Da Justiça, com a sua balança… Quod
sensus? O que se deve tentar é mesmo banir a palavra “corrupção” do dicionário,
olhando em frente e amassando novos conceitos, para uma nova sociedade sem
escrúpulos e sem pejos. Legisladores não faltam, para esse efeito. Nem quem os
afiance, diz-se…
A eliminação da corrupção nos negócios públicos por decreto
O que se quer promover é a
substituição da regra do concurso, em que todas as empresas interessadas podem
concorrer, pela regra do convite, que reserva o acesso a empresas escolhidas
pelos decisores.
PEDRO COSTA
GONÇALVES, Professor da Faculdade de Direito de Coimbra. Advogado
OBSERVADOR, 20 set
2020
Vivemos um tempo em que, por todo o
lado, se elegem a promoção da transparência, bem como a prevenção e o combate à
corrupção no exercício de funções públicas como objectivos essenciais da
regulamentação dos negócios públicos. Assim
é também em Portugal, mesmo que o legislador nos brinde, por vezes, com
detalhes obscuros e até bizarros numa matéria que reclama clareza e sensatez.
Mas
agora o que está em pauta não é a referência a uma peça legislativa obscura e
complexa, com omissões intencionais ou outras subtilezas; pelo contrário, a
legislação de que vamos falar pretende ser muito clara, cristalina, nas suas
opções.
Com
efeito, representando um desvio e mesmo uma inversão grosseira do caminho que
tem sido trilhado desde 2008, com o Código dos Contratos Públicos, está em
discussão na Assembleia da República uma proposta do Governo que visa a
alteração do Código dos Contratos Públicos e a aprovação de medidas especiais
de contratação pública.
Justificadas pelos bondosos
propósitos da flexibilização, simplificação e aceleração dos processos de
contratação pública, as medidas especiais consistem, fundamentalmente, em
soltar a rédea aos decisores públicos e autorizá-los a adoptarem, em vários
domínios, processos de ajuste directo e de consulta prévia e, portanto, a
escolherem livremente as empresas que vão fazer as muitas obras públicas que os
fundos europeus financiarão, ou que vão prestar serviços e vender produtos ao
Estado e às autarquias – entre outros, são abrangidos os contratos financiados
por fundos europeus, contratos de construção de habitação pública, e todos os
que, por despacho de membro do Governo, forem tidos como integrados no âmbito
da execução do Programa de Estabilização Económica e Social.
As medidas não afastam apenas os
processos de concurso, ousam ir além e derrogam também as regras que impõem
limites à adjudicação sucessiva de contratos às mesmas empresas. O que se quer promover é, portanto, a substituição
da regra do concurso, em que
todas as empresas interessadas podem concorrer, pela regra do
convite, que reserva o acesso a sucessivos processos
de contratação pública a empresas livremente escolhidas pelos decisores.
Para
além das muitas dúvidas de natureza jurídica, a impensável generalização da
regra de convite responde a um propósito que aparenta ser generoso – acobertado
sob as ideias de flexibilização de processos –, mas que, na verdade, tem tudo para
produzir maus resultados, desde logo para todas as empresas que estejam fora
dos radares dos convites. O fenómeno produz ainda um
resultado surpreendente: elimina a corrupção. É
isto mesmo: a entrega de rendosos contratos públicos a empresas
escolhidas dispensa toda a sorte de “contactos secretos”, de “concursos feitos
à medida” ou de diligências análogas com relevância criminal. No âmbito alargado de aplicação das novas medidas
especiais de contratação tudo isso é dispensável: sem risco, basta o envio de
um convite a uma empresa situada dentro do radar, que responderá com uma
“boa proposta” e o negócio está fechado. Tudo limpo e às claras, com
publicidade do feito no portal dos contratos públicos. No dia seguinte,
a mesma empresa pode receber novo convite para mais um contrato. De novo
responderá e de novo o negócio ficará fechado. Tudo limpo e às claras,
com transparência. E assim se engendrou uma solução de
eficácia máxima para acabar com a corrupção nos negócios públicos. É tudo
lícito e estará tudo bem. Ou talvez não.
GOVERNO POLÍTICA CORRUPÇÃO JUSTIÇA
COMENTÁRIO
Tiago Queirós: Em suma,
pretende suprimir-se a corrupção não por meio do combate a actos corruptos, mas
por meio de uma modificação do conceito de corrupção. Isto é: a corrupção deixa de ser definida como
«corrupção», et voilà: acaba-se a corrupção! - legitimando-se, assim, a
continuidade e o reforço de práticas enraizadas e propagadas no seio da
administração pública, mas que, deixando de ser qualificadas como «corrupção»,
deixam de constituir actos corruptos. Pior
ainda, e brincadeiras à parte, é que semelhantes manifestações de baixeza
moral e institucional têm forçosamente o beneplácito do PCP, do Bloco ou do
PAN, que, albergando inúmeros militantes com ligações a empresas mais ou menos
próximas do Estado, pretenderão justificar o fortalecimento de tais ligações,
em nome (segundo dirão) da primazia do interesse público em detrimento de
interesses privados, contudo lesando o Estado (e, portanto, todos nós) em
milhões e milhões de euros. Que o Presidente da República actualmente em
funções, e cujo cinismo foi exemplarmente descrito por Pedro Feytor Pinto, se
mantenha em silêncio cúmplice e não dissolva o chiqueiro denominado por
Assembleia da República, não deveria espantar-nos; mas que as lideranças de
PSD, IL, Chega! e CDS não dialoguem e não promovam, em uníssono, a apresentação
de uma moção de censura é algo que, pelo contrário, me assombra, pois que
poderia representar o princípio do desmantelamento de uma autêntica rede
criminosa.
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