A corrupção não é um pecado mortal, está
visto. Estes são, aprendi na doutrina que se aprendia dantes: 1º Soberba, 2º Avareza, 3º Luxúria, 4º
Ira, 5º Gula, 6º Inveja, 7º Preguiça. E as respectivas virtudes suas
oponentes: Contra a Soberba, Humildade;
contra a Avareza, Liberalidade;
contra a Luxúria, Castidade; contra a
Ira, Paciência; contra a Gula, Temperança; contra a Inveja, Caridade contra a Preguiça, Diligência. Era mais ou menos assim, que
se lia na Cartilha, em lenga-lenga inesquecível, escrupulosamente praticando eu
alguns desses pecados, pela vida fora, sem me dar conta das infracções,
sobretudo no que toca ao 4º e 5º, com reflexos sobre a saúde – daí que mortais.
Muitos desses pecados estão, porém, na origem do “status” de que trata a
Crónica de JPP, o da corrupção generalizada, para mais num país que aprendeu a
doutrina, o que é de estranhar, e a quem a Nossa Senhora distinguiu com as suas
aparições.
Não sei se ainda hoje se aprende a
Cartilha e os pecados nela expostos como mortais. O certo é que não paramos de
falar de corrupção, por cá. Faz parte do estatuto, nada a fazer.
OPINIÃO
Não deixem aos populistas a conversa
sobre a corrupção...
Não se mistura “honra” com mundos
muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do
presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade
com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face
à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam
com uma mancha.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
PÚBLICO, 19 de
Setembro de 2020
… porque senão eles tornam-na num
ataque contra a democracia, usando como pretexto a corrupção, que lhes é
verdadeiramente indiferente. Mais do que
nunca, temos que ter uma conversação rigorosa, dura, intransigente, mesmo
impiedosa, sobre a corrupção.
Por vários motivos: um, estrutural, porque a corrupção é endémica em
Portugal; outro, de
circunstância: porque vem aí da Europa o alimento da corrupção, milhares de
milhões de euros. Já se vêem os bandos de pombos atrás do milho.
Por último, porque nada
mais fragiliza a democracia nos dias de hoje do que a corrupção num debate
público envenenado pelas redes sociais, com a crise de toda a informação de
qualidade, mediada e séria a ser substituída pelo clamor populista e pela crise
colectiva da “educação para a cidadania” dos seus cultores...
Comecemos
pelo carácter estrutural
da corrupção em Portugal nos dias de hoje. O que é que se pode dizer quando
temos enredados na justiça, arguidos, acusados, indiciados, toda a panóplia
de graus de indiciação, um antigo primeiro-ministro, vários ex-ministros,
vários secretários de Estado, autarcas, dirigentes da administração pública,
militares de altas patentes, responsáveis policiais, juízes, procuradores,
dirigentes desportivos de grandes clubes, empresários, gestores de topo, deputados,
banqueiros, personalidades do jet-set, génios das tecnologias, uma multidão de
medalhados, doutorados, homenageados, por aí adiante. Quem é que escapa?
O
que aconteceu é que toda esta gente se encontrou uma ou mil vezes perante uma
tentação a que não resistiu, ou que acolheu de braços tão abertos, que nem
chega a ser tentação, felizes pelas oportunidades de ganhar dinheiro
ilegalmente, de fugir aos impostos, de vender ou comprar um favor, de roubar
com colarinho branquíssimo, de usar os seus conhecimentos nas altas esferas e
os melhores conselheiros no mercado, para defraudar os “parvos” dos outros.
Tiveram oportunidades, e criaram oportunidades, e é a facilidade com que
isto aconteceu, e a fila enorme de gente importante que foi lá buscar o seu
quinhão, que mostra que não é um problema de meia dúzia de corruptos, mas do
“meio” que facilita o crime, ou seja, é estrutural e não conjuntural. Eles
vivem no “meio” e são o “meio”.
Hoje isto é dinamite para a
democracia. Já houve
alturas em que não foi assim, ou não foi tão grave assim. Hoje, é. Os
populistas usam a corrupção para atacar a democracia divulgando o mito de que
regimes de ditadura como o de Salazar-Caetano não tinham corrupção.
Completamente falso, e isso seria evidente se se tirasse a tampa da censura.
Mas os políticos sérios em democracia ajudam a demagogia dos populistas a
ter sucesso pela flacidez com que numa sociedade estruturalmente corrupta
defrontam a corrupção. O problema da corrupção não vem da democracia, daí
que o seu principal agente não seja sequer a chamada “classe política”, mas vem
da sociedade, das debilidades do nosso tecido social, de uma burocracia assente
em favores, da desigualdade de acesso ao poder e informação, e das várias
promiscuidades entre poderes fácticos, como o contínuo que vai da construção
civil aos clubes desportivos e terminando no poder político.
O
problema é que os promíscuos não estão sozinhos, porque, se se pensa que o
alarido populista significa verdadeira recusa deste tipo de actos, estão bem
enganados. Como os culpados lembraram, faziam habitualmente este tipo de
tráficos sem qualquer protesto, como se fosse normal e era reconhecido como
normal. Até porque, como diz o ditado, o peixe apodrece pela cabeça e por
isso, de cima a baixo, o sistema de cunhas, tráficos de influência, patrocinato
e favores mergulha até ao fundo e, numa sociedade com este tipo de convívio com
a pequena, a média e a grande corrupção, nunca haverá verdadeiro repúdio da
corrupção a não ser nas bocas de café, agora transpostas para as redes sociais.
Uma das coisas que faz o populismo é
centrar as suas acusações à corrupção “deles” e isolá-la como alvo principal,
deixando de lado o meio em que ela é partilhada com “forças de segurança”,
“agentes económicos”, “empresários de sucesso”, magistrados, protagonistas de
um mundo em que o populismo não toca.
Já viram alguma especial indignação com a corrupção nos grandes clubes quando
não é o “nosso”? Como se as pessoas que vociferam nos cafés e nas redes não
tivessem uma ideia de onde vem e para onde vão os muitos milhões e milhões que
custam os jogadores.
Isto significa que não se pode fazer
nada? Bem pelo contrário, pode até fazer-se muito, mas de um modo geral não é o
que habitualmente se faz na resposta pavloviana à pressão populista. O populismo é contraproducente para combater a
corrupção; pelo contrário, até a reforça. Não é aumentar as penas, não é
diminuir as garantias do Estado de direito, não é oscilar entre a complacência
e a intransigência. É pensar de uma ponta a outra a administração, das
autarquias aos ministérios, é cortar radicalmente os milhares de pequenos
poderes discricionários que por aí existem, obrigar a que sejam transparentes e
escrutináveis muitos processos que nada justifica não serem públicos. Agora que
vêm aí vários barris de dinheiro, é vital que tal se faça.
Mas é também
dar o exemplo de que não se mistura “honra” com
mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do
primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do
futebol é muito grave, porque significa indiferença face à
corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.
Historiador
TÓPICOS
OPINIÃO
JUSTIÇA CORRUPÇÃO GOVERNO POPULISMO DEMOCRACIA EXTREMA-DIREITA
COMENTÁRIOS:
Daniel Alves.898115 INICIANTE: Caro Pacheco
Pereira como se deve bem recordar, o regime democrático de Abril reabriu as
portas às oligarquias apoiadas e protegidas durante o fascismo do regime
Salazarista. Então nasceu a democracia, mas inquinada pois o corporativismo foi
instaurado não só nos alicerces democráticos mas um pouco por todo o lado, tipo
polvo ou melhor teia de aranha, claro que ninguém dava por nada, a cumplicidade
dos massmedia que deixaram de ser livres mas condicionados pelo capital,
manipulavam delicadamente o povo, e os partidos do poder, tanto o ps como o
psd, criaram os seus "exércitos" de propaganda e claro de manipulação
da sociedade no seu todo. Desde então, crise atrás de crise, FMI, CEE e agora
Comunidade Europeia e a nula evolução da economia é sintomático do estado
evolutivo de Portugal. 20.09.2020
Jonas Almeida MODERADOR: Um excelente
artigo, e uma excelente ilustração com os barris de dinheiro com que se prepara
uma corrupção ainda mais institucionalizada. Vejamos as contas a esses barris:
"Bloomberg e o think tank alemão ZEW fizeram estimativas com base na
proposta de Merkel e Macron (...) e ambas concluem que Portugal será um
contribuinte líquido". Leram bem - contribuinte líquido!!! A citação é
tirada do "A corrupção e os 26 mil milhões da UE" de Susana Peralta
há um par de meses aqui no Público onde encontram o resto. A História é bem
clara nesse ponto - não há centralismo que viva de outra coisa se não da corrupção
e compadrio. Não interessa com que clube ou ideologia se vestem. Como nota JPP,
se os democratas não lhe resistem, os populistas ocuparão o espaço vagado.
19.09.2020
Roberto34 INFLUENTE: A proposta de
Merkel e Macron não avançou. A decisão final é diferente. E não, não existe
nenhuma citação nesse artigo a afirmar que Portugal é um contribuinte líquido.
Porque não é. Aliás Portugal é um dos maiores beneficiários.
Portanto nunca poderia ser um contribuinte líquido.19.09.2020
JPR_Kapa
INICIANTE: JPP
toca num ponto essencial nesta sua reflexão motivadora - a condição estrutural
do actual nível corrupção, aqui e em muitas geografias, e que é indissociável
do modelo de capitalismo neoliberal, iniciado no período de Reagan e Thatcher,
que substituiu o capitalismo democrático do pós-guerra. Foi o fim da influência
de Keynes substituída pela de Hayek, o grupo de Monte Pelligrin e pela escola
de Chicago, O lema era claro: "a ganância é uma virtude" e com
base nisso desregularam-se os mercados, criaram-se casinos financeiros e com a
globalização e a utilização do crédito (ou seja a dívida), para substituir o
rendimento do trabalho, que deixou de crescer, fomentou estados, empresas e
cidadãos endividados, assim reféns da sua natural ambição.
JLR INFLUENTE: Num país materialmente pobre como o
nosso, passado que foi o dinheiro das especiarias da Índia e o ouro do
Brasil (bastante mal gastos, como parece ser nossa sina), numa sociedade que
não experimentou a revolução industrial no século XIX, analfabeta e pobre, era
normal estabelecer-se um ambiente de corrupção endémica (em que se inclui a
cunha, o amiguismo, o favor, a subserviência aos Senhores importantes da terra
- deputados, autarcas, membros do alto clero, e outros - pelo temor e pelo
reconhecimento de migalhas eventualmente concedidas, etc.). A leitura dos
clássicos, de obras como "A Queda de um Anjo", de Camilo, "A
Morgadinha dos Canaviais", de Júlio Dinis (que li por sugestão de JPP há
já alguns artigos), das obras de Eça e de outros, mostra-nos isto mesmo.
19.09.2020
jofabianito.937913 INICIANTE: Não, óbvio que
não, vamos deixar a conversa sobre a corrupção como está, entregue a um sistema
subversivo e aos seus agentes... 19.09.2020
pronouncer EXPERIENTE: Convém é não chamar populista a
todo e qualquer um que não fale dos assuntos da corrupção com punhos de renda.
Colocar Ventura e Ana Gomes no mesmo saco, é promover Ventura àquilo que ele
nunca foi nem nunca será. 19.09.2020
Aónio Eliphis EXPERIENTE : Excelente texto. Contudo,
embora sendo naturalmente um defensor da Democracia, considero que a democracia
alimenta a corrupção, pois o eleitorado tende a eleger demagogos, sendo que os
demagogos são muito mais propensos à corrupção. 19.09.2020
DemocrataXXI EXPERIENTE: Essa é a conclusão a que o
populismo antiliberal nos quer fazer chegar, pelos vistos a si, já o têm no
papo. A corrupção é endémica na espécie humana, em ditadura só verá o que o
regime quer que veja . 19.09.2020
Bom dia, Lisboa! INFLUENTE: Belíssimo artigo.
Jonas Almeida
MODERADOR: Subscrevo. Uma
das mais límpidas vozes da Democracia na nossa praça pública. Nos meandros do
poder os representantes obrigatórios abotoam-se uns aos outros. Terá de vir uma
democracia da demos na próxima volta da nossa História. Esta parece
irreformável, mais ainda com a gula atiçada pelos "barris de
dinheiro" do compadrio ainda mais centralista de Bruxelas. 19.09.2020
tecosta INICIANTE: A democracia nestes modernos
tempos passou da Taberna para as redes sociais. O comentário fácil, geralmente
vazio e sem consequência louvável entre amigos inebriados pela vaidade de
palco, nas redes tornou-se na arma mais poderosa dos políticos actuais. Estes
utilizam as redes incansavelmente para lavar/aditar novas realidades, recrutar
com mestria novos adictos para propagarem, como uma doença contagiosa, a
mentira, a mediocridade, a mendicidade, a corrupção, o egoísmo, a falta de
valores e respeito. Os populistas, gente medíocre, engordam e crescem
"grandes". Amanhã os responsáveis indirectos pelo seu crescimento vão
mudar para a sua casa. Os obreiros da lapidação dos Valores Democráticos e da
Democracia são a geração herdeira do 25 de Abril. Alcateia que envergonha a
história de ontem. 19.09.2020
José Cruz Magalhaes MODERADOR: Há alguns anos, António Costa proferiu a frase que
quis que fosse um ponto final, numa questão que persiste: à Justiça o que é da
Justiça e à política, o que é da política. Desta vez, não arriscou o seu
equivalente entre futebol e política, porque terá percebido que tudo isto está
ligado, como a acusação proferida, ontem, pelo MP, contra juízes, desembargadores,
magistrados e um dirigente veio demonstrar. A abordagem que JPP faz, neste
texto, à corrupção como parte do sistema e arma de arremesso usada por franco
atiradores pouco recomendáveis é magistral. A sociedade, como um todo, é
conivente e cede, em algum ou em vários momentos, às pressões, abusos e
manifestações de poderes discricionários, mais ou menos prepotentes, que se
desenvolvem em pirâmide e contaminam toda a sociedade. Depois, em momentos de
opereta, ou farsa, convocam-se sábios e peritos, para a elaboração de códigos
de ética que acabam por ter a mesma utilidade das leis que deveriam derivar e
incluir conceitos e princípios, se não se destinassem a ser ignoradas, contornadas
ou violadas. 19.09.2020
DemocrataXXI EXPERIENTE: Totalmente de acordo. Muitos
votos irão para o Chega, por via do discurso anti- corrupção, a que a
democracia adere de forma significativamente mais tímida. O que em ditadura
ficava debaixo dos panos, as democracias mostram e assim, a transparência, essa
coisa que poderia ser a sua maior força é tb. a sua maior fragilidade,
sobretudo nestes tempos, em que a retórica populista se aprimorou de forma excepcional.
Como muito bem diz Maria José Morgado, "a corrupção, é como o pó que todos
os dias se acumula em nossas casas" 19.09.2020
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