segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O disco rachado


A girar ininterruptamente com o mesmo som… E ninguém que o tire do prato…

OPINIÃO    Justiça e corrupção

Não se pode dizer que a corrupção tenha chegado finalmente à justiça. Há já muito que por lá andava. Só que não se sabia muito bem. Nem se acusava. Nem se detectava. E muitos se defendiam com unhas e ameaças.

ANTÓNIO BARRETO           PÚBLICO, 27 de Setembro de 2020

Um primeiro-ministro, um punhado de ministros, diversos secretários de Estado, vários directores-gerais, numerosos membros de gabinetes, múltiplos gestores, muitos banqueiros, directores bancários sem fim, juízes, procuradores, presidentes da Relação, desembargadores, advogados, professores de Direito, deputados, presidentes de câmara, vereadores, dirigentes de partidos nacionais e locais, chefes da polícia e oficiais das Forças Armadas: há de tudo entre notoriamente suspeitos, investigados, sob inquérito, em curso de instrução, arguidos, à espera de julgamento, condenados, à espera de recurso, a cumprir pena, presos e em detenção domiciliária! O elenco dos suspeitos de corrupção é uma lista de celebridades.

Não há paralelo na história do país. E parece haver poucos casos semelhantes, se é que existe algum, na história recente da Europa…

Que pensa quem olha para este inventário? Ou antes: que pensam as autoridades competentes? Os Presidentes da República e da Assembleia, o primeiro-ministro, os ministros, os secretários de Estado, os directores-gerais, os deputados, os presidentes de câmara, os dirigentes partidários, os juízes, os procuradores e os magistrados dos Tribunais de Contas, Constitucional, Supremo de Justiça e Supremo Administrativo? Que está tudo bem? Que está tudo mal, mas não se pode fazer nada? Que é o que deve ser, que a democracia e a humanidade não são perfeitas? Ninguém sabe a resposta exacta. Só se conhece o silêncio incomodado. Mas há uma certeza: os principais responsáveis pela política e pela justiça querem que as coisas fiquem como estão, pois é o que lhes interessa e dá vantagens. Se assim não fosse, já teríamos tido notícia de mais acção, mais julgamentos, mais medidas práticas, mais condenações, mais legislação punitiva e mais legislação eficaz anticorrupção. Em vez disso, parece termos um Parlamento que receia a justiça e se abstém. Deputados que têm medo dos juízes. Um Governo que administra e trata das contas. Uns conselhos superiores que zelam para que não haja ondas. Uns poderosos das empresas que navegam e aproveitam. Uns vigorosos escritórios de advogados influentes que estão organizados para este sistema e preferem o que conhecem. Uns sindicatos que se limitam à sua esfera corporativa. E polícias sem meios nem peritos.

Excepção deverá ser feita para a ministra da Justiça, que coordena ou orienta uma“Estratégia Nacional de Combate à Corrupção – 2020-2024”. É seguramente a mais consequente acção das autoridades neste domínio. O seu principal documento é com certeza o mais sério trabalho sobre o assunto, com relevo para as questões jurídicas e de prevenção. Mas sofre do facto de não se tratar de entidade independente, de se ficar excessivamente pela abstracção e de passar obrigatoriamente ao lado da questão crítica: a ligação entre a corrupção, por um lado, e a política, o dinheiro e a justiça, por outro. Também as principais “linhas vermelhas” actuais não estão explicitamente mencionadas: a ligação entre o Governo, os partidos, os fundos europeus, as obras públicas e o futebol. Finalmente, a questão da “confiança política” e das consequentes nomeações: disfarçada de legal e legítima, é a mais traiçoeira arma da corrupção.

Não tenhamos ilusões: só temos esta justiça complicada, conflituosa e ineficaz porque a maior parte das pessoas o quer. Se os processos são eternos, os prazos loucos, as sentenças disparatadas e se o sistema favorece os ricos e os políticos, é porque a maioria se resigna e assim querem os que podem. Este sistema de fugas de informação e de violação sistemática do segredo de justiça sobrevive porque há juízes, procuradores e advogados que o querem e desejam. Se os magistrados continuam a mudar de emprego, a usar a porta giratória de ida e volta, a passar da justiça aos negócios ou à política, é porque se aceita ou cala e porque muitos querem. É necessário um acordo fundamental entre órgãos de soberania, partidos políticos, instituições judiciárias, magistraturas, sindicatos e associações de profissionais para que este estado de coisas se mantenha.

O que se vê e o que se passa é simplesmente desesperante. E não se pense que “eles” não vêem ou não percebem. Vêem e percebem muito bem. Bem de mais.

Na imaginação e na tradição, a Justiça sempre foi a última fronteira, a primeira esperança e o melhor dissuasor. Agora, a Justiça é também a primeira culpada, um dos protagonistas e um dos principais culpados. Há juízes honestos, não tenho dúvidas. Há procuradores honrados, não esqueço. Também há governantes e deputados inocentes, acredito. Tenho a certeza de que existem altos funcionários sérios e competentes. Creio que existem banqueiros austeros e bancários cumpridores. Sei que existem polícias íntegros e eficientes. Mas, enquanto não se virem livres dos prevaricadores, todos estes corpos de responsáveis, de autoridades e de profissões estão hoje também do lado dos culpados e dos adversários da justiça e da liberdade. Não se pode dizer que a corrupção tenha chegado finalmente à justiça. Há já muito que por lá andava. Só que não se sabia muito bem. Nem se acusava. Nem se detectava. E muitos se defendiam com unhas e ameaças. Com estes casos recentes, ao mais alto nível, ficámos a saber que os demónios também residem no céu. Começa a ganhar sentido a suspeita de ligações especiais entre magistrados, procuradores e políticos. Começa a perceber-se melhor o significado do linguajar judiciário, obra-prima do hermetismo medieval.

A maneira de falar e de escrever de um jurista, sobretudo de um juiz e de um procurador, é fonte de pessimismo e de descrença! Quem fala assim, quem escreve assim, quem assina sentenças de dezenas ou centenas de páginas não merece ser ouvido nem lido, não merece sequer exercer uma nobre profissão para a qual se exige clareza, simplicidade, força de carácter e verticalidade. As sentenças formais e obscuras são a tradução exacta de falta de capacidade de julgar e de liberdade de espírito no respeito pela lei. Mas também de indiferença perante os cidadãos, aqueles a quem as suas sentenças se deveriam dirigir. Esta justiça incompreensível é garantia de opacidade. Ou um estímulo à injustiça. Sabemos que, nos melhores dias, é a gratidão pela justiça feita que nos inspira. E, nos piores, é o pedido de socorro à justiça a fazer que nos move. Era bom que os nossos representantes o soubessem. E que os nossos concidadãos o sentissem.

Sociólogo

TÓPICOS

CORRUPÇÃO  JUSTIÇA  GOVERNO  JUÍZES  TRIBUNAIS  ESTADO  OPINIÃO  COMENTÁRIOS

 

COMENTÁRIOS:

Jose EXPERIENTE: A corrupção acompanha a humanidade desde sempre e é parasita da democracia desde Aristóteles que se esforçou, sem êxito, para a reduzir ou evitar. Os populista histéricos povoam com estridência o espaço público erguendo a bandeira da corrupção e reclamando um lugar à mesa do orçamento onde se fazem e medram os corruptos. Caro António Barreto não precisa de chorar lágrimas de crocodilo por ver os seus amigos e correligionários, de quem recebeu mais que medalhas e honrarias, serem confrontados pela Justiça onde também estão só amigos seus e dos indiciados. Temperamento na exaltação. Afinal os populistas já têm o apoio da sua amiga Fátima Bonifácio e seus admiradores Tavares, Carvalhos. Quanto vale a corrupção em comparação com a economia informal? A fuga de capitais? A perda da soberania? 27.09.2020

Fowler Fowler INICIANTE: Vamos lá a saber: Os casos de corrupção vindos a público reflectem o nível geral da corrupção na sociedade portuguesa ou, simplesmente, representam desvios isolados de funcionários em estruturas cuja gestão pode, ou não, favorecer a corrupção? Uma sociedade moderna espera ter uma Justiça íntegra e não tolera a ilegalidade e a corrupção. Porém, a mentalidade política da “cunha”, do “favor” e da “gratidão” desenvolvida no Estado Novo, no qual a corrupção era endémica e só não se falava dela porque o uso da palavra “corrupção” era proibida e censurada em todos os órgãos de comunicação social, ainda se observam resquícios em casos de desvio individual, nos Tribunais e noutros órgãos de soberania, parecendo denunciar o subdesenvolvimento que se nos colou à pele. Resta, em democracia, com transparência, continuar a apostar na educação dos jovens e na difusão dos valores de cidadania, denunciando e combatendo esquemas corruptos, os quais, apesar do pessimismo moralista do articulista, não representam um padrão de conduta no Estado.

ernestocarneiro.883138 INICIANTE: O que se vê e o que se passa é simplesmente desesperante. E não se pense que “eles” não vêem ou não percebem. Vêem e percebem muito bem. Bem de mais. Ou, como na canção "Os Vampiros" de Jeca Afonso "Eles comem tudo e não deixam nada"... José Carvalho EXPERIENTE: Engraçado! Enquanto lia o artigo, um nome me ocorria: Ana Gomes.    pedrogouveiamagalhaes.895513 INICIANTE: Dá a impressão que os portugueses gostam dos corruptos!... A justiça de hoje serve a manutenção do status quo; há decisões que dão a ideia de incompetência para julgar, mas não é... Enquanto a democracia fenece a direita sobe, sobe sobe, em toda a parte. Quem se põe a jeito???    Jonas Almeida MODERADOR : Ou é um mau sistema ou as pessoas são de uma estirpe degenerada. A escolha da segunda hipótese identifica o fascio eugénio dos que procuram desculpas para a punição colectiva; a da primeira identifica a estatística que razoavelmente concluí que com estes números é uma característica deste regime político e socioeconómico. Há duas décadas que seguimos por esta via. 27.09.2020    Duarte Cabral EXPERIENTE: Jonas, mesmo outro regime político como suíço, sem educação cívica não resultaria. Dê uma olha-da no programa escolar obrigatório suíço de cidadania (no meu comentário em baixo), irá perceber muita coisa. Olhada, e não olhada. 27.09.2020  

Jonas Almeida MODERADOR: O que percebo, caro Duarte, é que quer condicionar a consulta democrática a mais uma coisa sem a qual a vontade do cidadão não conta. Eu acho que tem a história da confederação helvética (e da cidadania em democracia) exactamente ao contrário - a formação para a cidadania aparece depois da cidadania ela própria emergir com a deliberação referendável. O que temos hoje é a intermediação obrigatória por uma elite política abertamente corrompida. É a essa malta que quer agora entregar a definição de cidadania? 27.09.2020    DCM EXPERIENTE: Muito bem António Barreto .

Jonas Almeida MODERADOR: "Que pensa quem olha para este inventário?" - já que pergunta :-), penso que quando se deixou de fazer essa pergunta - "o que pensam as pessoas" - esta corrupção deslavada do aparelho do estado era uma certeza matemática. Quando as elites políticas portuguesas, sem consulta directa dos cidadãos, tornaram o país numa roça do ordoliberalismo europeista, era mais do que óbvio que reservavam para si ser o cacique da coisa. Os caciques em geral, e mais ainda em protectorados coloniais, dedicam-se à corrupção. É assim em toda a parte, é mesmo essa a ideia. Quando diz que não há memória de uma coisa destas na nossa história, está a deixar de fora as histórias dos que nós colonizámos. Também eles passaram por essa fase de corrupção extrema antes de agarrarem a autodeterminação com ambas as mãos. Esta relação entre a corrupção da autodeterminação democrática e a corrupção de tudo o resto devia ser particularmente clara para António Barreto num dia como o de hoje. Afinal foi na Suíça que António Barreto se formou e trabalhou, que hoje há mais um dos frequentes e repetidos referendos com que os suíços mantêm o seu governo na ordem, bem limpinho.     DCM EXPERIENTE: Se não fosse a UE estaríamos bem pior Jonas .   Jonas Almeida MODERADOR: DCM, é essa, literalmente, a explicação que dão os corrompidos. A filosofia do abuso doméstico.    cisteina EXPERIENTE: De facto, neste texto exemplar está aqui tudo. Como sair daqui, é a pergunta. O caso da Operação Lex pode - a ver vamos -, dar-nos alento, ter chegado até aqui, com a virtude e o empenho de Maria José Morgado, uma das magistradas que nos honra e a Nação e tanto tem denunciado, faz com que possamos ter esperança. Se assim não for, comparando a História e, à nossa dimensão, o que é a Europa e, claro, Portugal, teremos que aceitar que estamos no fim de mais uma civilização, foi assim que começou a cair e desfazer-se grande o império romano, a quem devemos o que somos, no meio de tanta podridão, vícios e corrupção. Logo a seguir chegaram os bárbaros, Roma foi saqueada e trucidada, todos perderam, ricos e pobres há 1.500 anos   José Cruz Magalhaes MODERADOR: É difícil percepcionar a extensão dos danos e os limites de constrangimentos sociais, como a corrupção, a violência de todo e qualquer tipo e o sentimento de impunidade e desconfiança com que grande parte dos cidadãos encara as instituições, os governos, os partidos e os próprios órgãos associativos e representativos, sem apontar a progressiva despromoção da Ética, como fundamento primordial do relacionamento social e humano. Num tempo em que o confronto se sobrepõe à cooperação, a exaltação da mentira como arma e objecto de domínio e poder e o desprezo ou alheamento de tudo que não satisfaça as necessidades de egos dilatados, não causa admiração o espectáculo degradante da falência e descrédito que pretensas elites proporcionam a todo um país. A reeducação pela cidadania é um imperativo imediato. 27.09.2020    Macuti EXPERIENTE: Muito bem Antonio Barreto! Um diagnóstico perfeito da (in) justiça portuguesa. O presidente da república, professor de direito, não tem feito nada para alterar esta desesperante situação, penosa para o erário público, que afecta toda a sociedade e que põe em causa a democracia. Pior, sempre que há uma acusação, não se coíbe de afirmar que o sistema está a funcionar, sabendo ele, melhor que ninguém, que o que (não) acontece a seguir prova o contrário. E depois há a uma mentalidade permissiva , que elege corruptos , que coabita bem com esta desgraça nacional. 27.09.2020   GMAINICIANTE: Quando vemos as ruas da Cidade sujas de beatas, de máscaras e desatamos a vociferar contra o Presidente da Câmara; quando em matérias de corrupção e de (in)decência alinhamos no maniqueísmo do «nós, o povo desprezado-eles, os corruptos» estamos a seguir a via fácil da simplificação em que se ancora o ovo da serpente do populismo. E estamos, mais grave, a atirar ao lado; a culpa das ruas sujas é a imbecilidade dos que atiram o lixo para o espaço público, não é o PCML; os culpado pelos diferentes poderes que regulam as Sociedades Democráticas e do Estado de Direito são os activistas das redes sociais, os cruzados do justicialismo que acham que "não vale a pena votar"! Temos que entender; queremos a complexidade natural do modelo representativo ou a simplificação modelo autoritário?    Duarte Cabral EXPERIENTE: Alterar o que descreve só é possível com outros indivíduos, outra sociedade: Educação e Cidadania. Tomemos como exemplo o país com a melhor organização social/politica, a Suíça. googlar: plandetudes.ch/web/guest/citoyennete 27.09.2020 cidadania 123 INICIANTE: Muitos lugares comuns, muitas generalizações, mas concordo no geral com a análise. Resumido, a mudança de um sistema em que todos beneficiam dele, em que só se sobrevive jogam pelas suas regras, é muito difícil. Realço que é efectivamente um dos nossos problemas mais graves: a lentidão e obscurantismo da nossa justiça, mas também o nojento jogo da manipulação da comunicação social com fugas de informação seleccionadas, que são o contrário da justiça... 27.09.2020   cisteina EXPERIENTE: Mas isso é o pior, o que mais nos desalenta, termos chegado a "muitos lugares comuns e muitas generalizações", como refere, sem que nada se tenha alterado. Será desta?    DemocrataXXI EXPERIENTE: Inteiramente de acordo.. Enquanto não houver vontade política e o poder judicial, acima dele, só tiver Deus, a corrupção vai estar entre nós. Que o tema da corrupção, está intimamente ligado à sobrevivência da democracia, está. Que a nível nacional estamos a assistir a um confronto eleitoral, onde o tema central é esse mesmo, estamos.    Mario Coimbra EXPERIENTE: Concordo a 100%. Cabe ao PS e PSD ou vice versa de resolverem isto, senão só vamos ter Bloco e Chega no futuro. E que péssimo futuro será esse.   Jonas Almeida MODERADOR: Só depende dos ladrões tornarem-se melhores polícias?...............

Nenhum comentário: