quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Braço de lata



E os anos vão correndo, e apesar destes artigos de sensatez sobre o ultraje feito à Língua Portuguesa, que a maioria dos comentadores desaprova, mostrando a insanidade do dito AO, este mantém-se, na indiferença ignara das políticas e dos políticos a quem não choca tal ultraje linguístico. Vamos, pois, apoiando aqueles que não desistem, em braço, é certo, não de ferro mas de lata ou mesmo de latão, que vai cedendo às marteladas desprezíveis de quem governa. Fazendo faúlhas, não dando luz.
OPINIÃO: Ninguém pára para pensar no Acordo Ortográfico
Seria importante, em benefício do serviço público, que a RTP, a que lanço o repto, pudesse promover o debate sério sobre a questão do Acordo Ortográfico. Algo que possa justificar o título assumidamente ambíguo deste artigo.
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL
PÚBLICO, 1 de Janeiro de 2020
Há umas semanas, um amigo fez o favor de me enviar o documento Pordata, Retrato de Portugal 2019, da responsabilidade da Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual se trata estatisticamente a sociedade portuguesa em várias vertentes, de 1960 à actualidade, em colaboração com mais de 60 entidades oficiais de informação, sob o lema “Um convite à discussão informada sobre os factos”. Uma particularidade: todo o documento está redigido na versão do Acordo Ortográfico de 1945 (AO45).
Para além do facto de alguns organismos públicos manterem – é possível que estejam em processo de alteração – as autodenominações segundo o AO45 (ainda há dias me cruzei com uma carrinha da Protecção [sic] Civil de Almada), a própria RTP (que peleja do lado do Acordo Ortográfico de 1990) deixa escapar inúmeros casos em que a flutuação gráfica entre o AO45 e o AO90 é evidente, quer em apontamentos de rodapé, quer em destaques ou ainda em transcrições gráficas de enunciados orais ou escritos. Deixo alguns exemplos, enfatizados a itálico: “Greve em França – Eliseu afirma que actual sistema de pensões (…)” (10 de Dezembro de 2019); “Tribunal Comarca de Lisboa – Juízo Cível: Resultou à evidência que a sociedade não tem actividade para além do parqueamento (…)” (6 de Dezembro de 2019); Joe Berardo – “É impensável que a instituição de crédito tenha decidido conceder crédito directamente ao requerido (…); numa “peça” sobre os grandes contribuintes do fisco, foi exibida a imagem  Direcção de Finanças” (4 de Dezembro de 2019); “Bebé abandonado – Instituto de Apoio à Criança defende que adopção (…)” (9 de Novembro de 2019); “Apoio aos “Sem-abrigo” – várias associações de apoio a sem-abrigo queixam-se que não vêem melhoras (…)” (9 de Novembro de 2019).
Não é aqui o lugar para ser exaustivo a este propósito, mas fica claro que a RTP, emissora de televisão a prestar serviço público (e que promove até programas sobre a língua portuguesa e sua ortografia), contribui em simultâneo para o caos ortográfico e, portanto, difunde o erro ortográfico. Abreviando, a RTP torna evidente aquilo que muitos não aceitam reconhecer: a inevitabilidade de que a ortografia, em Portugal, não é um assunto fechado. Posso estar enganado, mas é possível que mais nenhum país do mundo tenha a sua ortografia por fixar (a não ser o Brasil e por questões semelhantes, envolvido no imbróglio comum). O mesmo será dizer que o país, por inteiro, não reconheceu ou fixou uma ortografia e que, nesse caso, o Acordo Ortográfico de 1990 não só não é norma como letra de lei.
Aliás, o que o sustenta, longe de se tratar de um Decreto-Lei, é somente uma Resolução do Conselho de Ministros (nº8/2011), que nem sequer aprovou um decreto-lei, como é de sua competência (veja-se a nota preambular sobre o assunto, no Diário da República Eletrónico, onde se diz “(…) retificado pela Rectificação [sic] (…)” – se atentarmos à pirâmide de Kelsen e à hierarquização dos deveres, percebemos que uma resolução de ministros surge na 6ª posição, salvo outra opinião mais segura, depois da Constituição, Leis, Decretos, Decreto Regulamentar e Resoluções do Supremo. Isso significa que ignorar o Acordo Ortográfico de 1990, como o faz a Pordata, como para tal igualmente concorrem os docentes da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (insistindo em que os discentes adquiram os seus livros, impressos ainda segundo o acordo de 1945), ou como o faz, entre outras publicações (a Sociedade Portuguesa de Autores, por exemplo), o jornal diário Público, reputado como um (senão o) periódico de qualidade superior, não significa estar fora da lei.
Quando um país permite que a sua Constituição seja omissa quanto ao estatuto legal em que se inscreve a Língua de uso nacional, bem como a enunciação do documento orientador sobre o conjunto de regras linguísticas normativas (ambiguidades salvaguardadas) a que se submete, alguma coisa está a falhar. Aliás, não causaria prurido a ninguém a presença, na Constituição da República, de artigo próprio para a Língua Oficial. O artigo 11º (Símbolos nacionais e língua oficial) é, a meu ver, omisso, no seu ponto 3: “A língua oficial é o Português”. Resta saber a que Acordo Ortográfico adstrito.
Acredito na boa-fé das pessoas e respeito o conhecimento científico dos proponentes do novo acordo ortográfico e dos seus antagonistas. O que não aceito é que aquilo que se constitui matéria de tão alta importância não seja debatido. Tem razão a Dra. Margarita Correia (com quem tive o privilégio de trocar algumas impressões) ao afirmar que a questão do Acordo Ortográfico diz respeito somente a uma elite, porquanto a maioria das pessoas a ignora. É um facto: somente um grupo restrito de filólogos, professores, jornalistas e especialistas dá crédito ao assunto. Mas isso só é assim, porque a Língua Portuguesa, como bem imaterial (ainda que de alcance ontológico supremo) que é, não gera receitas de capital ao nível dos anseios da sociedade do entretenimento actual. A língua é contida, silenciosa, subtil e elegante. O novo acordo, parece-me, tira-lhe boa parte disso.
Seria importante, em benefício do serviço público, que a RTP, a que lanço o repto, pudesse promover o debate sério sobre a questão do Acordo Ortográfico, que, para além da componente científica, tem contornos políticos (alguns, mesmo, polémicos, desde a sua génese, ao processo e datação dos sucessivos Protocolos Modificativos, e ao impedimento de actuação do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990). O programa Prós e Contras, moderado pela jornalista Fátima Campos Ferreira, por exemplo, seria oportuno para poder sentar à mesa pessoas como a Dra. Margarita Correia, a Dra. Maria Regina Rocha, o Dr. Artur Anselmo, filólogos e especialistas em lexicologia, jornalistas como Nuno Pacheco, tradutores, revisores (Manuel Monteiro, por exemplo), editores, escritores, activistas em torno da matéria, políticos. É um manancial humano em torno de um assunto imensamente rico e actual, que terá, isso é bem claro, interessada e viva participação. Algo que possa justificar o título assumidamente ambíguo deste artigo. E que, de uma vez por todas, clarifique aquilo que queremos para a Língua Portuguesa e se alargue a um número maior de pessoas o património simultaneamente universal e individual que ela representa.
Votos de um Bom Ano Novo, com dignidade, lucidez e sem o receio de encarar de frente as questões para as quais a nossa língua nos impele.
COMENTÁRIOS:
luisvaz: Ignorância profunda (3) "Confrontem-se, por exemplo, formas como as seguintes: port. acidente(do lat. accidente-), esp. accidente, fr. accident, it. accidente; port. dicionário(do lat. dictionariu-), esp. diccionario, fr. dictionnaire, it. dizionario; port. ditar(do lat. dictare), esp. dictar, fr. dicter, it. dettare; port. estrutura(de structura-), esp. estructura, fr. structure, it. struttura; etc." Ora como todos sabemos as vogais [i] e [u] têm sempre a mesma pronúncia. Por isso, na reforma de 1911 perderam as consoantes [c] ou [p]. Só nos casos em que são articuladas se mantiveram, como "ficção" do latim "ficcione" ou "erupção" do latim "eruptione". Com as vogais [a], [e] e [o], indicam a abertura dessas vogais, independentemente da sua articulação. Simples, todas as crianças percebem!.
luisvaz: Ignorância profunda (2) É impressionante a espectacular e profunda ignorância de quem redigiu a treta da "Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da "Língua Portuguesa" (1990). Ora "corar" do lat. "colorare", "padeiro do lat. "panatariu", "oblação" do lat. "oblatio" e "pregar" do lat. "praedicare", que consoantes deviam manter? [c] ou [p]? §Por uma razão de coerência, mantêm-se tais consoantes em sílaba tónica nas palavras pertencentes à mesma família ou flexão.§ Logo; acção e accionar; acto, actual e actualidade; exacto e exactidão; tacto e tactear. É assim tão difícil de perceber?
luisvaz: Ignorância profunda (1) É impressionante a espectacular e profunda ignorância de quem redigiu a treta da "Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da "Língua Portuguesa" (1990). "A justificação de que as ditas consoantes mudas travam o fechamento da vogal precedente também é de fraco valor, já que, por um lado, se mantêm na língua palavras com vogal pré-tónica aberta, sem a presença de qualquer sinal diacrítico, como em corar, padeiro, oblação, pregar(= fazer uma prédica), etc., e, por outro, a conservação de tais consoantes não impede a tendência para o ensurdecimento da vogal anterior em casos como accionar, actual, actualidade, exactidão, tactear, etc.;"
Pedro Soares: Muito bem. Parabéns.
vilalegre: 01.01.2020: "Eu como como uma criança", esta frase também é ambígua e não é por culpa do AO
Sima Qian: Errado. Não tem nenhuma ambiguidade. A ambiguidade é quando há duas possíveis interpretações: Eles falaram da janela. Falaram sobre a janela ou alguém estava à janela.
Diabinho Malandro 01.01.2020: "para para"?!
A B, 01.01.2020: "Posso estar enganado, mas é possível que mais nenhum país do mundo tenha a sua ortografia por fixar": Isto não é só estar enganado. Isto é de uma ignorância atroz para alguém que julga ter algo de relevante a dizer sobre o assunto num dos jornais mais lidos em Portugal. Mas que infelizmente nesta matéria é apenas uma máquina de propaganda. Entrevistar sei lá, a Presidente do Conselho Científico do IILP (Instituto Internacional de Língua Portuguesa), isso está quieto. Bom bom é ir buscar à rua gente com aquela conversa de café ignorante.
Suspicious Minds, 01.01.2020: O homem já não sabe se há-de fazer as antologias poéticas com consoantes mudas, ou não. Isto, meu amigo, a vida não está fácil, é o que é....
uc2016267967.858249, 01.01.2020: Propaganda é o seu comentário, nada mais.
Sima Qian: É fácil e bastante primário chamar ignorantes às pessoas que se preocupam com este calamitoso AO. Deve estar a confundir com os inquéritos de rua sobre Bom Português e quejandos.
Armando Heleno,  01.01.2020:  Com este artigo de opinião o Público começa o ano da melhor maneira. É realmente para nós um tema de extrema acuidade que deveria ser martelado contìnuamente com acções deste género, como por estes dias o tem sido o tema sobre alterações climáticas. Para quem adora a nossa língua,onde me incluo, é um prazer enorme escrever como aprendemos na escola primária. Sabe bem, dá prazer e sobretudo vincamo-la, transmitimos-lhe originalidade como uma das línguas cimeiras do mundo.
Sima Qian: Estou sempre consigo.


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