Três quartos de um amor
Amor aos pedaços? Que sentido tinha?
Quatro quartos, a unidade, dois num só, mas fora antes. Hoje sentia-se frustrado,
em busca do quarto que lhe escapava. Sabia que três quartos lhe pertenciam,
desse amor que se revelara paralelo ao seu próprio sentir de homem
profundamente apaixonado, mas sempre que se propunha colher a extinta plenitude
desse êxtase amoroso que os unira, a mulher, agora, imobilizava-se, o olhar
fixo, perdido no seu mundo de rejeição inexplicável, numa perda súbita de vontade,
o corpo inteiriçado, tal uma corrente eléctrica aleatoriamente interrompida, a
meio do seu percurso fulminante, por oculto interruptor propício.
Em vão se interrogava, em vão a
interrogou, a essa mulher agora escorregadia, sobre o seu estranho procedimento
de uma meiguice subitamente e sadicamente desmantelada, a mulher escapando-se-lhe,
cega, surda, muda, os traços do seu rosto subitamente e rigidamente imóveis,
mau grado essa anterior cedência, a breve trecho estranhamente interrompida.
Não, ela não chegaria a explicar o
motivo desse quarto faltoso, num amor de três quartos hoje, sadicamente quebrado,
numa ternura de repente inteiriçada, bem diversa da plenitude anterior, quatro
quartos de uma unidade amorosa de absoluta fusão anterior.
A
explicação chegou por carta, encontrada após a sua morte, na gaveta da escrevaninha
onde guardava os seus papéis. Tratara-se de uma doença terminal, subitamente
detectada por médico discreto, e que ela calara à família, e mais ainda ao
homem amado, a quem não desejava ferir antecipadamente com a notícia da sua
morte para breve. Não, ela não tinha o direito de ser feliz, amando em
liberdade e em plenitude, preferindo deixar uma imagem grossa de dona do seu
destino, propícia a uma zanga forte do seu homem, que o deixasse, pela revolta,
ainda a vir a ser feliz em plenitude, em nova vivência, que a ela já não
pertenceria.
A raiva e a revolta contra esse destino
trágico que breve a arrebataria à vida, travavam-lhe quaisquer ímpetos humanos
de uma felicidade a que não tinha direito, em breve pertencente ao nada donde
viera e que a esperava sem alternativa. Não tinha o direito de provocar bons
sentimentos ou de deixar gratas recordações, para não adensar a dor futura com
o travo da saudade. Era dona do seu destino até à consumação do seu tempo na
Terra, desejava ainda sê-lo do homem amado, favorecendo a perspectiva de um
novo relacionamento deste, sem o espectro ameaçador do mau destino que a
vitimara a ela.
Daí, a sua estranha atitude de um
repente amoroso jamais concretizado, amor despedaçado a parecer sadismo, mas a
ser, de facto, heroicidade, pela anulação de si mesma. Como uma bola de sebo
monstruosa, um quarto de si fazia desvanecer os três quartos que teimavam em
humanizá-la em distensão de ternuras, mas que se recusava subitamente a concretizar,
suspensa do seu pesadelo de vítima consciente do seu nada precocemente
irredutível.
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