Páginas – de Teresa de Sousa - de uma análise que parece bem elaborada sobre o
acto de Trump, de fazer eliminar um inimigo poderoso, sem pensar nas consequências
à escala mundial. Oremus.
OPINIÃO: O ano começa mal
Ao contrário dos neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia é a
última das preocupações de Trump. O grau de imprevisibilidade que introduziu ao
comportamento dos EUA no mundo é assustador.
TERESA DE SOUSA PÚBLICO.
5 de Janeiro de 2020
1. Não se pode dizer
que 2020 tenha começado da melhor maneira. Ao segundo dia, um ataque cirúrgico ordenado por Donald Trump eliminou uma
das principais figuras do regime teocrático de Teerão, correndo o risco de
desencadear uma escalada cujos contornos e cujo desfecho ainda desconhecemos.
A eliminação de Qassem
Soleimani, descrito como “o
homem mais poderoso do Médio Oriente” e o segundo mais poderoso do Irão,
acontece um dia após o Parlamento turco ter autorizado o Presidente
Erdogan a enviar tropas
para a Líbia, depois de ter enviado tropas para a Síria há pouco mais de um
mês, sem que a pressão dos EUA ou da Europa o tenha dissuadido da escalada
bélica que leva a cabo na sua vizinhança próxima.
O Presidente turco vai ocupando o vazio deixado pelos EUA e a eterna
ausência da União Europeia, seguindo as pegadas da Rússia
e do próprio Irão. Em Pyongyang, o “grande líder” anunciou o fim da
moratória nuclear que negociou com o seu homólogo americano (os seus termos
nunca foram muito claros) na primeira cimeira entre ambos, a 12 de Junho
de 2018 em Singapura. A
segunda, de Hanói, em Fevereiro de 2019, foi um fracasso e ainda se aguarda
pela data da já prometida terceira. Para fazer o quê? Não se sabe, o que quer
dizer que uma das “geniais” iniciativas de Trump no domínio da política externa
corre o risco de se transformar num absoluto fracasso.
Do outro lado do mundo, a dimensão catastrófica e incontrolável de uma
vaga de incêndios que afecta um país rico e desenvolvido como a Austrália vem
alertar-nos, de novo, para as possíveis consequências das alterações climáticas
e a dificuldade extrema de enfrentá-las. Mas vamos ao acontecimento que domina a actualidade,
provavelmente o mais pesado de consequências para o mundo.
2.
“Na sua longa carreira militar, Qassem Soleimani deixou o Médio Oriente pejado de cadáveres. Finalmente, tornou-se mais um”. A frase de Julian Borger, correspondente do The Guardian em Washington, resume
a história deste general iraniano que era visto como a figura mais poderosa do
regime de Teerão depois do próprio ayatollah Ali Khamenei. É da sua directa responsabilidade a poderosa e
mortífera rede de milícias armadas que actuam ao serviço do Irão em diversos
países do Médio Oriente, do Líbano ao Iraque, passando pela Síria ou pelo Iémen. Foi ele que, em 2013, salvou in extremis o regime de
Bashir al-Assad das mãos do Daesh (sunita), criando mais um dos seus muitos exércitos secretos e
convencendo a Rússia a intervir.
Como lembraram a Casa Branca e o Departamento de Estado, foi o responsável directo por centenas ou
milhares de mortes de soldados americanos na região, durante as duas décadas em
que liderou a Al-Quds, uma mistura letal de CIA e Forças Especiais, só que ao
serviço de uma ditadura de fanáticos religiosos. Trump atribui-lhe –
e é verdade – a última provocação aos EUA, quando milícias xiitas
pró-iranianas atacaram a embaixada americana em
Bagdad no dia 27 de Dezembro. Mike Pompeo atribui-lhe
a intenção de desencadear novos ataques contra alvos americanos. “Estava a
planear ataques que poderiam matar centenas de americanos no Iraque, no
Afeganistão ou no Líbano”, disse ao Financial Times uma fonte
americana com acesso directo aos serviços secretos. A operação cirúrgica que o
eliminou quando saía tranquilamente do aeroporto de Bagdad foi apresentada como
“preventiva”.
3. Aos olhos da opinião
pública americana, é fácil elogiar a extrema precisão do ataque e
justificá-lo com o facto de Teerão ter transformado o Iraque no terreno
privilegiado da sua guerra contra Washington por entrepostos actores. O ataque
à embaixada foi um acto provocatório que o regime de Teerão sabia de antemão
ter consequências. O mesmo aconteceu quando abateu um drone americano
em Agosto do ano passado ou quando atacou petroleiros americanos no estreito de
Ormuz ou, ainda, quando disparou uma salva de mísseis contra campos
petrolíferos na Arábia Saudita, atingindo duramente a sua produção.
A ala radical do regime teocrático da qual Soleimani
fazia parte não teria ilusões sobre uma resposta americana. Foi escalando o
nível das provocações. Avaliou mal as primeiras reacções “contidas” de
Washington, interpretando-as como sinal de fraqueza. Nunca esperou um ataque
mortal ao “número dois” do regime. Há uma mudança de escala no
ataque americano. No curto prazo, Teerão pode tirar partido da
situação para contrariar o crescendo de contestação interna ao regime, que se
verificou nos últimos meses e que foi brutalmente esmagado com um saldo de
largas centenas de mortos e desaparecidos.
No Iraque, talvez possa silenciar a vaga de protestos contra a
ingerência descarada do Irão. No
médio prazo, não se pode dar ao luxo de um confronto aberto com os EUA ou mesmo
com Israel ou a Arábia Saudita, mas pode continuar a executar a sua “guerra
assimétrica”, a especialidade de Soleimani, atingindo os interesses
americanos ou dos seus aliados muito para além das suas
fronteiras. Os analistas americanos, que se dividem na avaliação da decisão do
Presidente, apenas se encontram num ponto: haverá retaliação. Possivelmente sob
múltiplas formas. Como, onde e quando? Na Europa? Em Israel? Ninguém tem a
certeza do que virá seguir.
4. Já nos
habituámos aos “caprichos” do Presidente americano, mesmo quando se trata de
decisões tão pesadas de consequências como esta, e já sabemos que rareiam cada
vez mais à sua volta conselheiros que possam contrariá-los. A decisão de
eliminar Soleimani foi tomada em poucas horas, à margem de uma reunião de
preparação da campanha para a reeleição, durante as suas férias na Florida.
Havia a oportunidade. Agarrou-a com ambas as mãos. Percebem-se as razões, por
mais contraditórias que possam parecer. A sombra de Obama e a
obsessão de destruir metodicamente o seu legado justificam muito daquilo que faz.
Soleimani era um alvo tão ou mais apetecível que Bin
Laden, capturado e eliminado pelo anterior Presidente em 2011. Trump fez questão de lembrar que o general
iraniano já devia ter sido eliminado há muito. Bush e Obama tiveram essa
oportunidade e ambos a recusaram, considerando que as consequências corriam o
risco de anular as vantagens. As eleições aproximam se. O impeachment recomenda algumas
distracções e talvez nenhuma seja melhor do que esta, que deixa os candidatos
democratas numa posição difícil: não hostilizar abertamente a decisão de Trump,
sem deixar de o criticar por não ter uma estratégia consequente.
A mensagem do actual Presidente é bem mais simples. Desde que, nos
meses que faltam para as eleições de Novembro, não haja um grande atentado
contra vidas americanas algures no mundo ou que a escalada não conduza a mais
uma guerra sem fim no Médio Oriente. Trump prometeu aos eleitores acabar com
as guerras sem fim da América, que diz servirem apenas os interesses dos outros.
5. Trump elegeu o Irão como o seu “inimigo principal” no
Médio Oriente, no momento em que chegou à Casa Branca. Em
Maio de 2018, anunciou o abandono do acordo nuclear de 2015, negociado por
Barack Obama com Teerão para pôr fim ao programa nuclear iraniano com fins
militares a troco do levantamento gradual das sanções. Foi um notável êxito
diplomático, que contou com a assinatura da França, Reino Unido, Alemanha,
Rússia e China.
Os restantes subscritores mantiveram-se fiéis ao acordo, mas, aos olhos
do regime de Teerão, eram os EUA o seu verdadeiro garante. A partir daí,
Washington adoptou a chamada estratégia de “pressão máxima”, sobretudo através de
sanções cada vez mais duras com efeitos mais do que visíveis na
economia do Irão, seguindo as pisadas da Administração Bush e da sua teoria do
“quanto pior melhor”. A
diferença essencial é que Bush apostava na mudança de regime, enquanto Trump
não se sabe exactamente em que acredita, a não ser, eventualmente, levar o Irão
a renegociar o acordo nuclear em termos que os EUA achem aceitáveis.
Ao contrário dos neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia é a
última das suas preocupações. O grau de imprevisibilidade que introduziu no
comportamento dos EUA no mundo é assustador. A eliminação de Soleimani é apenas
mais uma prova irrefutável. Nas múltiplas análises dos think tanks e
da imprensa ocidental, tentando antever os grandes acontecimentos de 2020 a que
devíamos prestar atenção, não constava uma súbita mudança de escala no
confronto entre os EUA e o Irão.
Dizer que o mundo avança intrepidamente em direcção ao
progresso é manifestamente exagerado, mesmo que corresponda ao legítimo direito de desejar
o melhor dos mundos enquanto soam as 12 badaladas da meia-noite.
COMENTÁRIOS:
Eme R: E Trump não tem cumprido nada, mas
absolutamente nada, daquilo que prometeu antes de ser eleito (excepto baixar
impostos para os ricos). Mas pensa que com este tipo de acções criminosas
(não está em causa se o general iraniano era bom ou mau) consegue atrair o voto
dos norte-americanos. O que até é possível, sabendo o grau de ignorância
existente nesse país (do qual alias Trump é um expoente)...
Mas afinal o Irão, ou Soleimani, eram uma
ameaça para os EUA? Obviamente que não. Mas Trump desde o início sempre tentou
alienar e opor-se ao Irão. E ao que Obama tinha conseguido. Porque não passa de um lacaio de
Israel e da Arábia Saudita. E, em vez de querer sair do Médio Oriente e acabar
as guerras, não é a paz e a resolução de conflitos que tem promovido. Apenas
tem deitado mais óleo ao fogo. Com consequências imprevisíveis para o mundo.
Mas afinal é apenas um criminoso, continuando os EUA a ir contra todas as
mínimas regras internacionais.
Ahfan
Neca, 05.01.2020: Diz o artigo que o acordo nuclear com o
Irão foi um grande sucesso diplomático. Previa por acaso um mecanismo de
fiscalização por entidade idónea e independente? Se não previa, onde está o
sucesso?
JonasAlmeida, 05.01.2020 : Discordo tb. TdS consistentemente
equaciona qq perturbação do status quo com más notícias. O parlamento iraquiano
acaba de tomar esta decisão "que se proíba a forças estrangeiras o uso de
terrenos iraquianos, o seu espaço aéreo ou marítimo para qualquer fim". Ou
seja, para ser o modelo Suíço só lhe falta a proibição de participar em guerras
externas. Se ficarmos por aqui o começo do ano não é nada mau: um estado
tampão que diminuiria em muito a perspetiva de uma guerra regional entre xiitas
e sunitas, a saída do ocidente do médio oriente, e talvez mesmo a dissolução de
acordos de segurança com a Turquia que não auguraram nada de bom no final de
2019.
rafael.guerra, 05.01.2020 : A auto-determinação. A vontade de
auto-determinação do povo Iraquiano, é como a do povo Catalão, possível graças
a forças externas, que não sabem agradecer. No primeiro caso, as dos americanos
que eliminaram o regime de Saddam Hussein. No segundo caso, as das coroas de
Castela, Aragão e Portugal, que expulsaram os árabes da Península Ibérica.
Julio, 05.01.2020: Hoje ainda estamos a pagar. E, caso não
regressemos à civilização, continuarão a pagar gerações e gerações. A pagar
crimes económicos e financeiros que todo o mundo sabe quem são os responsáveis.
Estes, com o dinheiro dos seus crimes, pagam a batalhões de advogados, juízes e
legisladores. Compram pseudo economistas e a imprensa. Patrocinam grupos de pensadores
para moldar a opinião pública. TINA! No final passam de criminosos a vitimas.
Acabam por ser compensados dos seus crimes e aumentam as suas fortunas de modo
pornográfico e continuam ( ainda pior ), como antes, como se nada tivera
passado, a cometer os mesmos crimes. É o regresso da humanidade à Barbárie! Na
passada sexta-feira, ainda que não seja nada de novo, cometeu-se um crime. Será
a primeira vez que um Chefe de Estado admite publicamente que ordenou o
assassinato de um representante de outro Estado - na norma uma declaração de
guerra. E ao que é que assistimos? Condenação? Repúdio? Não! Assistimos a uma
completa lavagem do crime. A procura de justificar o injustificável - afinal
o Estado de Direito só existe para ( e entreter o "mexilhão" ). Procura-se
tornar a vitima no criminoso e pretendem transformar em realidade a ficção que
os próprios criaram - afinal, o bombardeamento do Irão está decidido há duas
dezenas de anos e a instauração do caos é a doutrina oficial de há muito - até
sanciona os próprios aliados ( a UE ). É o regresso à Barbárie!
Sandra, 05.01.2020: Bem
haja, Júlio, pelo seu habitual bom senso.
Manuel Caetano, 05.01.2020 Cito "Foi ele (Soleimani) que, em
2013, salvou in extremis o regime de Bashir al-Assad das mãos do daesh (do
estado islâmico)". Sublinho esta frase de Teresa de Sousa (uma
improvável marionete do Putin) porque ela deixa claro aquilo que muitos foram
repetindo neste fórum ao longo dos anos - à época a alternativa a Assad era o
califa do estado islâmico e não a democracia como alguns "democratas"
afirmavam a pés juntos. Chegados aqui o mais espantoso e perturbador é
constatar que esses não aprenderam nadinha de nada e continuam,
entusiasticamente, a debitar a cassete pseudo ideológica e a ignorar
olimpicamente a realidade.
JonasAlmeida,,
05.01.2020: Concordo,
estes calculismos geoestratégicos servem interesses do piorio. O Ocidente devia
evitar todas as conivência políticas com regimes não democráticos. O único
efeito é pôr em causa a própria sinceridade do Ocidente na defesa desses
valores.
rafael.guerra, 05.01.2020: A NATO ultrapassou o estado de morte
cerebral e o pato-bravo Donald cavou mais um palmo na sua sepultura (da NATO).
Depois das guerras unilaterais dos EUA, assistimos agora aos caprichos do
neurónio solitário e instável do seu presidente. O pior é que ele no seu
"terribilismo" arrasta o mundo inteiro no seu delírio, com ameaças,
chantagem e golpes por baixo da cintura, mesmo aos seus "aliados".
JonasAlmeida, 05.01.2020: A NATO devia ser dissolvida. A invasão do
Iraque com falso pretexto e os actos sistemáticos de agressão geoestratégica
pelos seus mais importantes 4 membros invalidam a possibilidade de reforma
credível.
RO,
05.01.2020: A presenca da
NATO no Iraque foi um pedido do governo Iraquiano. Não foi nenhuma invasão. Aliás
coitada da NATO. Nisto tudo é a que menos interessa.
rafael.guerra:
05.01.2020: Para os
neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia era a penúltima das
preocupações...
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