corruptos, mas do “meio” que facilita o crime, ou seja, é estrutural e não conjuntural. Eles vivem no “meio” e são o “meio”.

Hoje isto é dinamite para a democracia. Já houve alturas em que não foi assim, ou não foi tão grave assim. Hoje, é. Os populistas usam a corrupção para atacar a democracia divulgando o mito de que regimes de ditadura como o de Salazar-Caetano não tinham corrupção. Completamente falso, e isso seria evidente se se tirasse a tampa da censura. Mas os políticos sérios em democracia ajudam a demagogia dos populistas a ter sucesso pela flacidez com que numa sociedade estruturalmente corrupta defrontam a corrupção. O problema da corrupção não vem da democracia, daí que o seu principal agente não seja sequer a chamada “classe política”, mas vem da sociedade, das debilidades do nosso tecido social, de uma burocracia assente em favores, da desigualdade de acesso ao poder e informação, e das várias promiscuidades entre poderes fácticos, como o contínuo que vai da construção civil aos clubes desportivos e terminando no poder político.

O problema é que os promíscuos não estão sozinhos, porque, se se pensa que o alarido populista significa verdadeira recusa deste tipo de actos, estão bem enganados. Como os culpados lembraram, faziam habitualmente este tipo de tráficos sem qualquer protesto, como se fosse normal e era reconhecido como normal. Até porque, como diz o ditado, o peixe apodrece pela cabeça e por isso, de cima a baixo, o sistema de cunhas, tráficos de influência, patrocinato e favores mergulha até ao fundo e, numa sociedade com este tipo de convívio com a pequena, a média e a grande corrupção, nunca haverá verdadeiro repúdio da corrupção a não ser nas bocas de café, agora transpostas para as redes sociais.

Uma das coisas que faz o populismo é centrar as suas acusações à corrupção “deles” e isolá-la como alvo principal, deixando de lado o meio em que ela é partilhada com “forças de segurança”, “agentes económicos”, “empresários de sucesso”, magistrados, protagonistas de um mundo em que o populismo não toca. Já viram alguma especial indignação com a corrupção nos grandes clubes quando não é o “nosso”? Como se as pessoas que vociferam nos cafés e nas redes não tivessem uma ideia de onde vem e para onde vão os muitos milhões e milhões que custam os jogadores.

Isto significa que não se pode fazer nada? Bem pelo contrário, pode até fazer-se muito, mas de um modo geral não é o que habitualmente se faz na resposta pavloviana à pressão populista. O populismo é contraproducente para combater a corrupção; pelo contrário, até a reforça. Não é aumentar as penas, não é diminuir as garantias do Estado de direito, não é oscilar entre a complacência e a intransigência. É pensar de uma ponta a outra a administração, das autarquias aos ministérios, é cortar radicalmente os milhares de pequenos poderes discricionários que por aí existem, obrigar a que sejam transparentes e escrutináveis muitos processos que nada justifica não serem públicos. Agora que vêm aí vários barris de dinheiro, é vital que tal se faça.

Mas é também dar o exemplo de que não se mistura “honra” com mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.

Historiador

TÓPICOS

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COMENTÁRIOS:

Daniel Alves.898115 INICIANTE: Caro Pacheco Pereira como se deve bem recordar, o regime democrático de Abril reabriu as portas às oligarquias apoiadas e protegidas durante o fascismo do regime Salazarista. Então nasceu a democracia, mas inquinada pois o corporativismo foi instaurado não só nos alicerces democráticos mas um pouco por todo o lado, tipo polvo ou melhor teia de aranha, claro que ninguém dava por nada, a cumplicidade dos massmedia que deixaram de ser livres mas condicionados pelo capital, manipulavam delicadamente o povo, e os partidos do poder, tanto o ps como o psd, criaram os seus "exércitos" de propaganda e claro de manipulação da sociedade no seu todo. Desde então, crise atrás de crise, FMI, CEE e agora Comunidade Europeia e a nula evolução da economia é sintomático do estado evolutivo de Portugal. 20.09.2020

Jonas Almeida MODERADOR: Um excelente artigo, e uma excelente ilustração com os barris de dinheiro com que se prepara uma corrupção ainda mais institucionalizada. Vejamos as contas a esses barris: "Bloomberg e o think tank alemão ZEW fizeram estimativas com base na proposta de Merkel e Macron (...) e ambas concluem que Portugal será um contribuinte líquido". Leram bem - contribuinte líquido!!! A citação é tirada do "A corrupção e os 26 mil milhões da UE" de Susana Peralta há um par de meses aqui no Público onde encontram o resto. A História é bem clara nesse ponto - não há centralismo que viva de outra coisa se não da corrupção e compadrio. Não interessa com que clube ou ideologia se vestem. Como nota JPP, se os democratas não lhe resistem, os populistas ocuparão o espaço vagado. 19.09.2020

Roberto34 INFLUENTE: A proposta de Merkel e Macron não avançou. A decisão final é diferente. E não, não existe nenhuma citação nesse artigo a afirmar que Portugal é um contribuinte líquido. Porque não é. Aliás Portugal é um dos maiores beneficiários. Portanto nunca poderia ser um contribuinte líquido.19.09.2020

JPR_Kapa INICIANTE: JPP toca num ponto essencial nesta sua reflexão motivadora - a condição estrutural do actual nível corrupção, aqui e em muitas geografias, e que é indissociável do modelo de capitalismo neoliberal, iniciado no período de Reagan e Thatcher, que substituiu o capitalismo democrático do pós-guerra. Foi o fim da influência de Keynes substituída pela de Hayek, o grupo de Monte Pelligrin e pela escola de Chicago, O lema era claro: "a ganância é uma virtude" e com base nisso desregularam-se os mercados, criaram-se casinos financeiros e com a globalização e a utilização do crédito (ou seja a dívida), para substituir o rendimento do trabalho, que deixou de crescer, fomentou estados, empresas e cidadãos endividados, assim reféns da sua natural ambição.

JLR INFLUENTE: Num país materialmente pobre como o nosso, passado que foi o dinheiro das especiarias da Índia e o ouro do Brasil (bastante mal gastos, como parece ser nossa sina), numa sociedade que não experimentou a revolução industrial no século XIX, analfabeta e pobre, era normal estabelecer-se um ambiente de corrupção endémica (em que se inclui a cunha, o amiguismo, o favor, a subserviência aos Senhores importantes da terra - deputados, autarcas, membros do alto clero, e outros - pelo temor e pelo reconhecimento de migalhas eventualmente concedidas, etc.). A leitura dos clássicos, de obras como "A Queda de um Anjo", de Camilo, "A Morgadinha dos Canaviais", de Júlio Dinis (que li por sugestão de JPP há já alguns artigos), das obras de Eça e de outros, mostra-nos isto mesmo. 19.09.2020

jofabianito.937913 INICIANTE: Não, óbvio que não, vamos deixar a conversa sobre a corrupção como está, entregue a um sistema subversivo e aos seus agentes... 19.09.2020

pronouncer EXPERIENTE: Convém é não chamar populista a todo e qualquer um que não fale dos assuntos da corrupção com punhos de renda. Colocar Ventura e Ana Gomes no mesmo saco, é promover Ventura àquilo que ele nunca foi nem nunca será. 19.09.2020

Aónio Eliphis EXPERIENTE : Excelente texto. Contudo, embora sendo naturalmente um defensor da Democracia, considero que a democracia alimenta a corrupção, pois o eleitorado tende a eleger demagogos, sendo que os demagogos são muito mais propensos à corrupção. 19.09.2020

DemocrataXXI EXPERIENTE: Essa é a conclusão a que o populismo antiliberal nos quer fazer chegar, pelos vistos a si, já o têm no papo. A corrupção é endémica na espécie humana, em ditadura só verá o que o regime quer que veja . 19.09.2020

Bom dia, Lisboa! INFLUENTE: Belíssimo artigo.

Jonas Almeida MODERADOR: Subscrevo. Uma das mais límpidas vozes da Democracia na nossa praça pública. Nos meandros do poder os representantes obrigatórios abotoam-se uns aos outros. Terá de vir uma democracia da demos na próxima volta da nossa História. Esta parece irreformável, mais ainda com a gula atiçada pelos "barris de dinheiro" do compadrio ainda mais centralista de Bruxelas. 19.09.2020

tecosta INICIANTE: A democracia nestes modernos tempos passou da Taberna para as redes sociais. O comentário fácil, geralmente vazio e sem consequência louvável entre amigos inebriados pela vaidade de palco, nas redes tornou-se na arma mais poderosa dos políticos actuais. Estes utilizam as redes incansavelmente para lavar/aditar novas realidades, recrutar com mestria novos adictos para propagarem, como uma doença contagiosa, a mentira, a mediocridade, a mendicidade, a corrupção, o egoísmo, a falta de valores e respeito. Os populistas, gente medíocre, engordam e crescem "grandes". Amanhã os responsáveis indirectos pelo seu crescimento vão mudar para a sua casa. Os obreiros da lapidação dos Valores Democráticos e da Democracia são a geração herdeira do 25 de Abril. Alcateia que envergonha a história de ontem. 19.09.2020

José Cruz Magalhaes MODERADOR: Há alguns anos, António Costa proferiu a frase que quis que fosse um ponto final, numa questão que persiste: à Justiça o que é da Justiça e à política, o que é da política. Desta vez, não arriscou o seu equivalente entre futebol e política, porque terá percebido que tudo isto está ligado, como a acusação proferida, ontem, pelo MP, contra juízes, desembargadores, magistrados e um dirigente veio demonstrar. A abordagem que JPP faz, neste texto, à corrupção como parte do sistema e arma de arremesso usada por franco atiradores pouco recomendáveis é magistral. A sociedade, como um todo, é conivente e cede, em algum ou em vários momentos, às pressões, abusos e manifestações de poderes discricionários, mais ou menos prepotentes, que se desenvolvem em pirâmide e contaminam toda a sociedade. Depois, em momentos de opereta, ou farsa, convocam-se sábios e peritos, para a elaboração de códigos de ética que acabam por ter a mesma utilidade das leis que deveriam derivar e incluir conceitos e princípios, se não se destinassem a ser ignoradas, contornadas ou violadas. 19.09.2020

DemocrataXXI EXPERIENTE: Totalmente de acordo. Muitos votos irão para o Chega, por via do discurso anti- corrupção, a que a democracia adere de forma significativamente mais tímida. O que em ditadura ficava debaixo dos panos, as democracias mostram e assim, a transparência, essa coisa que poderia ser a sua maior força é tb. a sua maior fragilidade, sobretudo nestes tempos, em que a retórica populista se aprimorou de forma excepcional. Como muito bem diz Maria José Morgado, "a corrupção, é como o pó que todos os dias se acumula em nossas casas" 19.09.2020

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