O AO 90 é só mais um caso. Estranho país, este,
tão desprezador e tão subserviente – desprezador dos seus, subserviente desses
outros – e tudo isso por acefalia e perversidade. Por fraude, afinal, que nos
está no sangue.
OPINIÃO
Ressuscitou como morreu: como fraude. E
ainda há quem lhe chame vocabulário
O chamado Vocabulário Ortográfico Comum
ressuscitou como morreu: como fraude. Acusação grave? Não. Grave é que haja
quem acredite na sua utilidade e, pior, quem assim o mantenha.
PÚBLICO; 30 de Janeiro de 2020
Esteve catorze dias morto e ressuscitou
milagrosamente em quatro horas. Bastou um texto (a crónica anterior a esta) para acordar
as hostes do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), que se
apressaram a devolver à vida o chamado Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (dito VOC),
instrumento oficial do Acordo Ortográfico de 1990 (AO). Seria hipócrita
desejar-lhe bom regresso, dada a sua absoluta inutilidade, mas a ressurreição
permite voltar a um tema antigo: o VOC
ressuscitou como morreu, como fraude. Acusação grave? Não. Grave é que haja
quem acredite na sua utilidade e, pior, quem assim o mantenha.
Vamos por partes. O Acordo
Ortográfico previa um Vocabulário Ortográfico Comum que deveria conter os
vocábulos de todos os países envolvidos. Era a “unificação” tão apregoada pelos
seus arautos. Porém, em vez disso, o IILP pôs-se a coligir “vocabulários
nacionais”: Brasil, Portugal, Cabo Verde, Moçambique (que não ratificou o AO,
note-se) e Timor-Leste. Falta Angola, Guiné-Bissau (que não ratificaram) e São
Tomé e Príncipe (que ratificou). A par destes, há o Vocabulário Ortográfico
Comum da Língua Portuguesa, soma de todos. O problema é que são todos
praticamente iguais, construídos a partir de uma única base. O que até podia
ser assumido, mas não é. t):
“a (determinante),
a (preposição), aabora (f), aacheniano (m), aacheniano (a),
aal (m), aal (f), aalclim (m), aalcuabe (m),
aaleniano (a), aaleniano (m), aaleniense (a), Cada
vocabulário nacional surge com nomes diferentes, coordenadores diferentes e
edições diferentes. Um logro absoluto. Sem querer maçar os leitores, aqui ficam
as 100 primeiras palavras e as últimas 50 palavras dos vocabulários nacionais. Que são as mesmíssimas em todos eles, sem qualquer
variação. À frente da cada uma (e cada palavra, mesmo repetida, corresponde a
uma linha – ou seja, a uma entrada do VOC), vão, abreviadas, as
respectivas classificações ali descritas: adjectivo (a), advérbio (ad) substantivo
masculino (m) e feminino (f), verbo (v), nome próprio (np),
interjeição (in aaleniense (m), aaleniense (f), aalénio (m),
aalênio (a), aalense (a), aalense (m), aaná (a), aaná (m),
aaná (f), aaquenense (a), aaqueniano (a), aaqueniano (m),
aaquênio (a), aaquênio (m), aardvark (m), aardwolf (m),
aariano (a), aariano (m), aarita (f), aarite (f),
aarónico (a), aarónida (a), aarónida (m), aarónida (f),
aaronita (m), aaronita (a), aaronita (f), aaru (m),
aasto (m), ãatá (f), aavora (f), aba (m), aba (f),
ababá (m), ababá (f), ababá (a), ababadado (a),
ababadar (v), ababaia (f), ababalhado (a), ababalhar (v),
ababalho (m), ababalidade (f), ababaloalô (m), ababangai (m),
ababé (m), ababelação (f), ababelado (a), ababelador (a),
ababelante (a), ababelar (v), ababelável (a), ababil (m),
ababone (f), ababoni (m), ababosação (f), ababosado (a),
ababosador (a), ababosamento (m), ababosante (a), ababosar (v),
ababosável (a), ababroar (v), ababuá (a), ababuí (m),
abacá (m), abacado (m), abacaí (m), abaçaí (m),
abacalhoadamente (ad), abacalhoado (a), abacalhoar (v),
abacamartado (a), abaçanado (a), abaçanar (v), abacanto (m),
Abação de São Tomé (np), Abação e Gémeos (np), abacar (a),
abacar (m), abacar (f), abacaro (a), Abaças (np),
abacatada (f), abacataia (f), abacatal (m), abacate (a) e
abacate (m).”E, a fechar, todas estas: “zuraco (m), zuranti (m),
zuraque (m), zurazo (a), zurazo (m), zurbada (f),
zurca (f), zureta (m), zureta (f), zureta (a),
Zurique (np), zuriquenha (f), zuriquenho (a), zuriquenho (m),
zuriquense (m), zuriquense (f), zuriquense (a), zurpa (f),
zurpilhado (a), zurpilhar (v), zurra (f), zurrada (f),
zurrado (a), zurrador (a), zurrador (m), Zurral (np),
Zurrão (np), zurrapa (f), zurrar (v), zurraria (f),
zurre (int), zurreira (f), Zurrigueira (np), zurro (m),
zuruó (a), zurvada (f), zurvanada (f), zurza (f),
zurzidela (f), zurzido (a), zurzidor (a), zurzidor (m),
zurzidora (f), zurzidura (f), zurzir (v), zus (int),
zus-catatrus (m), zus-atatrus (int), zuzara (f) e
Zuzarte (np).” surge (naturalmente) como “aalênio”, e esta é a única
diferença; mas nos restantes países o segundo manteve-se “aalênio”; já em
“aaquênio” é a variante brasileira que surge em todos os vocabulários
nacionais, quando deveria ser grafada “aaquénio”, ao menos em Portugal. Outras
bizarrias: para encher, constam dos vocabulários todas as entradas que integram
a Toponímia (que está, aliás, num ficheiro à parte no sítio do VOC), o que dá
entradas como estas: “Abação e Gémeos”, “Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde” (novas freguesias,
resultantes da fusão de 2013) e “Zona Industrial do Porto Alto da Estrada
Nacional Cento e Dezoito” (há, pasme-se!, 85 zonas industriais assim descritas, pelo nome completo,
iguais em todos os vocabulários, apesar de serem sediadas em
Portugal – mesmo no de Timor-Leste, que até há um ano tinha apenas uma
fábrica!). Quem diz zonas industriais, diz aeroportos ou aldeamentos. Tudo serve para encher. Por exemplo, se
procuramos por “ônibus” (que surge como “ônibus” no do Brasil e “ónibus” nos
restantes), a informação nas fontes do vocabulário do Brasil é esta: “Corpus Brasileiro: alta”. Mas se um português ou um
timorense forem procurar “ónibus” nos seus vocabulários, a informação nas “fontes”
é: “Corpus Moçambicano: baixa”. Tem isto o mínimo nexo? Para a
semana há mais.
COMENTÁRIO
mzeabranches:
Um excelente trabalho, Nuno Pacheco, que só posso
agradecer. Aproveitei os 'links' e fui visitá-los. Alguns não dão acesso a
nada, por ex., no "Voc. Ort. Comum da L. Port.," procurei
"Sistematização das Regras da Escrita do Português" e ... nada. Fui
procurar as 'fontes' nos três últimos 'links' e ... nada. E fui ver no
"Voc. Ort. do Port.", no "Portal da Líng. Port.", do ILTEC,
a questão do financiamento: projecto aprovado em Junho de 2009 pelo Fundo da
Língua Portuguesa, que reúne 6 Ministérios, presidido pelo MNE, e gerido pelo
IPAD (a que não consegui aceder pelo 'link' disponível).Convém reler a Res. do
Cons. de Ministros n.º8/2011, que "adopta o Voc. Ort. do Port. (...) e o
conversor Lince (...) desenvolvidos pelo (...)(ILTEC) com financiamento público
do Fundo da Língua Portuguesa.
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