Os estábulos do rei Áugias, embora
antigos, em vez de imundo espaço asqueroso (que Hércules conseguiu lavar,
desviando o curso de dois rios para tal) seriam estrada pardacenta de areia
macia e perfumada, sob as patas dos camelos – tal como a que T E.Lawrence por vezes tão
finamente retrata na sua epopeia mais recente, “Os Sete Pilares da Sabedoria” (juntamente com a decifração decisiva
dos comportamentos dos seus heróis de uma Ásia arábica em luta pelo seu
espaço), como outrora em Tróia fora descrita aventura similar guerreira, com
menos ironia mas não menos valor. Em comparação com estas histórias que hoje se
contam, de fedor absoluto a emporcalhar a vida, essas tais de suor ou montanhas
de excrementos do tempo do Hércules são prado suave de doce agrado. E quando
aparece um herculezinho a fingir honradez justiceira visando cortar o mal pela
raiz, por muito hercúleo que aparente ser, na sua inteligência aclaradora
desses fedores das manigâncias que conta Pedro Bragança sobre as trafulhices
plutocráticas que o futebol proporciona (entre os muitos mais meios plutocráticos
do conhecimento geral), pensamos na sua figura de aventureiro marcado por hirto
sorriso superior – de quem pode mostrar muita roupa suja alheia. Mas a roupa de
Rui Pinto, sinistramente
desafiante, também está marcada por idêntico fedor – o da ambição e da vaidade –
talvez o da crueldade também - como esses tais da bomba atómica e similares,
para só citarmos essas coisas corriqueiras já muito passadas. Não há bela sem
senão, diz-se. Mas também já não há Hércules capaz de contrariar o mal, tão geral
ele se tornou.
OPINIÃO
Antes e depois do Football Leaks, a Revolução de Rui
Pinto
O Football Leaks marca uma viragem
histórica nos meios de investigação jornalística e nos métodos de trabalho da
Justiça sobre futebol
PEDRO BRAGANÇA
PÚBLICO, 6 de
Setembro de 2020,
Desde
que foi conhecida e confirmada a sua identidade, a 16 de janeiro de 2019,
Rui Pinto tem enfrentado as paixões, os impulsos e a subjectividade inerente,
por natureza, ao mundo do futebol. A autoria assumida do Football Leaks virou
contra si os grande poderes da modalidade e a imputação (nunca confirmada) dos
leaks do Benfica transformou-o num alvo nacional por eleição. Juntam-se Malta
Files, Luanda Leaks e a denúncia, ainda por conhecer em profundidade, sobre
negócios do BES Angola que terão lesado os portugueses em centenas de milhões
de euros. Rui Pinto vai somando inimigos e parece que isto ainda agora está a
começar.
No
momento em que se inicia o seu julgamento, proponho revisitarmos a história
do Football Leaks, a primeira Revolução de Rui Pinto.
1.- Antes do Football
Leaks
A
partilha dos direitos económicos de jogadores de futebol com entidades
terceiras não desportivas
(“Third Party Ownership”, ou TPO) – causa original de Rui Pinto – nasceu nos
anos 60 e vulgarizou-se deste a década de 2000 na América do Sul, onde os
clubes, cronicamente falidos, encontraram neste mecanismo uma forma de obviar
dificuldades financeiras e a consequente perda de competitividade.
Muito
rapidamente, esta prática expandiu-se para a Europa e fez sucesso nos países do
sul, onde a realidade local encontrava paralelo com a realidade sul-americana. Em
poucos anos, a sua disseminação atingiu graus de espectacularidade e
sumptuosidade inimagináveis, permitindo a clubes inseridos em mercados
nacionais débeis, como FC Porto, SL Benfica e Sporting CP, partilhar custos de
aquisição e contratar jogadores antes inacessíveis. Mas se a partilha de
passes se traduziu em mais competitividade, também fez ascender um poder que
viria a revelar-se altamente nocivo.
Atletas
de todo o mundo, muitas vezes desconhecidos, porque o seu real valor desportivo
também era secundário, começaram a ser transferidos como mercadoria ou divisa
puramente instrumental de outros negócios; muitos clubes, por sua vez, foram reduzidos a
meros entrepostos de jogadores que não chegavam sequer a vestir a camisola ou
mesmo a aterrar no aeroporto. Sem darmos conta, a economia do futebol
tinha sido capturada por um sector que lhe era alheio (os “parceiros”, como
eufemisticamente se dizia na altura), comandado por pessoas sem rosto visível,
escondidas atrás de fundos de investimento, matrioscas de sociedades com nomes
genéricos e testas-de-ferro, e que através de transferências de jogadores
tentavam ganhar e/ou lavar muito dinheiro, rapidamente e ilicitamente. E
ao mesmo tempo que o futebol se tornava um campo aberto exposto à ganância, à
imoralidade e à ilegalidade, as autoridades e os organismos regulatórios
assistiam de forma cúmplice e passiva.
Em
2008, a Football Association inglesa já tinha proibido totalmente a partilha de
passes, decisão tomada na sequência do “Tevezgate” e da polémica suscitada pela
detenção integral do passe do argentino pelo empresário Kia Joorabchian, bem
como pela sua utilização irregular (tal como de Javier Mascherano) pelo West
Ham. Seguiu-se França, mas só em Maio de 2015, e após tentativas frustradas de
regulação, a FIFA iniciou o longo processo que resultaria na proibição
definitiva dos TPO.
2. O Football
Leaks
É
neste contexto que surge o blog Football
Leaks - Football and TPO whistleblowing
(subtítulo pouco mencionado, mas muito relevante), em Setembro de 2015.
O objectivo era – escrevia o seu autor, então desconhecido, na primeira
publicação – “divulgar a parte oculta do futebol”, porque “o desporto
que tanto amamos está podre e é altura de dizer basta. Fundos, comissões,
negociatas, tudo serve para enriquecer certos parasitas que se aproveitam do
futebol, sugando totalmente clubes e jogadores.”
Os
meses que se seguiram e que, em 2016 e 2017, tiveram continuidade na
investigação jornalística do European Investigative Collaboration (EIC),
resultante da articulação de Rui Pinto com a Der Spiegel, abalaram o mundo
do futebol e chocaram adeptos. O Football Leaks tornara-se o maior leak de
informação da história do desporto e uma candeia no meio da escuridão que até
então pairava sobre o futebol moderno.
E
a escuridão era imensa. Recordemos, por exemplo, a excelente investigação do PÚBLICO, de 12 de Fevereiro
de 2012 – “Dinheiro que alimenta o futebol português perde-se numa rede de
fundos”, em que o jornalista Hugo Daniel Sousa avançava significativamente no conhecimento desta
realidade e sistematizava, pela primeira vez, as redes de fundos que, à data,
serviam e se serviam dos “três grandes.” Mas, apesar dos avanços, era
também evidente a escassez de informação com que se deparava o trabalho. Com
muita habilidade, os verdadeiros donos do dinheiro tinham montado complexos
esquemas de encobrimento para tornar praticamente impossível a sua
identificação. Por exemplo, não se sabia nada da Doyen, de Nélio Lucas e dos
Arif do Cazaquistão, desconhecíamos que Marco Termes, afinal, era apenas a face
visível de negócios da PAROS, de Marcelo Simonian, que redundavam em contas nas
Ilhas Virgens Britânicas; o mesmo em relação à Natland e a Frans de Boef, nesse
caso, com fim nas Antilhas Holandesas, …
Com o Football Leaks, tudo mudou. Ficámos
a conhecer os rostos em concreto, os esquemas de falsos intermediários, a rota
do dinheiro pelos apartados até às contas sediadas em paraísos fiscais, os
nomes de código e pseudónimos, … um sistema impressionante de desvio,
branqueamento e acumulação marginal de fortunas exposto ao detalhe, a que se
somaram casos de flagrante conflito de interesses, manipulação, corrupção de
agentes desportivos e a cumplicidade tácita das autoridades.
Por intermédio de documentos
oficiais, divulgados com critério (sempre cirurgicamente e nunca em massa),
provas inabaláveis e que não corriam o risco de serem desmentidas no dia
seguinte, o Football Leaks decompôs o lado mais selvagem do futebol.
3. Depois do Football
Leaks
Em Abril de 2017, apesar do empenho de fundos como a Doyen e de
Federações como a portuguesa e a espanhola, o Tribunal Arbitral do Desporto
(TAS) confirmou o fim dos TPO. A decisão não terá sido alheia a toda a
informação divulgada, noticiada e publicada nos dois livros Football Leaks.
Em
Maio de 2016, o Twente, histórico da Eredivisie (Países Baixos), já tinha sido
condenado à exclusão por três anos das competições europeias por ter assinado
com a Doyen contratos que violavam a limitação à influência de fundos. Recentemente, o Manchester City foi condenado à
exclusão por duas épocas das competições europeias e a 30 milhões de euros de
multa por manipulação dos balanços e violação grosseira das regras do fair-play
financeiro da UEFA (FFP). A decisão foi entretanto anulada por motivos
formais como prescrição, não tendo sido anulada, no essencial, a prova feita
aquando da decisão inicial. Estados europeus abriram procedimentos contra
clubes, atletas e intermediários e, em Espanha, o fisco já resgatou, até 2019,
mais de 42 milhões de euros. O contributo do Football Leaks é reconhecido
pelo Parlamento Europeu, no texto aprovado em 2019, e pelo Eurojust, no
momento da constituição de uma plataforma constituída
por procuradores de nove países.
É certo que se exigia muito mais. Parte do sistema recompôs-se a acomodou-se a novas
geografias, novos actores e novos métodos: astronómicas comissões por
intermediação, duplas, triplas ou quádruplas intermediações, aquisição de
clubes, ... O fair play financeiro continua longe de cumprir o objectivo
para que foi criado e a ser facilmente contornado pelos mais ricos. O fosso
acentua-se com os petrodólares e os clubes em economias periféricas enfrentam
dificuldades cada vez maiores. Permanece
a inércia das autoridades e dos organismos disciplinares, mais preocupados em
tratar do expediente e da ordem do dia. Mas há mudanças estruturais e
irreversíveis que vão além da contabilidade dos casos. Em toda a
Europa, Autoridades Tributárias adquiriram uma vasta aprendizagem sobre os
bastidores do futebol e, em particular, sobre como tudo se passa atrás de
cortinas de fumo. Por
exemplo, se até 2015 as transferências eram escrutinadas através da
participação dos seus intervenientes directos (clube vendedor, clube comprador
e intermediários registados), agora as autoridades procuram os seus
beneficiários reais, aqueles que se escondem na retaguarda de um agente
terceiro e que recebem comissões em cadeia, por via de sucessivos contratos
fictícios de prestação de serviços de outra natureza, como scouting. Aquilo a
que gíria chama kickbacks.
Essa
aprendizagem dificilmente teria ocorrido de outra forma. E não é, como agora
abundantemente se diz (apesar de nem ser verdade), porque Rui Pinto tinha
recursos que não estão ao dispor das autoridades (os recursos de Rui Pinto
estão, efectivamente, ao dispor das autoridades). É porque as autoridades
eram absolutamente alheias àquela realidade e, portanto, nunca poderiam
procurar por algo cuja existência desconheciam. Rui Pinto (como Rafael
Buschmann, Michael Wulzinger e a restante equipa do EIC) apurou uma
extraordinária sensibilidade e alcançou um grau de especialização provavelmente
único no mundo em relação a esta matéria. Também isso – e não só pelas
informação de que dispõe – fez dele um potencial colaborador, desejado por
vários estados estrangeiros e muito recentemente pelo português.
Hoje,
é indiscutivelmente mais difícil implementar esquemas como aqueles que foram
montados na década passada, desde logo, porque a sociedade em geral está muito
mais atenta, depois, porque a informação proveniente do Football Leaks veio
dar força ao jornalismo, abrindo novas frentes de trabalho, e, por fim, porque
ambos colocam sobre as organizações uma pressão suplementar. Veja-se como
agora se desdobram os comités de ética e como a transparência passou para a
ordem do dia. O Football Leaks marca uma viragem histórica na percepção
pública, nos meios de investigação jornalística e nos métodos de trabalho da
Justiça sobre futebol. É justamente por isso que o trabalho de Rui Pinto assume
um carácter revolucionário.
Agora,
é Rui Pinto, em nome próprio, que vai a jogo, num caso com repercussões
mundiais e que tem atraído as atenções da imprensa de todas as partes, mesmo de
países onde o futebol está longe de ser um desporto popular, como o The New Yorker e o The New York Times. A jogo vai também o próprio sistema de justiça – aos
olhos de todo o mundo e aos olhos dos portugueses –, depois de múltiplos
episódios que marcaram este caso desde os primeiros dias.
Rui
Pinto responderá pela acusação de dezenas de crimes que lhe são imputados pelo
acesso à informação e, também, por um crime de tentativa de extorsão,
decorrente de uma queixa do fundo Doyen. Neste jogo, não enfrenta apenas o
Ministério Público, ou os assistentes Doyen e Sporting. Enfrenta um sistema
inteiro, vindo do mundo do futebol e não só, poderosas sociedades de advogados,
políticos e banqueiros, numa luta aparentemente desigual, mas que está muito
longe de estar decidida.
Arquitecto, investigador e adepto do FC Porto
COMENTÁRIOS:
Joaquim Nolasco Gil INICIANTE: Rui Pinto será um excelente activo nas investigações a
conduzir pelo Ministério Público em processos futuros... quando chancelado por
um juiz de instrução e ao abrigo de um processo justo e democrático. Até lá,
enquanto em causa própria e na penumbra do hacking privado, praticou crimes
pelos quais deve responder e, se provados, ser punido. Simples. 07.09.2020
Gabriela Cardia INICIANTE: As "denúncias" do seu amigo foi invadir os
sistemas informáticos da PGR, do DCIAP, pedir dinheiro às suas vítimas e
procurar saber como o esconder em off shores etc !!!! Crimes comuns e nada
mais. Vai levar uma ripada da justiça que até anda de lado. Só se não houver
justiça nenhuma em Portugal é que não vai para a cadeia pelo menos meia dúzia
de anos.
antao.am.837032
INICIANTE: Ao estado a que chegou este jornal! Como
é possível dar voz a um assumido fanático do FC Porto? E parabéns a quem se
apresenta neste fórum como Novo Huambo pelo excelente comentário.
antoniosergiorINICIANTE:
Para existir um antes e um depois a mudança que o autor
deste texto atribuí a Rui Pinto (a decisão da FIFA em proibir os TPO) tinha que
ser posterior ao Football Leaks. Mas não é. O próprio autor nota que a FIFA
fê-lo em Maio 2015 quando o FL aparece apenas em Setembro!!! Que coerência!
Manuel Pessoa INICIANTE: O articulista deixa dois pontos por explicitar para se
perceber o que defende, e até onde está disposto a ir: 1 - É legítimo, por ser necessário, suspender ou acabar
com a inviolabilidade de correspondência (e afins) para se poder investigar
crimes ligados ou subsequentes a jogos financeiros como os que envolvem o
mercado de jogadores e se estendem pelo mundo financeiro em geral? 2 - Quem, e em que condições, pode fazer estas
investigações: o Estado através do sistema judicial ou qualquer um de nós que
tenha habilidade e conhecimentos para as fazer? Claro que é muito preocupante
verificar a inércia das autoridades que sabem da existência de fraudes e outros
truques conexos e nada fazem. Mas recorrer à iniciativa privada, pretensamente
moraleira, para suprir esta lacuna afigura-se perigoso.
Helder Nunes:
INICIANTE: Excelente artigo de opinião. O Público
a prestar serviço público ao país.
Novo Humbo EXPERIENTE: Acha?... A um arquitecto, "investigador" (de
quê?...formado onde?) adepto declarado do FCP, sem qualquer colaboração
anterior é dada uma coluna para "dizer umas coisas" sobre um caso
extremamente complexo em termos judiciais...Só demonstra a balda em que se está
a tornar o "Público", presa fácil de jornalistas com agenda política
e neo-opinadores com interesses às costas. Fico à espera de nova coluna sobre
esta questão escrita por um engenheiro, "cientista" e membro dos
Super Dragões.
Rui Ribeiro EXPERIENTE: Agora temos alguém alinhado com crimes e a elogiar um
criminoso. Elevados padrões, os do Público. Esta é a decisão que me levará a
não renovar a minha assinatura. Não pode valer tudo.
Novo Humbo EXPERIENTE: "Enfrenta um sistema inteiro, vindo do mundo do
futebol e não só, poderosas sociedades de advogados, políticos e
banqueiros". Há "sistemas" que não terá que enfrentar porque
deles faz parte integrante. 06.09.2020
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