quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Amargura


O Dr. Salles resolveu brincar com a sua condição de saúde actualmente em défice, como é a de tantos, uns porque são velhos, outros porque estão ainda mais doentes, e aterrados… A verdade é que, com o acréscimo dos anos se pensa cada vez mais no tema que já os clássicos focavam, e nessa altura bem mais jovens do que hoje, pois não duravam tanto. O que me parece é que o Dr. Salles está cheio de mimo, a par da revolta natural, por um inesperado que, contudo, não se impõe como definitivo, num espírito como o seu, de resistente e batalhador. Não é para o entristecer mais ainda, mas coloco uns sonetos que deve conhecer, o de Sá de Miranda sobre o tema da mudança, os da Fénix Renascida (de Francisco de Vasconcelos), sobre o tema da morte, num estilo barroco, de um significado trágico que se pretende diluir sob o rebuscado das imagens. Apenas para o encher de prazer, embora já os conheça, é claro. Mas faz bem à alma, tanta beleza, que em qualquer momento se pode rever – no intervalo dos seus muitos afazeres de leituras sérias, com que nos vai sacudindo a alma:
I
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO,  21.01.20
- E, contudo, ela move-se – disse Galileu depois de ter sido obrigado a abjurar a sua teoria de que a Terra gira em volta do Sol. Abjurou, sim, mas salvou a pele.
Conta-se a história de dois amigos que foram ao funeral de um terceiro e que, convidados a proferirem palavras de encómio ao defunto, concluíram que, com a morte do amigo, à Terra restava a hipótese da implosão. E, uma vez concluídas as exéquias, um deles pergunta ao outro o que é que ele gostaria que se dissesse quando morresse. A resposta foi imediata: - Mexeu-se!
* * *
Quem nasce, vive e morre. O nascimento é uma ocorrência partilhada com a mãe; a vida é eminentemente social; a morte é o único acontecimento exclusivo, não partilhado. A morte pode ser testemunhada mas não é partilhada. Pode haver várias mortes simultâneas mas cada uma é ocorrência exclusiva.
A vida para além da morte é matéria de fé, não é chamada para este escrito.
«Eppur», se o “A bem da Nação” tiver uma certidão de óbito, isso não impedirá que, esporadicamente, se mexa numa vida para além da morte. Mas disso dará sinal.
Como assim? Limitações de um amblíope.
A ver…
Janeiro de 2020 Henrique Salles da Fonrseca
II
O Sol é Grande         
Sá de Miranda, in 'Antologia Poética'

O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’ ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

(Francisco de Vasconcelos) Fénix Renascida
Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em vesúvios incendido
Foi zéfiro suave, em doce agrado.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera
Que é rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.

À morte de F.
Esse jasmim, que arminhos desacata,
Essa aurora, que nácares aviva,
Essa fonte, que aljôfares deriva,
Essa rosa, que púrpuras desata;

Troca em cinza voraz lustrosa prata,
Brota em pranto cruel púrpura viva,
Profana em turvo pez prata nativa,
Muda em luto infeliz tersa escarlata.

Jasmim na alvura foi, na luz Aurora,
Fonte na graça, rosa no atributo,
Essa heróica deidade que em luz repousa.

Porém fora melhor que assim não fora,
Pois a ser cinza, pranto, barro e luto,
Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.

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