A Angela Merkel, na chefia do governo alemão. Talvez a União Europeia não vá prosseguir nos mesmos trilhos de harmonia, que parece ter sido a política da chanceler alemã. Eis o assunto – premonitório? realista? hipotético? - de que trata esta crónica de João Diogo Barbosa.
Um canto do cisne alemão /premium
As eleições na Alemanha serão
interessantes. Contrariando a narrativa instalada, talvez a esquerda europeia
ainda seja capaz de se mexer, mas só o possa fazer para um sítio distante da
realidade.
JOÃO DIOGO BARBOSA
OBSERVADOR, 20 ago
2020
O partido social-democrata da
Alemanha é o partido mais antigo do país – tão antigo, aliás,
que até Bismarck teve oportunidade de se lhe opor. Desde o século XIX, o SPD
sobreviveu a todo o tipo de regimes e crueldades: depois de uma conturbada
fundação, conquistou apoios, congeminou, construiu e eventualmente condenou a
República de Weimar, foi banido
durante o Terceiro Reich e
regressou depois da guerra para a refundação democrática e a experiência
europeia.
A razão de ser do partido assenta na
ideia de que a justiça social pode ser alcançada dispensando a violência da
revolução e da luta de classes. Esse desvio
precoce à ortodoxia marxista é um acto
político que vale por princípio, mas
os compromissos que vieram a definir a social-democracia alemã ajudaram o país
e o continente a resistir às suas piores tentações totalitárias, oferecendo um
caminho viável de compatibilidade entre os valores da esquerda e a democracia.
Actualmente entregue a um
governo de “grande coligação” com os democratas-cristãos da CDU, o partido enfrenta um importante momento de definição. No próximo ano haverá eleições federais e, com elas,
espera-se a retirada de Angela Merkel, que governa o país há 15 anos. O que poderia parecer o momento ideal para recuperar
a liderança do governo, até pela dificuldade que a direita tem revelado para
encontrar um sucessor plausível, é antes uma situação de
fragilidade existencial, já que as
sondagens mostram o partido no terceiro lugar, a 20 pontos da CDU e atrás dos
Verdes, parceiros de coligação no seu último governo, liderado por Gerhard
Schröder.
Nesse contexto, os últimos anos têm sido dedicados ao tumulto interno,
que se tornou evidente com as eleições para a liderança, em 2019, ganhas por
uma sugestão de liderança bicéfala proveniente da ala radical do partido. Castigados eleitoralmente pelo longo domínio de Merkel, os
militantes preferiram a esquerda e rejeitaram a continuação de uma política de
apaziguamento. Agora,
chegada a altura de apresentar um candidato a Chanceler, seria de esperar o
aparecimento de um Corbyn à Berlim, devidamente abençoado por Greta Thunberg, que assegurasse ao país a continuação da verdadeira
luta em tons de vermelho.
A
escolha de Olaf Scholz,
anunciada na última semana, acabou por parecer anticlimática – em vários
sentidos. Do actual ministro das Finanças, reconhecido pela falta de carisma e amor pela tecnocracia, dificilmente alguém terá um cartaz no
quarto, e da bicefalia radical o partido recuou cautelosamente para apresentar
a sua versão de Merkel, que aí poderá encontrar uma espécie de vitória última
para o seu legado. Sob
a ameaça da realidade, foi escolhido o candidato experiente, par de mãos
seguras que conquistou elogios pela liderança demonstrada na elaboração do plano
económico de resposta à pandemia (e com isso ofereceu aos democratas-cristãos
um salto assinalável de popularidade). Ainda
assim, é errado pensar na candidatura de Scholz como um
assomo de moderação ideológica, um regresso à ideia fundadora da social-democracia
e uma nova plataforma de salvação para a deriva radical da esquerda europeia.
É
possível que a CDU erre
(novamente) na sucessão de Merkel,
perca o domínio do centro e se exponha a um ressurgimento do SPD
e, se assim for, a escolha de Scholz será vista como uma ideia extraordinária e
presciente, que neutraliza a ameaça verde e acelera uma improvável coligação
que devolve o governo à esquerda.
No entanto, para lá desse cenário cor-de-rosa, é importante dedicar mais tempo
à hipótese verde.
Por
entre tantos caracteres gastos em lamentos com a nova direita e a sua
influência na política europeia, pouca atenção tem sido dada à reconfiguração
da esquerda de que o sucesso dos Verdes na Alemanha é apenas um exemplo. A
desatenção é proporcional aos elogios à “modernidade” de uma proposta
política que se veria satisfeita com o desaparecimento dos bifes, da indústria
pesada e dos automóveis familiares. Se o
desígnio dos sociais-democratas é o compromisso com a realidade, o dos verdes é
o radicalismo de corte profundo e o seu sucesso recente já teve tradução na
agenda política, visível na guinada à esquerda da liderança do SPD, ou
na recente aprovação de um pacote de legislação climática com um custo superior
a 50 mil milhões de euros em quatro anos (evidentemente criticado pelos
radicais, que nele encontraram insuficiências e falta de ambição).
É
demasiado cedo para perceber tudo o que vai a votos no próximo ano, mas à
esquerda adivinha-se um sufrágio de identidade. Com
Scholz, o SPD
repete o plano de apresentar um candidato pragmático e com dificuldades para
gerar entusiasmo, que precisa de convencer o partido ainda antes de enfrentar o
país (e desta vez os militantes já tiveram oportunidade de o rejeitar pelo
voto). Por outro
lado, a alguns radicais é sempre
concedido o luxo da irresponsabilidade e, a coberto das bandeiras climáticas, um escrutínio modesto, relaxado e
compreensivo. Não é impossível que as ideias mais acertadas acabem por
sofrer uma derrota dolorosa simplesmente porque foram representadas pelo
candidato errado.
De uma maneira ou de outra, serão
eleições interessantes.
Contrariando a narrativa instalada, talvez a esquerda europeia ainda seja capaz
de se mexer, mas só o possa fazer para um sítio muito distante da realidade. É
uma questão de Zeitgeist, não de pessimismo.
João Diogo Barbosa, jurista
(@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café
Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena
Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as
segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.
As
opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.
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