Este texto de Paulo Rangel sobre a arrumação da casa e dos
respectivos papéis, lá pelo PE, fez-me
lembrar, sem qualquer intenção crítica, o final da farsa de Inês Pereira, em que ela vai às costas do manso Pêro Marques, ter
com o “ermitaño”, em romaria “de amor”, ambos cantando:
INÊS
«Marido cuco me levades E mais duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
«Pois assi se fazem as cousas.»
Cantemos, como Pêro Marques:
“Pois assi se fazem as cousas”.
Quanto às lousas, para as talhas, cada um que carregue
a sua, segundo desígnio do PE.
OPINIÃO
A conferência sobre o futuro da Europa:
em prol da democracia representativa!
É preciso religar os circuitos de
decisão aos cidadãos, mas em caso algum deve ser posta em perigo a democracia
representativa. Ela é a garantia da nossa liberdade.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 21 de Janeiro de 2020
1.
Na passada quarta-feira, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que estabelece a respectiva
posição a propósito da conferência sobre o Futuro da Europa. A finalidade
da conferência é propiciar um grande debate sobre os assuntos europeus que
envolva os cidadãos em todos os cantos da União, que dinamize a discussão na
sociedade civil e na academia, que promova a criação de uma verdadeira opinião
pública europeia, de uma esfera pública europeia. A ideia da conferência
está em linha com iniciativas já prosseguidas pela Comissão e pelo PE e também por Estados-membros, cujos
exemplos principais são as citizens’ assemblies irlandesas (no
contexto dos recentes referendos sobre o aborto e o casamento entre pessoas do
mesmo sexo) e os grandes debates do Presidente Macron
(propiciados pela crise dos “coletes amarelos”). A aspiração de um forte
envolvimento dos cidadãos e dos corpos da sociedade civil está em sintonia com
o “ar do tempo” e procura dar resposta ao clamor de um afastamento e alheamento
dos cidadãos relativamente à vida política e, em particular, à “Europa”. Vai ao
encontro dos apelos à democracia participativa e ao movimento, hoje muito em
voga, do reforço da democracia deliberativa. De algum modo,
pretende ainda ser uma vacina contra a avalanche populista e a sua perigosa
luta pela “democracia directa”. Em suma,
visa aproximar os cidadãos das instâncias de decisão política e promover a
comunicação entre essas instâncias e o eleitorado.
2.
Em termos práticos, a conferência – que tem como nota distintiva o
envolvimento efectivo dos cidadãos – terá de ser organizada pelas três
instituições “representativas” dos cidadãos europeus, a saber o PE, a
Comissão e o Conselho. A posição
que foi aprovada na semana passada é ainda e só a posição do PE e, portanto,
reflecte tão-somente a sua visão. Falta conhecer a proposta da Comissão, que
deverá ser divulgada já amanhã, e a proposta do Conselho Europeu, que deverá
aparecer a 28 de Janeiro. Enquanto a Comissão se deve voltar mais para as
dinâmicas da sociedade civil e para pôr em rede muitos dos instrumentos
existentes, o Conselho mostra-se claramente mais relutante. Só depois de
conhecidas as três posições, se iniciará a negociação para chegar a uma posição
comum, que será vertida numa “declaração conjunta”. Para já, só podemos
então ter em conta a proposta aprovada pelo PE, na qual tenho vindo a trabalhar
intensamente nos últimos quatro meses em nome do grupo parlamentar do PPE.
3. A
proposta do PE divide o processo da conferência em dois pilares
fundamentais, um de natureza cidadã e outro de natureza institucional,
estabelecendo estreitos canais de comunicação entre eles. Assim, no braço
institucional, haverá um plenário da conferência constituído unicamente por
membros das instituições da UE e dos parlamentos e governos nacionais. Será
esta a instância deliberativa, que reunirá uma vez por trimestre, ao longo de
dois anos. Por outro lado, no braço cidadão, está prevista a organização de
oito convenções de cidadãos, duas das quais exclusivamente para jovens entre os
16 e os 25 anos, a que foi dado o nome clássico de “ágoras”. Cada ágora
será composta por um número mínimo de 200 e máximo de 300 cidadãos,
provenientes dos 27 Estados-membros, segundo um critério de proporcionalidade
degressiva. Deve estar garantida uma rigorosa igualdade de género e uma
representação tendencial do espectro sócio-cultural de cada Estado-membro.
O modo como devem ser seleccionados os cidadãos que participarão em cada ágora
e como podem preencher aqueles apertados critérios não está concretizado (alguns
defendem a selecção por sorteio). O critério de representação de estratos
sócio-culturais afigura-se problemático não apenas por dificuldades práticas,
mas também porque remete para uma visão “corporativa”, “classista” ou
“estamental” da representação. Cada uma das ágoras terá, por conseguinte, a
sua própria composição e a sua própria sede numa diferente cidade europeia,
devendo reunir pelo menos duas vezes.
4.
Cada uma das ágoras tratará de um ou dois temas da agenda que for definida para
a Conferência, sendo que esses temas serão fixados pelo pilar institucional
(o dito plenário), mas podem ser modificados por cada uma das ágoras. Do
debate que as convenções de cidadãos fizerem hão-de resultar conclusões, com
propostas e sugestões, que serão depois levadas a uma das reuniões trimestrais
do Plenário e que aí darão origem a novo debate e à adopção de conclusões
“vinculativas”. Das deliberações do Plenário, haverá depois mecanismos de
reporte e feedback à respectiva ágora. Neste processo de vaivém, está
absolutamente garantido que a consulta e a participação dos cidadãos será mesmo
isso e só isso: auscultação e prestação de contas. Na verdade, um dos
debates fracturantes na definição da posição do PE foi exactamente o de saber
se se deveria atribuir (ou não) poder deliberativo às ágoras, às convenções de
cidadãos. É evidente que não! Numa democracia que se queira representativa,
o envolvimento e participação dos cidadãos, por mais estimulado e
estimulante que seja, não pode substituir os mecanismos de representação
política, criando legitimidades paralelas e alternativas. Uma coisa é
aumentar significativamente o grau de intervenção política dos cidadãos, da
sociedade civil e dos corpos intermédios, outra coisa é a atribuição do poder
de deliberação a essas entidades. A vertigem da democracia directa – que
desagua sempre naquilo a que Montesquieu chamava a “tirania de todos” – é o
maior risco constitucional do nosso tempo.
5. Mesmo, tendo
apenas diante dos olhos a posição do PE, muito mais haveria e há a dizer sobre
a Conferência. Mas para já, e para início de conversa, que fique
inequivocamente registado: é preciso religar os circuitos de decisão aos
cidadãos, mas em caso algum deve ser posta em perigo a democracia
representativa. Ela é a garantia da nossa liberdade.
SIM. Rui Rio. Acaba de ser reeleito presidente
do PSD, a despeito dos prognósticos oficiosos. Segue-se o desafio autárquico,
presidencial e de construção da alternativa forte e credível ao PS e à
“geringonça”.
NÃO.
Escândalo Luanda Leaks.
É impressionante como em Portugal continua a haver uma tão grande tolerância
para com os sinais e os fumos de corrupção. Às vezes, nem com provas se vai lá.
Colunista
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