Da Branca de Neve e de tantas mais histórias infantis de bruxas e fadas
más que povoavam os livros das crianças, afinal é realidade bem adulta, desde
sempre, e sempre aterradora, como o comprova este texto explosivo e claro sobre
História Contemporânea, de Nuno
Severiano Teixeira, que desejamos siga incólume… Effrayant!
OPINIÃO
O veneno
Ao envenenar opositores, Putin está,
simbolicamente, a envenenar a democracia.
PÚBLICO, 9 de
Setembro de 2020
Reis
e presidentes sempre se fizeram acompanhar pelos seus provadores e nunca começavam uma refeição sem que eles a
provassem primeiro. Porquê? Porque sabiam que o veneno sempre fora um método
clássico de assassinato político. Parece hoje ter entrado em desuso. Mas
não na Rússia, onde a história é longa, mas o veneno continua a matar. Agora de
forma sofisticada e a envenenar não o poder, mas a oposição.
Em
1453, Dimitry Shemyaka, grão-duque de Moscovo, sentou-se para um lauto jantar. Seguiram-se 12 dias
de agonia e a morte em sofrimento. O seu próprio cozinheiro tinha sido
subornado pelo seu maior rival e envenenado a refeição. A história não
parou mais. A União Soviética operou laboratórios secretos onde desenvolveu
sofisticados venenos que aplicou, sistematicamente, em dissidentes,
prisioneiros do Gulag e espiões do KGB caídos em desgraça. E já na era
pós-soviética, sobretudo desde que um ex-agente do KGB se
tornou Presidente, dissidentes, jornalistas, espiões no
exílio e opositores políticos têm demonstrado uma estranha tendência para
morrer. Preferencialmente, envenenados. Desde que se oponham a
Putin, claro. Nemstov, Litvinenko, Politkoskaya, Yushenko,
Skripal e, agora, Navalny, são apenas os casos mais mediáticos. Mas quantos
não saberemos?
A
verdade é que a Rússia de Putin tem desenvolvido o seu arsenal químico e
transformou o veneno na sua arma de eleição contra a dissidência política. Mas porquê Navalny? E porquê o veneno?
Navalny, porque representa um novo modelo de
oposição política que desafia o regime. Navalny tem ideias novas e novas
estratégias. Começou como o advogado que contestava as grandes companhias
russas de energia e teve sucesso. O passo seguinte foi o discurso
anti-corrupção que estendeu dos interesses económicos ao partido de Putin, a
que chamou “partido de bandidos e ladrões”. Conquistou notoriedade e
apoios na sociedade russa. Finalmente, o salto para a política com a sua
estratégia do “smart vote” que se revelou um sucesso nas eleições locais de
2019. Os vários candidatos da oposição escolheram entre si o
melhor colocado para vencer o candidato do regime, o que derrotou um terço dos
fiéis a Putin.
Mas Navalny
representa mais do que isso. Representa uma nova geração na política russa que
usa as redes sociais, mobiliza uma massa de voluntários jovens e tem
demonstrado capacidade para federar descontentamentos, concitar preocupações
populares e construir consensos entre as diversas forças da oposição. Dá
esperança e isso mobiliza. O que é cada vez mais intolerável, num regime cada
vez mais autoritário.
E porquê o veneno? Porque
oferece a Putin duas vantagens inegáveis. No plano internacional, porque a
dúvida permite sempre a negação. Mesmo que o agente em causa seja comprovadamente
russo, como é o caso do novichok, a ambiguidade do método dá sempre margem de
manobra. Primeiro, alega que não há razão para inquérito e
quando vem o inquérito internacional não o reconhece, pelo que pode sempre
negar o seu envolvimento. No plano interno, porque deixa uma fortíssima
mensagem aos candidatos a opositores: o medo de que possam ser o próximo. Os opositores estão sempre sob
vigilância e são muitas vezes vítimas de assaltos, espancamentos e prisões. São
vidas em sobressalto. Mas, pior do que isso, é o espectro do envenenamento que
fica a pairar. A bala mata no momento. O veneno é agonia, sofrimento e morte
lenta. É a tecnologia moderna ao serviço da crueldade primitiva.
Depois
da Geórgia, da Ucrânia, da Crimeia, de Skripal ou Navalny, será preciso mais para perceber que este é um regime
hostil? E vai o ocidente continuar a tratar Putin como um “líder normal”?
Sob pressão directa de Angela Merkel, Putin
autorizou a transferência de Navalny para um hospital alemão e as autoridades alemãs já
confirmaram que se trata de envenenamento e que o agente químico é russo e
exclusivamente russo. Como é
obvio, a sociedade russa não pode responsabilizar o seu governo pelos crimes
cometidos. Mas a comunidade internacional pode. E, em particular, o mundo
ocidental. Pode reclamar um inquérito internacional, pode decretar sanções,
pode expulsar diplomatas, isto é, pode ir muito para além da mera política
declaratória. A
NATO e a UE já reclamaram os tradicionais inquéritos. Não podem fazer muito
mais. De Trump não há nada a esperar, mas a Alemanha sim, pode bloquear o novo gasoduto (Nord Stream 2), o que seria um sinal
concreto. Ao envenenar opositores, Putin
está, simbolicamente, a envenenar a democracia. Depois da Geórgia, da Ucrânia, da Crimeia, de Skripal ou Navalny, será preciso mais para perceber que este é um regime
hostil? E vai o ocidente continuar a tratar Putin como um “líder normal”?
Professor
catedrático da Universidade Nova de Lisboa; director do Instituto Português de
Relações Internacionais
TÓPICOS
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