quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A maçã envenenada

 

Da Branca de Neve e de tantas mais histórias infantis de bruxas e fadas más que povoavam os livros das crianças, afinal é realidade bem adulta, desde sempre, e sempre aterradora, como o comprova este texto explosivo e claro sobre História Contemporânea, de Nuno Severiano Teixeira, que desejamos siga incólume… Effrayant!

OPINIÃO

O veneno

Ao envenenar opositores, Putin está, simbolicamente, a envenenar a democracia.

NUNO SEVERIANO TEIXEIRA

PÚBLICO, 9 de Setembro de 2020

Reis e presidentes sempre se fizeram acompanhar pelos seus provadores e nunca começavam uma refeição sem que eles a provassem primeiro. Porquê? Porque sabiam que o veneno sempre fora um método clássico de assassinato político. Parece hoje ter entrado em desuso. Mas não na Rússia, onde a história é longa, mas o veneno continua a matar. Agora de forma sofisticada e a envenenar não o poder, mas a oposição.

Em 1453, Dimitry Shemyaka, grão-duque de Moscovo, sentou-se para um lauto jantar. Seguiram-se 12 dias de agonia e a morte em sofrimento. O seu próprio cozinheiro tinha sido subornado pelo seu maior rival e envenenado a refeição. A história não parou mais. A União Soviética operou laboratórios secretos onde desenvolveu sofisticados venenos que aplicou, sistematicamente, em dissidentes, prisioneiros do Gulag e espiões do KGB caídos em desgraça. E já na era pós-soviética, sobretudo desde que um ex-agente do KGB se tornou Presidente, dissidentes, jornalistas, espiões no exílio e opositores políticos têm demonstrado uma estranha tendência para morrer. Preferencialmente, envenenados. Desde que se oponham a Putin, claro. Nemstov, Litvinenko, Politkoskaya, Yushenko, Skripal e, agora, Navalny, são apenas os casos mais mediáticos. Mas quantos não saberemos?

A verdade é que a Rússia de Putin tem desenvolvido o seu arsenal químico e transformou o veneno na sua arma de eleição contra a dissidência política. Mas porquê Navalny? E porquê o veneno?

Navalny, porque representa um novo modelo de oposição política que desafia o regime. Navalny tem ideias novas e novas estratégias. Começou como o advogado que contestava as grandes companhias russas de energia e teve sucesso. O passo seguinte foi o discurso anti-corrupção que estendeu dos interesses económicos ao partido de Putin, a que chamou “partido de bandidos e ladrões”. Conquistou notoriedade e apoios na sociedade russa. Finalmente, o salto para a política com a sua estratégia do “smart vote” que se revelou um sucesso nas eleições locais de 2019. Os vários candidatos da oposição escolheram entre si o melhor colocado para vencer o candidato do regime, o que derrotou um terço dos fiéis a Putin.

Mas Navalny representa mais do que isso. Representa uma nova geração na política russa que usa as redes sociais, mobiliza uma massa de voluntários jovens e tem demonstrado capacidade para federar descontentamentos, concitar preocupações populares e construir consensos entre as diversas forças da oposição. Dá esperança e isso mobiliza. O que é cada vez mais intolerável, num regime cada vez mais autoritário.

E porquê o veneno? Porque oferece a Putin duas vantagens inegáveis. No plano internacional, porque a dúvida permite sempre a negação. Mesmo que o agente em causa seja comprovadamente russo, como é o caso do novichok, a ambiguidade do método dá sempre margem de manobra. Primeiro, alega que não há razão para inquérito e quando vem o inquérito internacional não o reconhece, pelo que pode sempre negar o seu envolvimento. No plano interno, porque deixa uma fortíssima mensagem aos candidatos a opositores: o medo de que possam ser o próximo. Os opositores estão sempre sob vigilância e são muitas vezes vítimas de assaltos, espancamentos e prisões. São vidas em sobressalto. Mas, pior do que isso, é o espectro do envenenamento que fica a pairar. A bala mata no momento. O veneno é agonia, sofrimento e morte lenta. É a tecnologia moderna ao serviço da crueldade primitiva.

Depois da Geórgia, da Ucrânia, da Crimeia, de Skripal ou Navalny, será preciso mais para perceber que este é um regime hostil? E vai o ocidente continuar a tratar Putin como um “líder normal”?

Sob pressão directa de Angela Merkel, Putin autorizou a transferência de Navalny para um hospital alemão e as autoridades alemãs já confirmaram que se trata de envenenamento e que o agente químico é russo e exclusivamente russo. Como é obvio, a sociedade russa não pode responsabilizar o seu governo pelos crimes cometidos. Mas a comunidade internacional pode. E, em particular, o mundo ocidental. Pode reclamar um inquérito internacional, pode decretar sanções, pode expulsar diplomatas, isto é, pode ir muito para além da mera política declaratória. A NATO e a UE já reclamaram os tradicionais inquéritos. Não podem fazer muito mais. De Trump não há nada a esperar, mas a Alemanha sim, pode bloquear o novo gasoduto (Nord Stream 2), o que seria um sinal concreto. Ao envenenar opositores, Putin está, simbolicamente, a envenenar a democracia. Depois da Geórgia, da Ucrânia, da Crimeia, de Skripal ou Navalny, será preciso mais para perceber que este é um regime hostil? E vai o ocidente continuar a tratar Putin como um “líder normal”?

Professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa; director do Instituto Português de Relações Internacionais

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