Parece uma análise bem orientada esta de
Afonso Moura, sobre as
divergências entre os candidatos às presidenciais norte-americanas - o
republicano Donald Trump e o
democrata Joe Biden, tendo em
conta, especificamente, as amizades com as potências divergentes que,
aparentemente, os separam, Rússia e China, e que poderão ser causa de
desequilíbrios daninhos numa Terra em solavancos constantes, e sempre com receios de
mais. A proposta do Prémio Nobel
da Paz para D. Trump, talvez venha a funcionar como espécie de travão neste
desfiladeiro em que o mundo parece querer despenhar-se. Leiamos a crónica de Afonso Moura, que é mestre em Ciência
Política e Relações Internacionais:
Trump contra Biden ou Rússia contra China?
A oposição entre Biden e Trump não tem
nada de fictício. Cada um representa uma América que cada vez menos semelhanças
tem com a outra metade da nação.
AFONSO MOURA, Geopolitólogo,
mestre em Ciência Política e Relações Internacionais
OBSERVADOR, 12 set
2020, 00:52
Se
tudo correr conforme planeado, os norte-americanos votarão no dia 3 de
Novembro. Na realidade, quando esse dia chegar muitos já estarão livres do
encargo, votarão antes, por correio. Os Republicanos apresentarão o actual
presidente – Donald J. Trump – e os Democratas já escolheram o seu paladino,
o vice-presidente de Barack Obama. O circo
mediático que pauta todas as eleições norte-americanas esquentar-se-á ainda
mais nos meses de Setembro e Outubro; a influência externa far-se-á sentir,
tanto dum lado como doutro.
O
primeiro grande dado desta eleição deu-se nas primárias democratas: Bernie
Sanders desiludiu e não conseguiu fazer
a Biden o que tinha feito a Hillary Rodham Clinton em 2016. Os quatro anos
que passaram debilitaram Sanders, está mais velho, mais cansado, menos arguto,
menos convincente. Algo expectável mas desmotivante para os seus fãs. Não
obstante o progressismo que portou está longe de estar extinto. A ala mais
radical do partido democrata encontrará uma sucessora para Sanders e de
momento as mais bem colocadas são Elizabeth Warren, Alexandria
Ocasio-Cortez e Ilhan Omar. Lembremo-nos
também que se Biden ganhou justamente contra Sanders – apesar de a
pandemia ter sido uma ajuda preciosa – tal não ocorreu em 2016, quando o DNC
facilitou a eleição de Clinton e barrou a estrada ao senador de Vermont.
Os
Democratas voltam a apresentar Trump
como o candidato do governo russo,
no entanto as oscilações são permitidas. Uns dizem que Trump não passa dum mero
títere de Putin, outros ficam-se pelos possíveis interesses económicos do seu
império na Rússia. Deparamo-nos então com a seguinte questão: Putin
prefere Trump a Biden? Sem dúvida.
O presidente americano não tem uma postura anti-russa, tão comum para lá do
Atlântico. Trump é contra o comunismo e o socialismo, não contra
a Rússia. Os desafios geopolíticos que Moscovo
cria a Washington são tremendos e a Guerra Fria foi uma bênção para inúmeros
americanos que queriam quebrar a Rússia, permitiu-lhes mascarar o seu
anti-russismo de anti-comunismo.
A implosão da União Soviética criou-lhes um problema semântico, já não podem
ocultar as suas posições por detrás da lacra ideológica. Uma das razões
principais pelas quais Trump é visto como perigoso pelo establishment é
exactamente a sua russofilia. Não sendo um político de profissão não
passou pelas aulas cerimoniais que descrevem a Rússia tanto como um outro
indecifrável, tanto como um papão omnipresente.
Por sua vez, os Republicanos estão convencidos de que Biden não
enfrentará a China. O
candidato democrata é descrito como débil e medroso, incapaz de liderar os
Estados Unidos num mundo que eles concebem como cada vez mais impetuoso e
implacável. A influente
apresentadora Laura Ingraham – da Fox News – produziu um segmento no
seu programa nomeado Bidenology (Bidenologia). Nele, o vice-presidente de Barack Obama é
apresentado como pronto para ceder em qualquer ponto face a Pequim. As frases “a presidência Biden poria a China
primeiro” ou “uma
vitória de Biden é uma vitória para a China” dão
uma linha de ataque que será certamente seguida pelos militantes de base e pela
equipa trumpiana. Eis que surge outra questão: Xi prefere Biden a Trump? Certamente. Hoje na América existem duas facções
sobre a questão chinesa, aquela que defende que um confronto é inevitável e
aquela que sustenta o contrário. Joe
Biden faz parte da segunda. Os
progressistas são igualmente mais ternos com os chineses do que com
os russos, porque enquanto a Rússia profanou o ideal comunista os chineses
provaram que o comunismo funciona. Asserção
duvidosa bem sei, mas ouvida bastantes vezes. Independentemente do julgamento
que cada um possa emitir sobre a experiência chinesa seria errado não mencionar
que ainda é gerida pelo partido comunista chinês, e que proporcionou um
aumento significativo nas condições de vida de imensos cidadãos.
O
medo da influência externa faz parte do discurso americano desde sempre. O
inimigo histórico é a Igreja Católica. Durante o século XVII os colonos
norte-americanos foram fortemente influenciados pelas ideias da Reforma
Protestante, principalmente de cepa calvinista. Roma era
apresentada como a Rameira da Babilónia e os papistas como os seus servos
depravados que queriam subjugar a Nova Jerusalém deles à perdição. Este
sentimento anti-católico persistirá durante os séculos, com nuances geográficas
e temporais, evidentemente. Enquanto
ocorre a guerra d’independência o anti-catolicismo é convenientemente abafado
pois a França é o aliado primordial; o discurso tende a focar-se no despotismo
do rei britânico. Nos nossos dias o impacto migratório de gentes de fala
hispana vindas da América Latina reaviva – em partes consideráveis da sociedade
norte-americana – o anti-catolicismo.
A oposição entre Biden e Trump não tem nada de fictício. Cada um representa uma América que cada vez menos
semelhanças tem com a outra metade da nação. É ousado, mas nós vamos dizê-lo –
a última vez que a América esteve tão dividida como está hoje sucumbiu na stasis,
na guerra de secessão, na guerra civil. A mitologia federalista – que teve em Althusius o seu mais brilhante pensador
e em Calhoun um teórico interessante – mostrava os seus limites. A soberania
permanecia chasse gardée de Jean Bodin. Lincoln não respeitou a soberania dos estados que formaram a
Confederação porque não lhes outorgava o direito de secessão, porque em última
instância não os via como soberanos. A soberania residia num lugar superior, no
governo central, acima de cada estado. Tal como
a França do século XVII tinha suprido a dissidência dentro dos enclaves
secessionistas huguenotes, liderada pela mão de ferro do Cardeal de Richelieu,
também a América do século XIX esmagou a vontade dos independentistas sulistas,
capitaneada pelo ardor de William Tecumseh Sherman.
As potências rivais dos Estados
Unidos, onde se incluem Rússia e China, continuarão a fomentar o
descontentamento dos cidadãos norte-americanos. Porém isso não nos deve ocultar
que essas discórdias intra-americanas são um problema profundo e nativo, não
são necessárias manobras russas nem chinesas para criar um ambiente
irrespirável em Washington. Deparamo-nos
assim com um dilema acutilante: sendo a liberdade o valor supremo, dá-se
liberdade aos indivíduos para seguirem o seu próprio caminho; tanta liberdade
que quando olham para os seus concidadãos já nada os une. A fidelidade à bandeira é compreendida de
maneiras diferentes, por vezes contraditórias. O tronco comum de valores e
referências – essencial para a saúde nacional – é cada vez menos comum.
Trump
e Biden nunca devem ter lido Cioran, mas nada melhor do que uma frase sua para
compreender aquilo que separa os dois candidatos: “Enquanto uma
nação conserva a consciência da sua superioridade, ela é feroz, e respeitada; –
quando ela a perde, ela humaniza-se, e deixa de contar.” O candidato republicano – apoiado pelo Kremlin –
concorda com o romeno. O candidato democrata – apoiado pelo partido comunista
chinês – discorda. Os maiores trunfos de Trump serão os seus discursos
politicamente incorrectos e a sua oratória, sem papas na língua. A campanha democrata, quanto a ela, não se fartará
de repetir que enquanto quatro anos de Trump são nefastos, oito serão
cataclísmicos. Cabe pois então aos americanos ritmar a política
mundial e optar pela continuidade ou pelo regresso à era Obama.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO CHINA RÚSSIA DONALD TRUMP JOE BIDEN
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