quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Nunca imaginaria


Que a Bíblia fosse lida com um à-vontade tão ameno de “criação” que se adora, como o livro mais fantástico - e por isso mesmo se condena - nas suas enormidades e nas suas contradições, que aceitam a proeminência de um Deus por vezes perfeitamente hediondo, no comportamento abusivo para com as criaturas criadas do próprio pó que antecedeu a criação do Homem, na realização divina. Um livro que se lê como um romance de leve enredo e simultaneamente apelativo da reflexão crítica nas breves histórias escolhidas, para sublinharem o pensamento antidogmático, contudo, de um jovem extraordinário nos seus trabalhos de tradução não só da Bíblia mas de tantas obras da cultura helénica que o seu conhecimento do grego e do latim favoreceu – Frederico Lourenço e este seu encantador “livrinho «O LIVRO ABERTOLeituras da Bíblia».

Lê-se, não de uma assentada - embora possamos fazê-lo, se quisermos ir depressa nos episódios sucessivos de uma reflexão liberta de preconceito, cimentada com as referências pessoais susceptíveis de criar embaraços numa perspectiva preconceituosa – mas no prazer maravilhado que nos faz buscar a Bíblia na sua integridade, para reler os episódios citados num maior aprofundamento que nem sempre esteve disponível, no meio da floresta literária produzida no mundo, embora sintamos quão infinitamente reduzido é o nosso percurso por ela, por essa floresta que os obstáculos da vida, ou tão só as opções da preguiça impedem de atravessar com mais frequência. Mas a Bíblia foi e é também para nós um apelo de diversão prazeirosa, que este livrinho de Frederico Lourenço trouxe uma vez mais à baila, para confirmação das suas citações, aprofundadas, por vezes, numa continuação da leitura bíblica proposta.

Frederico Lourenço é, com efeito, um ser “sui generis”, a merecer todo o culto e galardões que lhe devem ser prestados, pela dimensão das suas amplas traduções clássicas, pelo sentido romanesco e tantas vezes irónico que sabe imprimir às suas considerações verdadeiramente “à la page” nos ideais democráticos que a Bíblia, que ele venera, múltiplas vezes desfeiteia, sobretudo nos livros do Antigo Testamento, plenos da prepotência divina e humana, perfeitamente absurda, mas que o Novo Testamento não deixa igualmente de atestar, prepotência que, em todo o sempre, afinal, massacrou a humanidade.

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