Uma crónica de Maria
João Avillez, impecável de plasticidade literária e de sagacidade crítica cordial.
Copacabana, zero horas,
dia primeiro, vinte/vinte /premium
Vive-se uma trégua de
brilho, um radiante entre parêntesis, e mesmo se encaixada entre a divisão e a
incerteza, uma inexplicável harmonia. Hoje é dia de todos. Deus talvez seja brasileiro.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 08 jan 2020
1Copacabana, zero horas, dia primeiro, 2020. Pronto.
E agora? Continuar como, se o “dia primeiro” não cabe em adjectivo algum e se
tudo o que o envolve mal se encaixa nas palavras? Como, se o vivido aqui no
Rio de Janeiro, na “virada” do ano, está a anos luz do seu gasto cliché ou de
qualquer exuberante, coloridíssimo bilhete postal? Era aliás tão grande o
peso do cliché, a preguiça das multidões, a fama – e proveito – da insegurança
carioca que a tentação era longínqua. Até que um dia – e é assim que começam
algumas boas histórias, assim quando a vida introduz o súbito toque da
“diferença” no andar dos dias – o convite para atravessar o oceano se
transfigurou de repente num gesto irrecusável, varrendo o resto para um canto. E
ainda bem, tão gerador de surpresa tudo foi. E inesperado, e forte.
2Nunca se sublinhará
suficientemente aliás, a abissal diferença entre o que regula o “ouvir
dizer” e o que regista o presencial. Nem televisão alguma substituirá,
percebi-o agora, a presença ao vivo e in loco, no palco principal da passagem
do ano: magnânimos oito/nove quilómetros de areia, debruados pela Avenida
Atlântica, de um lado, pelo mar, do outro. Uma branca mancha de milhões
de pessoas que põem a vida e as suas dissidências entre parêntesis para
exuberantemente acolher o novo ano. Festa branca na areia, nas casas, nas
varandas, nas ruas. Festa das festas, mais que o carnaval, espartilhado pelas
escolas de samba, onde só alguns desfilam e os outros assistem. Aqui na praia
desaguou um Rio num fluxo continuo e continuamente participado. Rio universal.
Alegria deslizante, genuína, transversal, interclassista. Está “todo o mundo”
na praia –e está mesmo –mas nesse mundo não havia desiguais, nem desiguais direitos.
E se a harmonia for breve e amanhã houver de novo muros e fracturas, hoje é dia
de todos, louve-se Imanjá. Ver para crer ou o Brasil – este, o da “cidade
maravilhosa” – exposto no areal. Doce, vital, versátil. Livre. Se eu não tivesse visto não acreditava.
3Havia aliás mais
coisas para não acreditar, a “virada” foi um longo galope de surpresas. Começou
ainda era dia, com ondas de gente – quantas gerações ali estavam? – em chegada
lenta á praia. Carinhos de bebé, mala de comes e bebes, banquinhos, risos.
Caída a tarde veio outra luz, com a noite a chegar de mansinho e depois a
abrir, como algumas flores: o reflexo brilhante do mar de Copacabana, no
espelho liso da suas águas; os mil pontos cintilantes dos grandes navios de
passageiros parados em concha frente à praia; a forte iluminação pública na
areia, as esplanadas engalanadas de luz na Avenida; o fulgor dos enfeites
saídos dos vários palcos, o luminoso crepitar do fogo de artificio. Nove
minutos, uma eternidade colorida.
Cantando e dançando no areal, gargalhando e namorando,
movendo-se de um lado para outro, bebendo de roda dos quiosques, petiscando em
circulo familiar nos passeios da avenida, em cadeirinhas levadas de casa, a
mala do piquenique ali ao pé, não se podia tirar os olhos daquela felicidade.
E depois… para quem deste lado do Atlântico quase só
houve falar de “insegurança” e “bandidos” –reais, ambos, hélas – a surpresa de
uma das mais bem concertadas operações de segurança a que, num pasmo emudecido,
assisti durante horas a fio: a cidade guardada e Copacabana, guardadíssima.
Carros de polícia estacionados ao longo da imensa avenida, encimados por luzes
que embora sem ruído nem aparato, nunca pararam de girar. Ambulâncias, postos
de primeiros socorros, carros de reboque para viaturas desobedientes,
camionetes do lixo, numa encenação da ordem que logrou o duplo milagre de nos
parecer, no Rio de Janeiro e na noite mais “difícil “ do ano, tão credível
quanto confiável. Deixo
um exemplo porque ele é irresistível: como a circulação fica vedada em muitas
artérias, ou se vai a pé para Copacabana, ou de metro. Um, dois, três milhões
de pessoas de metro? Isso (embora a ideia me tivesse pré-apavorado). O segredo
– um ovo de Colombo – é que se circula apenas dentro dos horários estipulados
em bilhetes pré-comprados, de onde resultam automaticamente consideráveis doses
de disciplina e escalonamento no fluxo dos milhares de passageiros. Á porta das
estações de metropolitano e dentro dele, em corredores, escadas rolantes e
carruagens, testemunhei dezenas de funcionários do próprio metro e de novo,
policia. A pergunta –a minha – mantém –se porém sem resposta: quem deste lado
do Atlântico, a Europa dita civilizada e antiga, apostaria que um “prefeito”
que aliás não se recomenda (Crivelli) e que a capital de um Estado semi-falido
(Rio de Janeiro), eram tão capazes desta assunção de responsabilidade pública?
Ninguém.
É certo que a “prefeitura (câmara municipal) não podia
correr riscos face a uma soma de turistas que há seis anos não era tão elevada.
E é ainda mais certo que a passagem do ano é noite de códigos: o banditismo dá
folga , o roubo fica a cargo de adolescentes (“pivetes” ) inexperientes, a
força da “virada” e a participação nos seus rituais levam a melhor sobre usos e
costumes. Vive-se uma trégua de brilho, um radiante entre parêntesis, e mesmo
se encaixada entre a divisão e a incerteza, uma inexplicável harmonia, Deus
talvez seja brasileiro. De um magnífico nono andar da Avenida Atlântica,
olhando cá para baixo, absorta e por um breve instante mesmo um pouco
melancólica, também me pareceu que hoje, devia ser.
4A melancolia tinha boa razão de ser. Do mesmo modo que a harmonia
que envolve a praia de Copacabana tingindo corpos e almas é dificilmente
repetível, e se esfumará, levada pela realidade das coisas neste país dividido,
também me apercebo da quase total irrealidade do entre parêntesis que aqui
vivi: no país, no continente, na civilização de onde sou também deixou de haver
folgas na inquietação e intervalos na incerteza. Escuso de evocar, a lista é grande
e perigosa, sabemo-la de cor. Vai ser preciso aprender a viver os dias como um
destino.
5Mal cheguei ao
Rio logo ouvi na alfândega, “ah, portuguesa? Então deixa eu te agradecer o
Jesus…”. No táxi para a cidade o mesmo, nos dias seguintes, também. A cada
passo, em cada esquina, nos botecos, na praia, na rua. “Viu que a cidade
agraciou ele?” Um ídolo sem contraditório. Dois mil e dezanove foi “o ano do
Mister”. Segundo os jornais, “o melhor de 2019 movimenta mercado de técnicos”.
Poder é isto. Um herói de hoje Jorge Jesus.
6Bolsonaro é um produto indefinível. (Se eu estivesse por perto
dir-lhe-ia para ele se calar e açaimar os filhos mas infelizmente não estou).
Chamá-lo de “primário” ou “básico” ou “analfabeto cultural” sendo verdade, só
comove alguns e ficará sempre aquém ou além. Dizer que divide é modesto e
também não esclarece tudo. O personagem constrange, envergonha, ou maravilha
mas o Brasil “está andando”. Metade é aquele optimismo genético (“Deus é brasileiro”) mas a
outra são alguns números tornados credíveis no mapa da economia, liderada por Paulo Guedes, um indiscutível team líder e “o” indiscutível homem
do governo. Não há porém grande alarido, antes um certo comedimento e prova
disso são os recentes artigos e intervenções de responsáveis económicos onde é
maior o alerta para a necessidade voraz de reformas e da manutenção de uma
certa “ortodoxia” financeira do que a congratulação com o caminho – curto –
entretanto andado( no desemprego, no crescimento, investimento). A maior vitória foi aprovação, em 2019, da Reforma
da Previdência, há décadas num impasse; a maior derrota o estado de indigência
da Cultura e da Educação. Na calha estão duas outras reformas cruciais e por
isso “ incendiárias”, a Fiscal e a da Função Pública, previstas para avançar
neste vinte/vinte: avançarão? Enquanto isto, Jair Bolsonaro atormenta –se com a
temível questão dos 5G que terá de gerir e decidir: China ou Estados Unidos? Agradar a quem,
desagradar a qual?
7Ou muito me
engano ou Lula da
Silva, mesmo que
apenas por interposto candidato, não terá um papel por aí além nas próximas
eleições: na prisão era um “mártir” sacrificado pelo juiz Moro. E imolado no altar da injustiça. Cá fora,
banalizou-se. Pensava-se que o seu regresso à rua e à vida fora de grades
fornecesse oxigénio a uma oposição desbotada, mas não. De momento não. Não fora
o tom ostensivo e desabrido – demencial, por vezes – de alguma media e cadê
oposição? No PT, nas suas imediações? Noutras? Oposição com substância,
vitalidade, força?
8Nunca comecei um
ano a interrogar-me em que local deste vasto mundo é que ele possa ser esperado
sem sobressalto. Sem temor. Sem dúvida. Em nenhum, não é?
COMENTÁRIOS
Gabriel Moreira: Há por aqui um marmanjo que
ainda não compreendeu que às vezes é preciso investir uns milhões para ter um
lucro de centenas de milhões. Outros,
pertencentes ao comité soviético cá do bairro arrepelam-se contra o escrito de
uma burguesa. Não há pachorra ! (...)
Miguel Bergano: Uma grande pobreza do nosso
País é a falta de Mundo de quase todos os portugueses... aprende-se muito de
Portugal quando se está noutro País.
Gil A: Muito bom, muito bem vista essa
realidade, carioca e brasileira.
Maria L Gingeira: Realmente o Brasil é tão grande
tão diverso e tão humanamente surpreendente que me inquieta a leviandade com
que em Portugal se fala da sua realidade. Temos muito a aprender com o Brasil
principalmente na forma aberta como os problemas são debatidos, e também na
excelência da comunicação e das relações humanas.
Domingas Coutinho: O importante é a alienação. Por
cá estamos quase assim. Veja-se os milhões gastos no Natal num País pobre. Um
dia de cada vez né? Parabéns MJA e obrigada pela narrativa que me transportou
para o Rio de Janeiro. Excelente!
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