domingo, 27 de setembro de 2020

Ainda pertencemos lá

 

Ao espaço dessa revista “A PARÓDIA”, ao menos na questão das tosses. Os casos são mais graves hoje, com o progresso, que dá direito a greves e manifestações, ao nosso jeito pacífico.

Explicitando, enviou-me a minha filha Paula o 1º número da revista A PARÓDIA, de 8 páginas, datado de 17 de Janeiro de 1900, certamente uma Quarta Feira, pois que vem nela informado que é publicada às quartas-feiras, o que não deixei de confirmar no calendário fornecido pela Internet. A capa da Revista contém o conhecido desenho de Raphael Bordalo Pinheiro, um dos responsáveis pelas caricaturas da revista – (juntamente com M. Gustavo Bordallo Pinheiro (1)): uma porca enorme, amamentando os seus muitos porquinhos, num vasto prado com vacas a pastar em fila, e intitulado A POLÍTICA – A GRANDE PORCA.

Pela “leveza” sombria do retrato, ainda hoje actual, que nos situa naqueles tempos que despoletaram o humor de Eça, (que morreria nesse mesmo ano, final do século), transcrevo, da primeira página, (actualizando a ortografia) a espécie de Editorial que historia os motivos da mudança do nome “ANTÓNIO MARIA” para “A PARÓDIA”. O desenho que o ladeia, assinado por Raphael e M.Gustavo Bordallo Pinheiro, mostra figuras esvoaçantes do passado, em traço leve, elevando-se nos céus, com, em baixo duas caricaturas sanguíneas, de tocadores anunciando a nova era:

«Os portugueses são essencialmente conservadores. Por muito que esta opinião possa surpreender o nosso amigo Magalhães Lima, não é menos certo que, se nós mudamos com frequência de fato, nos recusamos obstinadamente mudar de ideias, o que faz que em Portugal a fortuna sorria mais aos alfaiates do que aos evangelistas como o sr. Teófilo Braga.

Se somos inquestionavelmente um país de janotas, estamos longe de ser um país de reformadores.

Assim, o nosso primeiro embaraço ao empreender esta publicação, é familiarizar o público com a ideia de que já não se chama ANTÓNIO MARIA o jornal que tem agora na mão, porque o público, conservador e rotineiro, quereria ver perpetuado no tempo e na galhofa aquele título que ficou pertencendo a uma época que desapareceu e que por isso fez o seu tempo.

Porquê? O que era o ANTÓNIO MARIA?

O ANTÓNIO MARIA, meus senhores, foi a Regeneração, o Fontes e a sua Água Circassiana, o Ávila e o seu cachenez, o Sampaio e os seus panfletos, o Arrobas e os seus editais, o Passeio Público e o lirismo do sr. Florêncio Ferreira, a srª Emília das Neves, a Judia e os Recreios Whitoyne, mundo findo, mundo morto, de sombras, espectros, múmias, onde só poderíamos estar à vontade sob a condição de termos desaparecido com ele, o que não é, evidentemente, um facto.

Ficarmos dentro do ANTÓNIO MARIA seria ficar dentro de um museu, na situação de um velho guarda mostrando à curiosidade do seu tempo os despojos da época passada.

A PARÓDIA é outra coisa, como o tempo é outro.

O ANTÓNIO MARIA foi um homem. Quando muito, foi uma família.

A PARÓDIA, dizemo-lo sem receio de sermos imodestos – somos nós todos.

A PARÓDIA é a caricatura ao serviço da grande tristeza pública. É a Dança da Bica no Cemitério dos Prazeres.»

Mas da página 3, extraio ainda o seguinte artigo, sem as caricaturas respectivas – uma, de gente fina a tossir, outra, de gente menos fina a requerer a caixinha da pastilha, no seu direito à reclamação, ainda nos seus primórdios.

«Há uma coisa que deve impressionar singularmente o viajante estrangeiro que porventura vá ao teatro de S Carlos: é a generalização da tosse por aquelas filas de cadeiras.

Efectivamente hoje, nos teatros portugueses, está-se tossindo muito e bem. Graças ao conforto que nelas se disfruta, sobretudo em S. Carlos, podemos mostrar ao forasteiro uma curiosa duplicação de coros: um no palco a berrar, outro na plateia a tossir.

Aconselhamos o sr. Paccini a que faça distribuir pastilhas por todo o seu teatro: de clorato de potassa aos coristas e de Gérandel aos espectadores – é uma plateia de expectadores.»

NOTAS: (1) - (WIKIPÉDIA: Manuel Augusto Bordalo Pinheiro, 1867/1920, filho de Rafael Bordalo Pinheiro, sobrinho de Columbano Bordalo Pinheiro: ilustrador, ceramista, caricaturista e autor de banda desenhada. Foi pioneiro da ilustração infantil em Portugal, com a criação do herói que deu nome à revista O Gafanhoto).

Nenhum comentário: