domingo, 6 de setembro de 2020

Elegia

 

Em prosa, que seja. Mas o tom desgostoso, de lamentação profunda - com traços de alguma perfídia a lembrar talvez um passado comum de causas na aparência perdidas, mas que perduram na estima, de que outros interesses podem, eventualmente, fazer desviar - lembrou-me esse género poético, que Samuel Usque praticou em prosa e outros, como Camões, esplendidamente em verso. Felizmente que a Internet me auxiliou com o excerto da elegia (11) que na minha edição da Lírica de Camões aparece com o nº I. É com prazer que transcrevo dela um excerto, como homenagem às recordações que José Pacheco Pereira com tanto prazer reescreve, sobre a história do “Avante”, para que prossiga – impante, é certo - mau grado o conceito camoniano – que, por seu turno o colheu dos clássicos, sobre a inutilidade das recordações…

Mas não será tão inútil assim, indeed!

 

«O Poeta Simónides, falando     C’o capitão Temístocles, um dia,    Em cousas de ciência praticando,   Üa arte singular lhe prometia,    Que então compunha, com que lhe ensinasse    A se lembrar de tudo o que fazia;    Onde tão subtis regras lhe mostrasse    Que nunca lhe passasse da memória    Em nenhum tempo as cousas que passasse.    Bem merecia, certo, fama e glória    Quem dava regra contra o esquecimento     Que enterra em si qualquer antiga história.     Mas o capitão claro, cujo intento    Bem diferente estava, porque havia     As passadas lembranças por tormento;    - Ó ilustre Simónides! - (dizia) -….Pois tanto em teu engenho te confias      Que mostras à memória nova via,      Se me desses üa arte que em meus dias     Me não lembrasse nada do passado,     Oh! quanto milhor obra me farias! - ….Se este excelente dito ponderado      Fosse por quem se visse estar ausente,     Em longas esperanças degradado,     Ah! como bradaria justamente:     - Simónides, inventa novas artes;     Não meças o passado co presente!      Que, se é forçado andar por várias partes      Buscando à vida algum descanso honesto,      Que tu, Fortuna injusta, mal repartes;      E se o duro trabalho é manifesto      Que por grave que seja, há-de passar-se      Com animoso espírito e ledo gesto;      De que serve às pessoas alembrar-se ….Do que se passou já, pois tudo passa,       Se não de entristecer-se e magoar-se?........» (LÍRICA – ELEGIAS: I – LUÍS DE CAMÕES)

OPINIÃO

Imprudência e fúria — a história da Festa do Avante! em 2020

O que se passa à volta da Festa é um sinal preocupante da evolução da vida política portuguesa, a caminho de um cada vez maior radicalismo, no limiar da raiva e da violência. Pensam que é exagero? Infelizmente é só esperar.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 5 de Setembro de 2020

Na altura em que estiverem a ler isto está em curso a Festa do Avante! entre protestos e congratulações. Houve de tudo. O PCP foi imprudente e depois arrogante, menosprezou um factor que tinha a obrigação de conhecer muito bem: em tempos de crise não há nada mais explosivo do que a percepção (e nalguns casos a verdade) de que há desigualdades de tratamento, filhos e enteados. A Festa do Avante! foi vista como um caso excepcional de complacência das autoridades sanitárias, por troca de favores políticos, que permitiriam ao PCP fazer ajuntamentos, comes e bebes, exposições, concertos, que estavam proibidos a outros grupos e, em particular, aos profissionais dos espectáculos e festivais, que passam momentos de grandes dificuldades. Não é inteiramente verdade, mas tem uma parte suficiente de verdade para gerar um sentimento de indignação, que depois tem vindo a ser usado politicamente para atacar o PCP, o governo e as autoridades sanitárias.

Acresce que há possibilidade de existirem cadeias de transmissão da covid com origem no ajuntamento da Festa. É um enorme risco para o PCP, que tem conseguido manter intacta a reputação de ter uma capacidade de organização e militantes disciplinados, e que foi capaz de organizar eventos como o 1.º de Maio sem efeitos epidemiológicos conhecidos. Mas gerir uma multidão não é a mesma coisa, e por muito que o serviço de ordem do PCP seja eficaz, há perigos reais e uma enorme responsabilidade.

Mas, a fúria actual com a Festa do Avante! é tudo menos inocente. Tem uma clara motivação política, longe de qualquer preocupação com a pandemia e muito menos com os trabalhadores dos espectáculos e festivais. Ela insere-se numa clara deslocação para um radicalismo de direita que se tem vindo a acentuar em várias áreas da sociedade portuguesa, e de que o Chega é apenas a ala populista mais visível, e as redes sociais o viveiro do ódio, mas que encontra expressão numa elite que está órfã do poder, apoiada em think tanks, subsidiados por grupos empresariais, com um peso crescente na comunicação social. Repetirei de novo que uma parte importante desta deriva vem da impotência, mas com o tempo essa impotência transforma-se em raiva. A vida política portuguesa vai ser crescentemente perigosa, num caminho que encontra em Trump um inspirador não nomeado por vergonha, mas real.

Metem-se agora com o PCP, porque o PCP está mais fraco e tem-se deixado acantonar e isolar da opinião pública. Mas a duplicidade é flagrante: nos últimos meses houve duas manifestações do Chega, uma de um grupo que partilha as teorias conspirativas contra as máscaras e a distanciação social, duas manifestações anti-racistas, uma das quais com bastante gente, vários eventos religiosos, feiras por todo o país, só para referir ajuntamentos legais, e nenhum dos argumentos usados contra a Festa do Avante! foi usado e, nem de perto nem de longe, a mesma veemência. Sobra apenas o argumento do número de presentes, que o PCP anunciou serem à volta de 30.000 e a DGS reduziu para metade.

Encurralado, o PCP subiu a parada, até porque a Festa do Avante! não é para o partido um comício, ou uma festa comum, tem um importante elemento identitário e comunitário. Todos os partidos comunistas tiveram na sua história uma festa associada com o jornal partidário, seja o L’Humanité, o Unitá, ou o Mundo Obrero, que faz parte da prática comunista. Não é de facto, como diz o PCP, “uma festa como as outras”, porque a cultura política comunista tem uma identidade própria, com a vantagem de permitir sinais de pertença e reconhecimento e a desvantagem da auto-suficiência e do bunker.

O papel da Festa na mobilização partidária começa antes, na sua montagem em grande parte feita por voluntários, que realizam “jornadas de trabalho”, e depois asseguram a realização do evento, e finalmente nas diferentes excursões de camionete e de comboio, que asseguravam que os militantes de Trás-os-Montes se podiam encontrar com os do Alentejo. No recinto são comuns formas de reconhecimento tribal entre “camaradas”, quer através das bancas de comida, objectos, artesanato local, quer inclusive com as delegações estrangeiras de outros partidos comunistas e movimentos revolucionários. A Festa é ao mesmo tempo provinciana e cosmopolita, e transmite aos que a visitam esse sentimento de que fazem parte de uma comunidade nacional e de um movimento internacional, com amigos e inimigos. Se tivermos em conta que muitos dos que a visitam não viajam facilmente, nem tem condições económicas para conhecer o mundo, isso é um momento importante nas suas vidas.

O resto da Festa serve quer o financiamento do partido, quer uma tentativa de aproximação aos mais jovens pelos espectáculos e alguma abertura por essa via ao exterior (um visitante habitual era Marcelo Rebelo de Sousa…), sobrando a parte objectivamente menos importante para o interior dos discursos da rentrée do PCP para marcar o calendário. Este ano, no contexto da actual situação política, com os apelos do PS a entendimentos, o que lá se disser pode ser relevante.

Amanhã ver-se-á, e, se tudo correr bem com a pandemia, o que vai ficar destes dias será a fúria contra a Festa. O que se passa à volta da Festa é um sinal preocupante da evolução da vida política portuguesa, a caminho de um cada vez maior radicalismo, no limiar da raiva e da violência. Pensam que é exagero? Infelizmente é só esperar.

Historiador

TÓPICOS

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COMENTÁRIOS

LCinfty EXPERIENTE: Isto dá para tudo. Qualquer pessoa diz toda e qualquer idiotice. Um argumento? Uma prova? Nada é preciso. Olhe, eu digo ainda mais, a Festa do Avante é isto tudo e um enorme mercado tráfico de drogas duras. Nas suas esplanadas fazem-se negociatas de tráfico de toneladas. E planeiam-se assassinatos de rivais traficantes.     Julio Santos INICIANTE: Um excelente texto do Pacheco Pereira. Subscrevo esta análise

João Castanho EXPERIENTE: Eventos deste tipo não estão proibidos. Que os capitalistas da Vodafone, da Meo ou da Super Bock tenham optado por não fazer festival este ano é compreensível, dado que os seus eventos não são por amor à camisola nem à música mas sim para vender a marca, fazer e até quem sabe lavar dinheiro. Existem inúmeros espectáculos a decorrer em Portugal além dos locais à pinha como comboios, metros, autocarros, praias. Só para termos uma ideia da discriminação de que está a ser alvo o Avante, no palco 25 de Abril (18mil m2) serão permitidas 2mil pessoas, o mesmo número de pessoas que esteve no Campo Pequeno (12502) para ver Bruno Nogueira. A capacidade do Avante é de 100 mil pessoas e foram permitidas apenas até 16mil. O autódromo do Algarve tem capacidade igual e foram vendidos já 28mil bilhetes.

Gonçalo Simões EXPERIENTE: Se calhar o meu caro nunca foi a um autódromo. Não há qualquer comparação possível      JLourenço INICIANTE: O Avante este ano deveria ter ocorrido em moldes mais simbólicos. Dito isto, é inquestionável o aproveitamento hipócrita que fizeram desta questão dirigentes e militantes como os do Chega. Dedicam-se a disseminar nas redes sociais, à boa maneira dos populistas trumpistas e bolsonaristas, as mais estapafúrdias teorias da conspiração sobre a pandemia, pregam entre outras coisas a inutilidade do uso de máscaras, ridicularizam as medidas de prevenção. Em consonância, é só olhar para as imagens que circulam das jantaradas do Chega pelo país fora. Estes mesmos adeptos da teoria do covid como embuste, têm depois o desplante de alegar as maiores preocupações de saúde pública com a festa do Avante, quando é claro que se trata unicamente de um ataque político concertado contra o PCP.

balabangbang INICIANTE: Infelizmente, hoje em dia, tudo é ou extrema direita ou extrema esquerda. Somos todos fascistas ou maoístas ... Há aproveitamento, e esvaziamento, de muitas questões que mereciam um olhar e discussão mais sérios. A sociedade Portuguesa merece melhor. Não saímos disto. A credibilidade escasseia ... Kaput     veloz333 EXPERIENTE: O que eu acho é que nesta questão da festa os comunistas estão a provar do seu próprio veneno. Quando estes criticam, se manifestam ou atacam outros, é a liberdade democracia etc...a funcionar, quando são os outros a criticar o PCP são logo apelidados de antidemocráticos fascistas nazis e outros mimos. TML INICIANTE: em primeiro lugar, raramente vê o PCP a atacar assuntos deste género, e gostava que me desse exemplos. Em segundo, não estamos a falar de mera crítica, que até houve à esquerda. Estamos a falar de propaganda político-mediática. Há meses que as notícias sobre o avante são quase diárias, e que este foi eleito como único assunto importante, tanto pelos media como pela direita e até centro. Houve uma série de fake news, tanto nas redes sociais como inclusive nos jornais. É uma campanha enorme de difamação. É difícil não ver isso. É perfeitamente legítima a crítica, mas uma campanha deste género é completamente abjecta - e mostra quem é o sistema.  lgxd78 INICIANTE: muito bom texto, moderado e claro, é o que é preciso nestes tempos de histeria partidária, só se inflama quem tem gosto pelos conflitos     rosab EXPERIENTE:Há o "quero, posso, mando" sub-reptício exercido todos os dias, há o "quero, posso, mando" gritado de bate pé no chão, ocasionalmente. É este que dá nas vistas, provocando ódios insanes, enquanto que o outro, o diário, murmurado entre "reposteiros" e aplicado recorrentemente, deixa-nos meio dopados pelo hábito. Não aplaudo nem um nem outro. Mas revolto-me e muito, contra quem vai, escudado pelo poder, impondo tantas vezes à socapa e manhosamente, o seu "quero, posso, mando".     Jose EXPERIENTE: Não é contra a festa do avante que os opinadores cospem fogo em todos os media. É contra a liberdade, a democracia, a paz, a soberania, o sindicalismo, a verdade, a civilidade, a lei e a ordem estabelecida. Desde o Presidente da República à organização local do PS, todos, com destaque para Rui Rio, se comportaram como Trump. Mentira, calúnia, difamação, chantagem, insulto soez... há de tudo na campanha contra as liberdades democráticas, contra as leis em vigor, contra o PCP, contra a liberdade de reunião, associação, manifestação e acção política. Não vale evocar o seu ex-companheiro no PSD, André, para descarregar a pulhice dos dirigentes políticos de toda a direita. Não! A direita portuguesa, incluindo parte do PS mostrou uma vez mais que não é democrática, mas totalitária, revanchista.

cidadania 123INICIANTE: Caro Jose, a realização da festa do avante foi ela sim um acto de teimosia, de afrontar da lei e ordem estabelecida por motivo da pandemia, de forçar excepções, de desprezo pela saúde dos militantes, meros peões do superior interesse do partido. Se é verdade que muitos atacaram a festa do avante apenas para marcar politicamente o pcp, considero errado que se pense o mesmo dos portugueses, que não sendo militantes, até teriam alguma simpatia pelo pcp, e agora ficaram desiludidos.

Manuel Figueira INICIANTE: Grande análise. Mas a chave está aqui: «O PCP foi imprudente e depois arrogante, menosprezou um factor que tinha a obrigação de conhecer muito bem: em tempos de crise não há nada mais explosivo do que a percepção (e nalguns casos a verdade) de que há desigualdades de tratamento, filhos e enteados». Quem não perceber isto não percebe nada.

veloz333 EXPERIENTE: Há muito ódio dissimulado neste seu comentário. Só vocês comunistas ainda não perceberam que não têm lugar em países desenvolvidos e democráticos, são tudo o que de mau tentam projectar nos outros, ao rotular todos os outros partidos de fascistas, também dá para ver a vossa obsessão por regimes de partido único.

Fundo do Mar INICIANTE: Essa liberdade, democracia e paz de que fala só não foi posta em prática dentro do próprio partido, com calúnias e intolerância contra os militantes que se opuseram à realização da festa este ano, nomeadamente os mais idosos, que foram também os que viveram a opressão da ditadura. A velha máxima: se não estás comigo estás contra mim. Bem própria da autocracia, diga-se.

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