terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Expectativa


Páginas – de Teresa de Sousa - de uma análise que parece bem elaborada sobre o acto de Trump, de fazer eliminar um inimigo poderoso, sem pensar nas consequências à escala mundial. Oremus.

OPINIÃO:  O ano começa mal
Ao contrário dos neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia é a última das preocupações de Trump. O grau de imprevisibilidade que introduziu ao comportamento dos EUA no mundo é assustador.
TERESA DE SOUSA            PÚBLICO. 5 de Janeiro de 2020
1. Não se pode dizer que 2020 tenha começado da melhor maneira. Ao segundo dia, um ataque cirúrgico ordenado por Donald Trump eliminou uma das principais figuras do regime teocrático de Teerão, correndo o risco de desencadear uma escalada cujos contornos e cujo desfecho ainda desconhecemos. A eliminação de Qassem Soleimani, descrito como “o homem mais poderoso do Médio Oriente” e o segundo mais poderoso do Irão, acontece um dia após o Parlamento turco ter autorizado o Presidente Erdogan a enviar tropas para a Líbia, depois de ter enviado tropas para a Síria há pouco mais de um mês, sem que a pressão dos EUA ou da Europa o tenha dissuadido da escalada bélica que leva a cabo na sua vizinhança próxima.
O Presidente turco vai ocupando o vazio deixado pelos EUA e a eterna ausência da União Europeia, seguindo as pegadas da Rússia e do próprio Irão. Em Pyongyang, o “grande líder” anunciou o fim da moratória nuclear que negociou com o seu homólogo americano (os seus termos nunca foram muito claros) na primeira cimeira entre ambos, a 12 de Junho de 2018 em Singapura. A segunda, de Hanói, em Fevereiro de 2019, foi um fracasso e ainda se aguarda pela data da já prometida terceira. Para fazer o quê? Não se sabe, o que quer dizer que uma das “geniais” iniciativas de Trump no domínio da política externa corre o risco de se transformar num absoluto fracasso.
Do outro lado do mundo, a dimensão catastrófica e incontrolável de uma vaga de incêndios que afecta um país rico e desenvolvido como a Austrália vem alertar-nos, de novo, para as possíveis consequências das alterações climáticas e a dificuldade extrema de enfrentá-las. Mas vamos ao acontecimento que domina a actualidade, provavelmente o mais pesado de consequências para o mundo.
2. Na sua longa carreira militar, Qassem Soleimani deixou o Médio Oriente pejado de cadáveres. Finalmente, tornou-se mais um”. A frase de Julian Borger, correspondente do The Guardian em Washington, resume a história deste general iraniano que era visto como a figura mais poderosa do regime de Teerão depois do próprio ayatollah Ali Khamenei. É da sua directa responsabilidade a poderosa e mortífera rede de milícias armadas que actuam ao serviço do Irão em diversos países do Médio Oriente, do Líbano ao Iraque, passando pela Síria ou pelo Iémen. Foi ele que, em 2013, salvou in extremis o regime de Bashir al-Assad das mãos do Daesh (sunita), criando mais um dos seus muitos exércitos secretos e convencendo a Rússia a intervir.
Como lembraram a Casa Branca e o Departamento de Estado, foi o responsável directo por centenas ou milhares de mortes de soldados americanos na região, durante as duas décadas em que liderou a Al-Quds, uma mistura letal de CIA e Forças Especiais, só que ao serviço de uma ditadura de fanáticos religiosos. Trump atribui-lhe – e é verdade – a última provocação aos EUA, quando milícias xiitas pró-iranianas atacaram a embaixada americana em Bagdad no dia 27 de Dezembro. Mike Pompeo atribui-lhe a intenção de desencadear novos ataques contra alvos americanos. “Estava a planear ataques que poderiam matar centenas de americanos no Iraque, no Afeganistão ou no Líbano”, disse ao Financial Times uma fonte americana com acesso directo aos serviços secretos. A operação cirúrgica que o eliminou quando saía tranquilamente do aeroporto de Bagdad foi apresentada como “preventiva”.
3. Aos olhos da opinião pública americana, é fácil elogiar a extrema precisão do ataque e justificá-lo com o facto de Teerão ter transformado o Iraque no terreno privilegiado da sua guerra contra Washington por entrepostos actores. O ataque à embaixada foi um acto provocatório que o regime de Teerão sabia de antemão ter consequências. O mesmo aconteceu quando abateu um drone americano em Agosto do ano passado ou quando atacou petroleiros americanos no estreito de Ormuz ou, ainda, quando disparou uma salva de mísseis contra campos petrolíferos na Arábia Saudita, atingindo duramente a sua produção.
A ala radical do regime teocrático da qual Soleimani fazia parte não teria ilusões sobre uma resposta americana. Foi escalando o nível das provocações. Avaliou mal as primeiras reacções “contidas” de Washington, interpretando-as como sinal de fraqueza. Nunca esperou um ataque mortal ao “número dois” do regime. Há uma mudança de escala no ataque americano. No curto prazo, Teerão pode tirar partido da situação para contrariar o crescendo de contestação interna ao regime, que se verificou nos últimos meses e que foi brutalmente esmagado com um saldo de largas centenas de mortos e desaparecidos.
No Iraque, talvez possa silenciar a vaga de protestos contra a ingerência descarada do Irão. No médio prazo, não se pode dar ao luxo de um confronto aberto com os EUA ou mesmo com Israel ou a Arábia Saudita, mas pode continuar a executar a sua “guerra assimétrica”, a especialidade de Soleimani, atingindo os interesses americanos ou dos seus aliados muito para além das suas fronteiras. Os analistas americanos, que se dividem na avaliação da decisão do Presidente, apenas se encontram num ponto: haverá retaliação. Possivelmente sob múltiplas formas. Como, onde e quando? Na Europa? Em Israel? Ninguém tem a certeza do que virá seguir.
4. Já nos habituámos aos “caprichos” do Presidente americano, mesmo quando se trata de decisões tão pesadas de consequências como esta, e já sabemos que rareiam cada vez mais à sua volta conselheiros que possam contrariá-los. A decisão de eliminar Soleimani foi tomada em poucas horas, à margem de uma reunião de preparação da campanha para a reeleição, durante as suas férias na Florida. Havia a oportunidade. Agarrou-a com ambas as mãos. Percebem-se as razões, por mais contraditórias que possam parecer. A sombra de Obama e a obsessão de destruir metodicamente o seu legado justificam muito daquilo que faz.
Soleimani era um alvo tão ou mais apetecível que Bin Laden, capturado e eliminado pelo anterior Presidente em 2011. Trump fez questão de lembrar que o general iraniano já devia ter sido eliminado há muito. Bush e Obama tiveram essa oportunidade e ambos a recusaram, considerando que as consequências corriam o risco de anular as vantagens. As eleições aproximam se. O impeachment recomenda algumas distracções e talvez nenhuma seja melhor do que esta, que deixa os candidatos democratas numa posição difícil: não hostilizar abertamente a decisão de Trump, sem deixar de o criticar por não ter uma estratégia consequente.
A mensagem do actual Presidente é bem mais simples. Desde que, nos meses que faltam para as eleições de Novembro, não haja um grande atentado contra vidas americanas algures no mundo ou que a escalada não conduza a mais uma guerra sem fim no Médio Oriente. Trump prometeu aos eleitores acabar com as guerras sem fim da América, que diz servirem apenas os interesses dos outros.
5. Trump elegeu o Irão como o seu “inimigo principal” no Médio Oriente, no momento em que chegou à Casa Branca. Em Maio de 2018, anunciou o abandono do acordo nuclear de 2015, negociado por Barack Obama com Teerão para pôr fim ao programa nuclear iraniano com fins militares a troco do levantamento gradual das sanções. Foi um notável êxito diplomático, que contou com a assinatura da França, Reino Unido, Alemanha, Rússia e China.
Os restantes subscritores mantiveram-se fiéis ao acordo, mas, aos olhos do regime de Teerão, eram os EUA o seu verdadeiro garante. A partir daí, Washington adoptou a chamada estratégia de “pressão máxima”, sobretudo através de sanções cada vez mais duras com efeitos mais do que visíveis na economia do Irão, seguindo as pisadas da Administração Bush e da sua teoria do “quanto pior melhor”. A diferença essencial é que Bush apostava na mudança de regime, enquanto Trump não se sabe exactamente em que acredita, a não ser, eventualmente, levar o Irão a renegociar o acordo nuclear em termos que os EUA achem aceitáveis.
Ao contrário dos neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia é a última das suas preocupações. O grau de imprevisibilidade que introduziu no comportamento dos EUA no mundo é assustador. A eliminação de Soleimani é apenas mais uma prova irrefutável. Nas múltiplas análises dos think tanks e da imprensa ocidental, tentando antever os grandes acontecimentos de 2020 a que devíamos prestar atenção, não constava uma súbita mudança de escala no confronto entre os EUA e o Irão.
Dizer que o mundo avança intrepidamente em direcção ao progresso é manifestamente exagerado, mesmo que corresponda ao legítimo direito de desejar o melhor dos mundos enquanto soam as 12 badaladas da meia-noite.
COMENTÁRIOS:
Eme R: E Trump não tem cumprido nada, mas absolutamente nada, daquilo que prometeu antes de ser eleito (excepto baixar impostos para os ricos). Mas pensa que com este tipo de acções criminosas (não está em causa se o general iraniano era bom ou mau) consegue atrair o voto dos norte-americanos. O que até é possível, sabendo o grau de ignorância existente nesse país (do qual alias Trump é um expoente)...
Mas afinal o Irão, ou Soleimani, eram uma ameaça para os EUA? Obviamente que não. Mas Trump desde o início sempre tentou alienar e opor-se ao Irão. E ao que Obama tinha conseguido. Porque não passa de um lacaio de Israel e da Arábia Saudita. E, em vez de querer sair do Médio Oriente e acabar as guerras, não é a paz e a resolução de conflitos que tem promovido. Apenas tem deitado mais óleo ao fogo. Com consequências imprevisíveis para o mundo. Mas afinal é apenas um criminoso, continuando os EUA a ir contra todas as mínimas regras internacionais.
Ahfan Neca, 05.01.2020:  Diz o artigo que o acordo nuclear com o Irão foi um grande sucesso diplomático. Previa por acaso um mecanismo de fiscalização por entidade idónea e independente? Se não previa, onde está o sucesso?
fayad fayad, 05.01.2020 : . Discordo!
JonasAlmeida, 05.01.2020 : Discordo tb. TdS consistentemente equaciona qq perturbação do status quo com más notícias. O parlamento iraquiano acaba de tomar esta decisão "que se proíba a forças estrangeiras o uso de terrenos iraquianos, o seu espaço aéreo ou marítimo para qualquer fim". Ou seja, para ser o modelo Suíço só lhe falta a proibição de participar em guerras externas. Se ficarmos por aqui o começo do ano não é nada mau: um estado tampão que diminuiria em muito a perspetiva de uma guerra regional entre xiitas e sunitas, a saída do ocidente do médio oriente, e talvez mesmo a dissolução de acordos de segurança com a Turquia que não auguraram nada de bom no final de 2019.
rafael.guerra, 05.01.2020 : A auto-determinação. A vontade de auto-determinação do povo Iraquiano, é como a do povo Catalão, possível graças a forças externas, que não sabem agradecer. No primeiro caso, as dos americanos que eliminaram o regime de Saddam Hussein. No segundo caso, as das coroas de Castela, Aragão e Portugal, que expulsaram os árabes da Península Ibérica.
vinha2100, 05.01.2020: Mais uma excelente análise de Teresa de Sousa.
Julio, 05.01.2020: Hoje ainda estamos a pagar. E, caso não regressemos à civilização, continuarão a pagar gerações e gerações. A pagar crimes económicos e financeiros que todo o mundo sabe quem são os responsáveis. Estes, com o dinheiro dos seus crimes, pagam a batalhões de advogados, juízes e legisladores. Compram pseudo economistas e a imprensa. Patrocinam grupos de pensadores para moldar a opinião pública. TINA! No final passam de criminosos a vitimas. Acabam por ser compensados dos seus crimes e aumentam as suas fortunas de modo pornográfico e continuam ( ainda pior ), como antes, como se nada tivera passado, a cometer os mesmos crimes. É o regresso da humanidade à Barbárie! Na passada sexta-feira, ainda que não seja nada de novo, cometeu-se um crime. Será a primeira vez que um Chefe de Estado admite publicamente que ordenou o assassinato de um representante de outro Estado - na norma uma declaração de guerra. E ao que é que assistimos? Condenação? Repúdio? Não! Assistimos a uma completa lavagem do crime. A procura de justificar o injustificável - afinal o Estado de Direito só existe para ( e entreter o "mexilhão" ). Procura-se tornar a vitima no criminoso e pretendem transformar em realidade a ficção que os próprios criaram - afinal, o bombardeamento do Irão está decidido há duas dezenas de anos e a instauração do caos é a doutrina oficial de há muito - até sanciona os próprios aliados ( a UE ). É o regresso à Barbárie!
Sandra, 05.01.2020:  Bem haja, Júlio, pelo seu habitual bom senso.
Manuel Caetano, 05.01.2020 Cito "Foi ele (Soleimani) que, em 2013, salvou in extremis o regime de Bashir al-Assad das mãos do daesh (do estado islâmico)". Sublinho esta frase de Teresa de Sousa (uma improvável marionete do Putin) porque ela deixa claro aquilo que muitos foram repetindo neste fórum ao longo dos anos - à época a alternativa a Assad era o califa do estado islâmico e não a democracia como alguns "democratas" afirmavam a pés juntos. Chegados aqui o mais espantoso e perturbador é constatar que esses não aprenderam nadinha de nada e continuam, entusiasticamente, a debitar a cassete pseudo ideológica e a ignorar olimpicamente a realidade.
JonasAlmeida,, 05.01.2020: Concordo, estes calculismos geoestratégicos servem interesses do piorio. O Ocidente devia evitar todas as conivência políticas com regimes não democráticos. O único efeito é pôr em causa a própria sinceridade do Ocidente na defesa desses valores.
rafael.guerra, 05.01.2020: A NATO ultrapassou o estado de morte cerebral e o pato-bravo Donald cavou mais um palmo na sua sepultura (da NATO). Depois das guerras unilaterais dos EUA, assistimos agora aos caprichos do neurónio solitário e instável do seu presidente. O pior é que ele no seu "terribilismo" arrasta o mundo inteiro no seu delírio, com ameaças, chantagem e golpes por baixo da cintura, mesmo aos seus "aliados".
JonasAlmeida, 05.01.2020: A NATO devia ser dissolvida. A invasão do Iraque com falso pretexto e os actos sistemáticos de agressão geoestratégica pelos seus mais importantes 4 membros invalidam a possibilidade de reforma credível.
RO, 05.01.2020: A presenca da NATO no Iraque foi um pedido do governo Iraquiano. Não foi nenhuma invasão. Aliás coitada da NATO. Nisto tudo é a que menos interessa.
rafael.guerra: 05.01.2020: Para os neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia era a penúltima das preocupações...
PRO, 05.01.2020: Óptima análise como sempre.

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