sábado, 5 de setembro de 2020

O vício da cunha “à cunha”


Dois textos distantes no tempo, o de Pacheco Pereira apoiado em número de casos das suas pesquisas livrescas ou do seu saber atento à vida, o de Esteves Cardoso no gosto das suas deglutições acompanhando as suas ponderações resultantes do prazer de viver, com probidade de pensamento como constante, parece-me. No tempo de Salazar também se falava de cunha, é certo, mas havia concursos que posicionavam os concorrentes. Lembro-me do meu pai a estudar para o cargo de Fiel de Armazém – o que ele estudou de matérias fundas, Santo Deus!, que passavam pelos nomes das circunscrições até, de um vasto Moçambique, e tantas coisas mais que fixava, ora sentado, ora passeando-se, de livro em punho, que lhe valeu o primeiro lugar no concurso. Mas não me lembro de se falar então em cunhas, tal como nos concursos para os lugares nos liceus e escolas. Mas não pesquisei, é certo. O 25 de Abril trouxe o esmorecimento dos concursos, se bem que as colocações dos professores, por exemplo, e de outros cargos, talvez, se façam como sempre, por ordem de classificações e de tempo de serviço. Nos cargos particulares, calculo que o factor cunha, ou o apreço pessoal joguem mais em favor dos concorrentes, mas o tal vício da cunha é, de facto, pecha antiga, que já João de Deus satiriza, embora sobretudo debruçado no factor “dinheiro” para a troca de favores tão do nosso gosto, nitidamente parcimonioso em cumprimentos – e reconhecimentos – de competência – salvas as excepções da regra. Eis a sátira de João de Deus

O DINHEIRO
O dinheiro é tão bonito,    Tão bonito, o maganão!    Tem tanta graça, o maldito,    Tem tanto chiste, o ladrão!    O falar, fala de um modo...    Todo ele, aquele todo...    E elas acham-no tão guapo!    Velhinha ou moça que veja,    Por mais esquiva que seja    Tlim!..    Papo.

E a cegueira da justiça    Como ele a tira num ai!     Sem lhe tocar com a pinça;    É só dizer-lhe: «Aí vai...»    Operação melindrosa,    Que não é lá qualquer coisa;    Catarata, tome conta!    Pois não faz mais do que isto,    Diz-me um juiz que o tem visto:     Tlim!    Pronta.

Nessas espécies de exames    Que a gente faz em rapaz,    São milagres aos enxames    O que aquele demo faz!    Sem saber nem patavina    De gramática latina,    Quer-se um rapaz dali fora?    Vai ele com tais falinhas,    Tais gaifonas, tais coisinhas...    .Tlim!    Ora...

Aquela fisionomia    E lábia que o demo tem!    Mas numa secretaria    Aí é que é vê-lo bem!    Quando ele de grande gala,    Entra o ministro na sala,    Aproveita a ocasião:    «Conhece este amigo antigo?»   
— Oh, meu tão antigo amigo!    .(Tlim!)    .Pois não!

 

I-OPINIÃO: O cimento das cunhas

Que estranho e agressivo ouvir dalguém que “não faz favores a ninguém!” Não interessa que isso de não fazer favores a ninguém seja a base da justiça e da democracia.

MIGUEL ESTEVES CARDOSO        PÚBLICO, 4 de Setembro de 2020

“Há clientes a quem fazemos mil favores, um a um, mas um dia pedem-nos uma coisa que não podemos fazer — e nunca mais vêm.” Estávamos a falar de uma pessoa que nos tínhamos habituado a ver no restaurante aonde costumamos ir jantar. Nunca mais tinha aparecido.

Em Portugal estamos tão viciados em favores que nunca nos bastam os antigos, por muitos que tenhamos acumulado ao longo dos anos. Tem de haver sempre um favor novo, para abrir o paladar.

Somos tão nepotistas que só nós é que compreendemos as nuances do nosso imenso vocabulário de favorecimento: a diferença entre ter um contacto e um conhecimento e a distância que vai destes dois a uma boa, velha cunha.

É por isso que se fala tão pouco de merecimento uma das questões principais da filosofia moral e política — e, por conseguinte, da igualdade de oportunidade.

Somos adeptos do poder discricionário ao ponto de aceitarmos uma decisão que nos prejudica só porque quem a tomou “estava mal disposto”. É por isso que cultivamos a boa disposição de quem decide, apresentando-nos como casos especiais.

Somos todos especiais. Todos nós merecemos uma atenção, um tratamento, uma consideração. E é um erro pensar que isso se traduz apenas em descontos: os descontos vão muito além do dinheiro. Que mais se poderia esperar de uma cultura que gira à volta do “se faz favor"?

Que estranho e agressivo ouvir dalguém que “não faz favores a ninguém!”  Não interessa que isso de não fazer favores a ninguém seja a base da justiça e da democracia.

Portugal é o país do cunhecimento.

Colunista

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COMENTÁRIOS:

DemocrataXXI INICIANTE: Verdade, somos tão tão nepotistas, que sequer damos conta do que isso seja.     José P. MODERADOR: Bom dia. Creio que não se trata de cunhismo mas sim servilismo. O servilismo tomou conta da nossa sociedade. As pessoas são servis, ou são obrigadas a sê-lo, e quando pagam ou decidem exigem receber na mesma moeda. Nos anos 90 as pessoas servis eram gozadas e hoje são respeitadas. São relações pobres, de pessoas pouco educadas e muito desconfiadas.    Armando Heleno EXPERIENTE: Esta situação nunca irá mudar, quando muito, atenuar qualquer coisinha. Também não vejo nisto um crime de lesa pátria. Alguém tem de ocupar determinado lugar e se for igualmente competente, não vejo crime na coisa. Numa outra situação poderá esse preterido de então ser ele o favorecido numa outra fase. Guterres já previa estas situações: "É a vida". Um favorzinho não se deve negar a ninguém.

Fugo EXPERIENTE: Viva! Haja quem ponha o dedo na ferida desta sociedade enferma. Podia, como creio que todos nós, pôr-me aqui dar exemplos de favorecimentos em detrimento de outros com melhores capacidades, mas depois lembrei-me que, se puder, faço o mesmo. Aqui não se consegue evoluir sem os favores, as cunhas, o cair em graça com a pessoa certa, no momento certo. O resto? O resto fica para os que sabem e fazem, independentemente das circunstâncias. Porca miséria!

II - História social da "cunha"

A origem das “cunhas” cobre todas as classes sociais e todas as áreas da sociedade.

JOSÉ PACHECO PEREIRA       PÚBLICO, 18 de Abril de 2015

Nos espólios que tenho organizado relativos ao século XX português há uma constante que os atravessa a todos, sejam de que natureza for, que é a presença maciça de “cunhas”. Literalmente milhares de “cunhas”, que aumentam quanto mais poderosas forem as funções daquele a quem se pede um favor.  Mas esta regra não é assim tão evidente, visto que há também muitas centenas de “cunhas” para pessoas que não tendo altas funções na burocracia do Estado estão colocados numa situação estratégica para concederem favores pessoais de emprego e de carreira. Dada a natureza dos espólios em que tenho trabalhado, a maioria das “cunhas” exerce-se em relação ao Estado e aos seus corpos e, depois do 25 de Abril, aos partidos políticos ou por via dos partidos políticos tendo também como destinatário o Estado. Os partidos políticos tornaram-se com o tempo e a democracia o lugar da “cunha”, com maior enfâse para os que acedem ao poder político central, mas também com grande dimensão ao nível autárquico.

Tendo lido muitas destas “cunhas” em cartas clássicas, notas de telefonemas, notas pessoais, etc. não tenho dúvidas em afirmar que quem não dá um papel central na história social portuguesa à “cunha” não conhece Portugal. Faça-se a justiça de dizer que o nosso país não é caso único, a “cunha” e o patrocinato estão muito mais disseminados pela Europa, mais a Sul do que a Norte, do que se pensa. Acrescento mais: penso que o papel da “cunha” pouco diminuiu na sociedade portuguesa, como alguns pensam. Só mudaram os processos e os destinatários, e com o declínio de muita da nossa economia, em particular na indústria, o Estado tornou-se o verdadeiro centro das “cunhas” e os aparelhos partidários o seu principal veículo.

Trato aqui essencialmente da “cunha” individual, a favor do próprio, quase sempre associada ao emprego ou a movimentos numa carreira, nomeações e retribuições, e nalguns casos recompensas, condecorações, para o próprio ou para os seus próximos, familiares, amigos, correligionários e conhecidos. “Pedidos” de outra natureza implicando benesses, interesses, negócios, também são comuns, mas são em muito menor número e só raramente estão no limite do tráfico de influências ou da corrupção sugerida ou tentada. Tal tem a ver com a natureza dos interlocutores, mas pode também estar sub-representado pelo facto de estarmos ainda num mundo em que o papel, a carta e a correspondência, são quase o meio único de contacto, o mundo antes do email. E há coisas que não se colocam num papel.

Os espólios que tenho em mente, dois são de personalidades de relevo político na vida pública depois do 25 de Abril, um Primeiro-ministro e um Presidente da Assembleia da República, outro é um advogado oposicionista, abastado e de uma família com meios, que também prosseguiu a sua actividade política depois do 25 de Abril e os outros, mais antigos no tempo, um é de um militar de carreira, de patente média, mas colocado no Estado-Maior, outro de um ministro do Estado Novo. Com excepção deste último, que é de menor dimensão, todos incorporam milhares de documentos, correspondência, etc. e cobrem desde a primeira república até ao início do século XXI. E todos estão cheios de “cunhas”

A origem das “cunhas” cobre todas as classes sociais e todas as áreas da sociedade. Há algumas “cunhas” que se percebem ter origem em pessoas muito “humildes” e há “cunhas” vindas de pares do destinatário e nalguns casos de seus superiores. Do mesmo modo, não há uma diferenciação significativa entre as “cunhas” de pessoas quase analfabetas, que lutam com a caligrafia para escrever uma simples carta, e professores universitários e intelectuais: todos exercem a activa tarefa de meter “cunhas”.

No caso do militar referido, que coleccionava meticulosamente a correspondência que recebia atando-a com um cordel, e que atingiu a patente de coronel, há um número significativo de “cunhas” de militares com patente superior, com uma boa representação de oficiais-generais. Ele acelerava os “processos”, autorizava ou impedia transferências e isso tinha muito valor. No caso do advogado é pedida muitas vezes a sua “recomendação” para um colega ou amigo, visto que o meio que frequentava o colocava em contacto com pessoas que eram “dadoras” de emprego.

As cunhas aos políticos de topo ou são “pedidos” de anónimos que pretendem ver rectificada uma situação que pensam ser prejudicial e injusta, ou são, “pedidos “ vindos de personalidades partidárias que usam essa condição para pedirem, ou em muitos casos reivindicarem, lugares como os de deputado, ou lugares tidos como sendo de confiança política, na administração central e local. As “cunhas” para lugares de deputados, associados a muita intriga contra outros pretendentes ao mesmo lugar, são reivindicadas em nome da biografia e fidelidade partidária: eu que fiz isto e aquilo pelo “nosso” partido tenho direito a ter este lugar ou esta nomeação. Outra fórmula muito comum, é “essa” administração (de uma empresa pública, por exemplo) é constituída pelos “outros”, que não fazem outra coisa que não seja prejudicar os “nossos”, pelo que deve ser mudada e aqui estou eu disponível. Para a Caixa, para a CP, para a TAP, para o Porto de Lisboa, para este Hospital, para estes Serviços Municipalizados, etc.

Pensava eu que havia algum incómodo e vergonha em pedir “cunhas”, mas parece tão natural que não espanta quem pede, nem quem a recebe. Pedir uma “cunha” é colocar-se numa situação de ficar a dever um favor e presumia eu que havia um factor de humilhação em fazê-lo. Mas isso não impede que haja pessoas que metem “cunhas” a seu próprio favor como quem respira. Aliás a generalização da “cunha” a todos os níveis sociais como uma prática não só consentida como aceite com normalidade, é um dos factores mais decisivos para a baixa qualidade dos serviços públicos e da burocracia portuguesa.

A massificação desses serviços, com o aumento dos funcionários, depois do 25 de Abril teve o efeito positivo de diminuir a relevância da “cunha” individual, embora não a afastasse das carreiras e hierarquias. Tive ocasião de conhecer bem, antes do 25 de Abril, uma instituição, uma grande biblioteca municipal, em que praticamente toda a gente, do director aos funcionários que recebiam as requisições e iam buscar os livros, estava lá por “cunha”, naquilo que era tido como um prémio de um trabalho fácil, sentado a dormitar a um canto. O pesadelo que isso representava para os leitores comuns era enorme. Como era também regra nesses tempos, quando o leitor era um amigo do director ou alguém de relevo na micro-sociedade do Estado Novo, os salamaleques e a diligências eram penosas de se ver.  Depois do que li nesses papéis, uns mais antigos e outros menos, coloquei-me a dúvida: será que nada mudou? E inclino-me para responder que não, pouca coisa mudou. A “cunha” continua a ser crucial na vida portuguesa, embora hoje tenha outros nomes e outra circulação. Mas a proximidade ao poder, a qualquer poder, continua a ser uma vantagem enorme na obtenção de vantagens injustas e no bloqueio ao mérito

Os “facilitadores” vivem desse mundo e olhando para certas carreiras mesmo no topo do estado a pergunta é como é que chegaram lá. Como é que meia dúzia de pessoas sem qualquer carreira, saber académico, experiência de vida, trato do mundo, podem mandar nalguns casos mais do que um Primeiro-ministro ou um Presidente da República, ao deterem o controlo dos partidos? 

A resposta é: meteram muitas “cunhas” e prestaram muitos serviços numa fase da vida, e facilitaram muitas “cunhas” noutra. São espertos e hábeis. Conhecem-se entre si e sabem melhor do que ninguém as regras do jogo. Uns sofisticaram-se, outros não, mas há “espaço” para todos. Mas o seu efeito na vida pública é baixar os níveis de qualidade, estiolar a competição política, controlar o seu território com mão de ferro, e gerar à sua volta um círculo de iguais. E pôr em risco a democracia.  Historiador

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