sábado, 26 de setembro de 2020

Hércules que houvesse hoje, desistiria


Os estábulos do rei Áugias, embora antigos, em vez de imundo espaço asqueroso (que Hércules conseguiu lavar, desviando o curso de dois rios para tal) seriam estrada pardacenta de areia macia e perfumada, sob as patas dos camelos – tal como a que T E.Lawrence por vezes tão finamente retrata na sua epopeia mais recente, “Os Sete Pilares da Sabedoria” (juntamente com a decifração decisiva dos comportamentos dos seus heróis de uma Ásia arábica em luta pelo seu espaço), como outrora em Tróia fora descrita aventura similar guerreira, com menos ironia mas não menos valor. Em comparação com estas histórias que hoje se contam, de fedor absoluto a emporcalhar a vida, essas tais de suor ou montanhas de excrementos do tempo do Hércules são prado suave de doce agrado. E quando aparece um herculezinho a fingir honradez justiceira visando cortar o mal pela raiz, por muito hercúleo que aparente ser, na sua inteligência aclaradora desses fedores das manigâncias que conta Pedro Bragança sobre as trafulhices plutocráticas que o futebol proporciona (entre os muitos mais meios plutocráticos do conhecimento geral), pensamos na sua figura de aventureiro marcado por hirto sorriso superior – de quem pode mostrar muita roupa suja alheia. Mas a roupa de Rui Pinto, sinistramente desafiante, também está marcada por idêntico fedor – o da ambição e da vaidade – talvez o da crueldade também - como esses tais da bomba atómica e similares, para só citarmos essas coisas corriqueiras já muito passadas. Não há bela sem senão, diz-se. Mas também já não há Hércules capaz de contrariar o mal, tão geral ele se tornou.

OPINIÃO

Antes e depois do Football Leaks, a Revolução de Rui Pinto

O Football Leaks marca uma viragem histórica nos meios de investigação jornalística e nos métodos de trabalho da Justiça sobre futebol

PEDRO BRAGANÇA

PÚBLICO, 6 de Setembro de 2020,

Desde que foi conhecida e confirmada a sua identidade, a 16 de janeiro de 2019, Rui Pinto tem enfrentado as paixões, os impulsos e a subjectividade inerente, por natureza, ao mundo do futebol. A autoria assumida do Football Leaks virou contra si os grande poderes da modalidade e a imputação (nunca confirmada) dos leaks do Benfica transformou-o num alvo nacional por eleição. Juntam-se Malta Files, Luanda Leaks e a denúncia, ainda por conhecer em profundidade, sobre negócios do BES Angola que terão lesado os portugueses em centenas de milhões de euros. Rui Pinto vai somando inimigos e parece que isto ainda agora está a começar.

No momento em que se inicia o seu julgamento, proponho revisitarmos a história do Football Leaks, a primeira Revolução de Rui Pinto.

1.- Antes do Football Leaks

A partilha dos direitos económicos de jogadores de futebol com entidades terceiras não desportivas (“Third Party Ownership”, ou TPO) – causa original de Rui Pinto – nasceu nos anos 60 e vulgarizou-se deste a década de 2000 na América do Sul, onde os clubes, cronicamente falidos, encontraram neste mecanismo uma forma de obviar dificuldades financeiras e a consequente perda de competitividade.

Muito rapidamente, esta prática expandiu-se para a Europa e fez sucesso nos países do sul, onde a realidade local encontrava paralelo com a realidade sul-americana. Em poucos anos, a sua disseminação atingiu graus de espectacularidade e sumptuosidade inimagináveis, permitindo a clubes inseridos em mercados nacionais débeis, como FC Porto, SL Benfica e Sporting CP, partilhar custos de aquisição e contratar jogadores antes inacessíveis. Mas se a partilha de passes se traduziu em mais competitividade, também fez ascender um poder que viria a revelar-se altamente nocivo.

Atletas de todo o mundo, muitas vezes desconhecidos, porque o seu real valor desportivo também era secundário, começaram a ser transferidos como mercadoria ou divisa puramente instrumental de outros negócios; muitos clubes, por sua vez, foram reduzidos a meros entrepostos de jogadores que não chegavam sequer a vestir a camisola ou mesmo a aterrar no aeroporto. Sem darmos conta, a economia do futebol tinha sido capturada por um sector que lhe era alheio (os “parceiros”, como eufemisticamente se dizia na altura), comandado por pessoas sem rosto visível, escondidas atrás de fundos de investimento, matrioscas de sociedades com nomes genéricos e testas-de-ferro, e que através de transferências de jogadores tentavam ganhar e/ou lavar muito dinheiro, rapidamente e ilicitamente. E ao mesmo tempo que o futebol se tornava um campo aberto exposto à ganância, à imoralidade e à ilegalidade, as autoridades e os organismos regulatórios assistiam de forma cúmplice e passiva.

Em 2008, a Football Association inglesa já tinha proibido totalmente a partilha de passes, decisão tomada na sequência do “Tevezgate” e da polémica suscitada pela detenção integral do passe do argentino pelo empresário Kia Joorabchian, bem como pela sua utilização irregular (tal como de Javier Mascherano) pelo West Ham. Seguiu-se França, mas só em Maio de 2015, e após tentativas frustradas de regulação, a FIFA iniciou o longo processo que resultaria na proibição definitiva dos TPO.

2. O Football Leaks

É neste contexto que surge o blog Football Leaks - Football and TPO whistleblowing (subtítulo pouco mencionado, mas muito relevante), em Setembro de 2015. O objectivo era – escrevia o seu autor, então desconhecido, na primeira publicação – “divulgar a parte oculta do futebol”, porque “o desporto que tanto amamos está podre e é altura de dizer basta. Fundos, comissões, negociatas, tudo serve para enriquecer certos parasitas que se aproveitam do futebol, sugando totalmente clubes e jogadores.”

Os meses que se seguiram e que, em 2016 e 2017, tiveram continuidade na investigação jornalística do European Investigative Collaboration (EIC), resultante da articulação de Rui Pinto com a Der Spiegel, abalaram o mundo do futebol e chocaram adeptos. O Football Leaks tornara-se o maior leak de informação da história do desporto e uma candeia no meio da escuridão que até então pairava sobre o futebol moderno.

E a escuridão era imensa. Recordemos, por exemplo, a excelente investigação do PÚBLICO, de 12 de Fevereiro de 2012 – “Dinheiro que alimenta o futebol português perde-se numa rede de fundos”, em que o jornalista Hugo Daniel Sousa avançava significativamente no conhecimento desta realidade e sistematizava, pela primeira vez, as redes de fundos que, à data, serviam e se serviam dos “três grandes.” Mas, apesar dos avanços, era também evidente a escassez de informação com que se deparava o trabalho. Com muita habilidade, os verdadeiros donos do dinheiro tinham montado complexos esquemas de encobrimento para tornar praticamente impossível a sua identificação. Por exemplo, não se sabia nada da Doyen, de Nélio Lucas e dos Arif do Cazaquistão, desconhecíamos que Marco Termes, afinal, era apenas a face visível de negócios da PAROS, de Marcelo Simonian, que redundavam em contas nas Ilhas Virgens Britânicas; o mesmo em relação à Natland e a Frans de Boef, nesse caso, com fim nas Antilhas Holandesas, …

Com o Football Leaks, tudo mudou. Ficámos a conhecer os rostos em concreto, os esquemas de falsos intermediários, a rota do dinheiro pelos apartados até às contas sediadas em paraísos fiscais, os nomes de código e pseudónimos, … um sistema impressionante de desvio, branqueamento e acumulação marginal de fortunas exposto ao detalhe, a que se somaram casos de flagrante conflito de interesses, manipulação, corrupção de agentes desportivos e a cumplicidade tácita das autoridades.

Por intermédio de documentos oficiais, divulgados com critério (sempre cirurgicamente e nunca em massa), provas inabaláveis e que não corriam o risco de serem desmentidas no dia seguinte, o Football Leaks decompôs o lado mais selvagem do futebol.

3. Depois do Football Leaks

Em Abril de 2017, apesar do empenho de fundos como a Doyen e de Federações como a portuguesa e a espanhola, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) confirmou o fim dos TPO. A decisão não terá sido alheia a toda a informação divulgada, noticiada e publicada nos dois livros Football Leaks.

Em Maio de 2016, o Twente, histórico da Eredivisie (Países Baixos), já tinha sido condenado à exclusão por três anos das competições europeias por ter assinado com a Doyen contratos que violavam a limitação à influência de fundos. Recentemente, o Manchester City foi condenado à exclusão por duas épocas das competições europeias e a 30 milhões de euros de multa por manipulação dos balanços e violação grosseira das regras do fair-play financeiro da UEFA (FFP). A decisão foi entretanto anulada por motivos formais como prescrição, não tendo sido anulada, no essencial, a prova feita aquando da decisão inicial. Estados europeus abriram procedimentos contra clubes, atletas e intermediários e, em Espanha, o fisco já resgatou, até 2019, mais de 42 milhões de euros. O contributo do Football Leaks é reconhecido pelo Parlamento Europeu, no texto aprovado em 2019, e pelo Eurojust, no momento da constituição de uma plataforma constituída por procuradores de nove países.

É certo que se exigia muito mais. Parte do sistema recompôs-se a acomodou-se a novas geografias, novos actores e novos métodos: astronómicas comissões por intermediação, duplas, triplas ou quádruplas intermediações, aquisição de clubes, ... O fair play financeiro continua longe de cumprir o objectivo para que foi criado e a ser facilmente contornado pelos mais ricos. O fosso acentua-se com os petrodólares e os clubes em economias periféricas enfrentam dificuldades cada vez maiores. Permanece a inércia das autoridades e dos organismos disciplinares, mais preocupados em tratar do expediente e da ordem do dia. Mas há mudanças estruturais e irreversíveis que vão além da contabilidade dos casos. Em toda a Europa, Autoridades Tributárias adquiriram uma vasta aprendizagem sobre os bastidores do futebol e, em particular, sobre como tudo se passa atrás de cortinas de fumo. Por exemplo, se até 2015 as transferências eram escrutinadas através da participação dos seus intervenientes directos (clube vendedor, clube comprador e intermediários registados), agora as autoridades procuram os seus beneficiários reais, aqueles que se escondem na retaguarda de um agente terceiro e que recebem comissões em cadeia, por via de sucessivos contratos fictícios de prestação de serviços de outra natureza, como scouting. Aquilo a que gíria chama kickbacks.

Essa aprendizagem dificilmente teria ocorrido de outra forma. E não é, como agora abundantemente se diz (apesar de nem ser verdade), porque Rui Pinto tinha recursos que não estão ao dispor das autoridades (os recursos de Rui Pinto estão, efectivamente, ao dispor das autoridades). É porque as autoridades eram absolutamente alheias àquela realidade e, portanto, nunca poderiam procurar por algo cuja existência desconheciam. Rui Pinto (como Rafael Buschmann, Michael Wulzinger e a restante equipa do EIC) apurou uma extraordinária sensibilidade e alcançou um grau de especialização provavelmente único no mundo em relação a esta matéria. Também isso – e não só pelas informação de que dispõe – fez dele um potencial colaborador, desejado por vários estados estrangeiros e muito recentemente pelo português.

Hoje, é indiscutivelmente mais difícil implementar esquemas como aqueles que foram montados na década passada, desde logo, porque a sociedade em geral está muito mais atenta, depois, porque a informação proveniente do Football Leaks veio dar força ao jornalismo, abrindo novas frentes de trabalho, e, por fim, porque ambos colocam sobre as organizações uma pressão suplementar. Veja-se como agora se desdobram os comités de ética e como a transparência passou para a ordem do dia. O Football Leaks marca uma viragem histórica na percepção pública, nos meios de investigação jornalística e nos métodos de trabalho da Justiça sobre futebol. É justamente por isso que o trabalho de Rui Pinto assume um carácter revolucionário.

Agora, é Rui Pinto, em nome próprio, que vai a jogo, num caso com repercussões mundiais e que tem atraído as atenções da imprensa de todas as partes, mesmo de países onde o futebol está longe de ser um desporto popular, como o The New Yorker e o The New York Times. A jogo vai também o próprio sistema de justiça – aos olhos de todo o mundo e aos olhos dos portugueses –, depois de múltiplos episódios que marcaram este caso desde os primeiros dias.

Rui Pinto responderá pela acusação de dezenas de crimes que lhe são imputados pelo acesso à informação e, também, por um crime de tentativa de extorsão, decorrente de uma queixa do fundo Doyen. Neste jogo, não enfrenta apenas o Ministério Público, ou os assistentes Doyen e Sporting. Enfrenta um sistema inteiro, vindo do mundo do futebol e não só, poderosas sociedades de advogados, políticos e banqueiros, numa luta aparentemente desigual, mas que está muito longe de estar decidida.

Arquitecto, investigador e adepto do FC Porto

DESPORTO    OPINIÃO

COMENTÁRIOS:

Joaquim Nolasco Gil INICIANTE: Rui Pinto será um excelente activo nas investigações a conduzir pelo Ministério Público em processos futuros... quando chancelado por um juiz de instrução e ao abrigo de um processo justo e democrático. Até lá, enquanto em causa própria e na penumbra do hacking privado, praticou crimes pelos quais deve responder e, se provados, ser punido. Simples. 07.09.2020

Gabriela Cardia INICIANTE: As "denúncias" do seu amigo foi invadir os sistemas informáticos da PGR, do DCIAP, pedir dinheiro às suas vítimas e procurar saber como o esconder em off shores etc !!!! Crimes comuns e nada mais. Vai levar uma ripada da justiça que até anda de lado. Só se não houver justiça nenhuma em Portugal é que não vai para a cadeia pelo menos meia dúzia de anos.

antao.am.837032 INICIANTE: Ao estado a que chegou este jornal! Como é possível dar voz a um assumido fanático do FC Porto? E parabéns a quem se apresenta neste fórum como Novo Huambo pelo excelente comentário.

antoniosergiorINICIANTE: Para existir um antes e um depois a mudança que o autor deste texto atribuí a Rui Pinto (a decisão da FIFA em proibir os TPO) tinha que ser posterior ao Football Leaks. Mas não é. O próprio autor nota que a FIFA fê-lo em Maio 2015 quando o FL aparece apenas em Setembro!!! Que coerência!

Manuel Pessoa INICIANTE: O articulista deixa dois pontos por explicitar para se perceber o que defende, e até onde está disposto a ir: 1 - É legítimo, por ser necessário, suspender ou acabar com a inviolabilidade de correspondência (e afins) para se poder investigar crimes ligados ou subsequentes a jogos financeiros como os que envolvem o mercado de jogadores e se estendem pelo mundo financeiro em geral? 2 - Quem, e em que condições, pode fazer estas investigações: o Estado através do sistema judicial ou qualquer um de nós que tenha habilidade e conhecimentos para as fazer? Claro que é muito preocupante verificar a inércia das autoridades que sabem da existência de fraudes e outros truques conexos e nada fazem. Mas recorrer à iniciativa privada, pretensamente moraleira, para suprir esta lacuna afigura-se perigoso.

Helder Nunes: INICIANTE: Excelente artigo de opinião. O Público a prestar serviço público ao país.

Novo Humbo EXPERIENTE: Acha?... A um arquitecto, "investigador" (de quê?...formado onde?) adepto declarado do FCP, sem qualquer colaboração anterior é dada uma coluna para "dizer umas coisas" sobre um caso extremamente complexo em termos judiciais...Só demonstra a balda em que se está a tornar o "Público", presa fácil de jornalistas com agenda política e neo-opinadores com interesses às costas. Fico à espera de nova coluna sobre esta questão escrita por um engenheiro, "cientista" e membro dos Super Dragões.

Rui Ribeiro EXPERIENTE: Agora temos alguém alinhado com crimes e a elogiar um criminoso. Elevados padrões, os do Público. Esta é a decisão que me levará a não renovar a minha assinatura. Não pode valer tudo.

Novo Humbo EXPERIENTE: "Enfrenta um sistema inteiro, vindo do mundo do futebol e não só, poderosas sociedades de advogados, políticos e banqueiros". Há "sistemas" que não terá que enfrentar porque deles faz parte integrante. 06.09.2020

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