A Internet mostra imagens das esculturas de Pedro Cabrita
Reis. Parece que se tem especializado
nos picos verticais que se erguem aos céus - em diferentes tamanhos, estes de Leça
da Palmeira, a significar a “linha do
Mar” em branco, talvez por via da espuma. Foram muitos os textos sobre um
assunto que nos incrimina como pategos, o de Alberto Gonçalves arrasador como sempre, na verrina, os de João
Miguel Tavares explícitos e sensatos
e com humor qb, o do editorialista Manuel Carvalho tendencioso como lhe compete, puxando a brasa à sua
sardinha, o de Paulo Tunhas
impecável de eficácia e saber. Também se pronunciaram comentadores, de que só
expus os argumentos de alguns, escandalizados, com a tal arte e os mecenas que
a apoiam.
I - O sr. Cabrita Reis e
os verdadeiros artistas /premium
Achar que um produto é “arte” porque três patetas o dizem ou porque se
encontra exposto na Tate Modern é uma confissão comovente de insegurança, de
ignorância e de discutível equilíbrio mental.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador OBSERVADOR, 03 jan 2020
Nasci em Matosinhos e vivi sempre em Matosinhos, nas últimas décadas
perto das praias de Leça da Palmeira. Passo ali todos os dias e, apesar do
farol da Boa Nova, de uma ETAR encantadora e da ocasional cabeça decepada,
tinha a sensação permanente de que a paisagem estava incompleta. Faltava,
parecia-me, uma obra escultórica arrojada, talvez umas ferragens pintadas de
branco e pousadas verticalmente no passeio, alinhadas de modo a que, se
cerrássemos muito os olhos ou padecêssemos de uma miopia próxima da cegueira,
julgaríamos estar em Manhattan. Já não falta.
Atenta, a câmara local encomendou, por justificável ajuste directo, a
obra em causa ao celebrado artista Pedro Cabrita Reis. O sr. Cabrita Reis, vulto anafado que costuma depositar tralha por vários
chãos e que teve exposições chamadas “Um Olhar Inquieto” e “Da Luz e do Espaço” (juro), aceitou a encomenda. Melhor ainda, fê-lo a
título praticamente gratuito, cobrando apenas o valor simbólico de 300 mil
euros, fora 50 mil pelo transporte e instalação. E a câmara, leia-se o
munícipe a quem a câmara simpaticamente confisca rendimentos, pagou. Como
tudo isto se rege pela absoluta legalidade, não pagou ao sr. Cabrita Reis, mas
à Armazém 10, empresa detida pelo sr. Cabrita Reis, por familiares do sr.
Cabrita Reis, pelo comentador televisivo António Lobo Xavier e por mais uns
portentos avulsos. Em meados de Dezembro, foi inaugurada a “Linha de Mar”, o
belíssimo nome das ferragens descarregadas em Leça. Nos finais de Dezembro, a
“Linha de Mar” foi vandalizada.
Pela calada da noite (ou do dia, não sei), indivíduos sem escrúpulos
nem sensibilidade pintaram nas ferragens as palavras “vergonha”, “os nossos
impostos”, “política de merda” e “300 mil euros”. Domingo último, o país
acordou chocado, metade pelo acto delinquente, metade pelos preços que os
serralheiros praticam hoje em dia. A autarca local, que sinceramente não sei
quem é, assinou no Facebook um texto em que defende a “responsabilidade do
Estado” no “acesso da classe média e baixa” [sic] à “cultura”. O sr.
Cabrita Reis, homem de esquerda, fez uma pausa na contagem das notas subtraídas à ralé para afirmar ao
“Público” que o ataque ao “conjunto escultórico” é uma “manifestação
provocatória de arruaceiros de extrema-direita”. Certo é que o incidente
popularizou a peça e, num ápice, instalou-se a tradicional discussão sobre
arte contemporânea, que opõe os filisteus que não a compreendem aos que temem
ser tomados por filisteus e fingem compreendê-la.
Com jeito, algum destes complexados terá lembrado que a “Sagração da
Primavera” inspirou motins em Paris – argumento que permite equiparar a
Stravinsky o incontinente que baixa as calças no meio do Museu Berardo.
Dado não sofrer dessas maleitas, não me meto na discussão. É evidente que o
sr. Cabrita Reis só é artista
na medida em que ele se declara assim e em que existe um “meio” de
oportunistas, compinchas ou pasmados que lhe corrobora a opinião. E é
evidente que o sr. Cabrita Reis é um mero exemplo entre muitos “artistas” que
despejam quinquilharia na praia de Leça, nas rotundas do nosso belo país e nos
museus especializados deste mundo. Achar que um produto é “arte” porque três
patetas o dizem ou porque se encontra exposto na Tate Modern é uma confissão
comovente de insegurança, de ignorância e, no limite, de discutível equilíbrio
mental.
Excepto para os ociosos, o “debate” sobre a fraude deliberada a que
se resume boa parte da arte contemporânea terminou em 1961, quando o italiano
Piero Manzoni encheu 90 latas alegadamente com os próprios excrementos a título
“conceptual” (ainda há latas, ao que parece cheias de gesso, no MOMA, no
Pompidou e, claro, na Tate). Para os crédulos terminais, a trafulhice
deveria ter terminado com Pierre Brassau. Brassau era um pintor da escola do
expressionismo abstracto, que em 1964 expôs numa galeria de Gotemburgo sob o
entusiasmo da generalidade dos críticos. Sucede que Brassau era o pseudónimo de
um chimpanzé chamado Peter, e o protagonista de um embuste perpetrado, e depois
revelado, por um jornalista sueco. Apanhados em flagrante, os críticos
assobiaram para o lado e prosseguiram as carreiras a exaltar novos génios da criatividade.
Não quero sugerir que as pinturas de Brassau são
comparáveis à “Linha de Mar” do sr. Cabrita Reis: o chimpanzé tinha uns
vestígios de talento e, pelo menos, esforçou-se. No caso do entulho de Leça da Palmeira ninguém se
esforçou e ninguém disfarçou a real natureza do exercício. O exercício entra
pelos olhos dentro, tão grotesco quanto as ferragens do sr. Cabrita Reis.
Para evitar tribunais e maçadas afins, não vou elaborar. Não é preciso.
Qualquer um percebe o que aconteceu ali, e percebe que o que aconteceu ali é
o mesmo que acontece regularmente em inúmeros cantinhos de Portugal. O episódio representa a essência do celebrado “poder
local”. E o “poder local”, talvez com ressalvas que desconheço, é isto, um
pretexto para burgessos com manha viverem à custa de burgessos sem ela (a
“classe média e baixa”) e de caminho alimentarem os partidos que inventam tais
espécimes. O sr. Cabrita Reis e os seus pares estão longe de ser os únicos
artistas desta história.
Entretanto, cumpre-me informar que, espantosamente para uma autarquia
que demora anos a remendar um buraco na rua, os rabiscos nas ferragens foram
limpos no dia seguinte. O lixo, porém, continua lá.
COMENTÁRIOS
Von Galen: Muito bom. Muito bom mesmo. Vou só acrescentar, aos episódios das latas e do
chimpanzé, o episódio nacional: quando João César Monteiro “produziu um filme”
sem imagem, tendo cobrado a módica quantia de 650 mil contos, acrescidos de
mais 26 mil contos da RTP. E a seguir às críticas ter dito que estimava bem que
o público se lixasse, num claro espirro de arrogância que tanto caracteriza
estes borjeços. Acabei de ler uma crónica
no Público, de um dos pedantes que para lá escreve. O que me vai alegrando é
que, à medida que o tempo vai passando, os comentários de bajulação vão dando
lugar a outros de pessoas mais seguras e que mandam, com palavras educadas, o
cronista dar banho ao cachorrinho que tem lá em casa.
José Neto: O que vai salvando este pântano
ainda é a sabedoria dos tais "vândalos" e "filisteus":
aquelas vigas que puseram junto à praia podem ter o nome sugestivo de
"linha do mar", pode o "artista" designá-las como "conjunto
escultórico", mas atravancam a paisagem. E, sobretudo, 300 mil euros é
dinheiro, caramba! Bem podia ser distribuído por quem precisa, se sobra à
autarquia! Mal por mal, ficava melhor com as pichagens. Afinal, foi só por elas
que essa "escultura" se tornou conhecida. Parabéns pelo artigo ao
Alberto Gonçalves e ao Pedro Cabrita Reis pelos 300000 - assim de uma
assentada, é obra, homem (mesmo que não seja de arte)! Andam por aí outros
"artistas" a precisar que alguém diga que o rei vai nu.
André Ondine: Caro Alberto, ousar colocar em
causa a nobre arte do Sr Cabrita Reis é provocar toda uma comunidade artística
e “comentarista” cá do burgo, que auto-alimenta o ego e é sustentada com os
subsídios que nos saem do bolso. Gabo-lhe a coragem e agradeço-lhe a ousadia.
Não vi a tal obra escultural (que se deveria chamar “a ninharia”, tal o
reduzido e simbólico valor - 350.000€ - exigido pelo sensível e caridoso
artista) mas os comentários do Sr Reis sobre a perseguição da extrema-direita a
este ilustre homem de esquerda (aparentemente sustentado pelos pareceres
jurídicos milionários de outro esquerdista famoso - o Sr Lobo Xavier) dizem
muito sobre a fleumática personagem.
Pedro Ferreira: Excelente artigo, dá vontade
chorar tal é o retrato da nossa indigência e ignorância como povo eleitor.É
este o poder local, que muitos consideram ser uma das grandes conquistas
de Abril? É deprimente e que raio de gente elegeu esta autarca?
Maria Múrias: Brilhante, corajoso e muito
necessário primeiro parágrafo!
Pérolas a porcos: Ao pé do Sr. Cabrita Reis,
qualquer sucateiro é um verdadeiro artista. A
única diferença é que os sucateiros não têm amigos críticos de arte nem
galeristas...
victor guerra: Cumpriu-se a regra abrilista de
"o povo é quem mais ordena", mas o cabotino CR não gosta que lhe
mexam nos ferros
II - Cultura-Ípsilon OPINIÃO: Pedro Cabrita Reis em Leça da
Palmeira
A valorização do espaço público é um objectivo fundamental em qualquer
cidade que se preze, e ainda bem que há quem aposte nele – questão bem
diferente está em saber se aquela obra específica de Cabrita Reis
valoriza a marginal de Leça da Palmeira.
JOÃO MIGUEL TAVARES PÚBLICO, 2 DE JANEIRO DE 2020
Como por esta altura o leitor já saberá, uma obra escultórica de Pedro Cabrita
Reis encomendada pela Câmara de Matosinhos para a marginal de Leça
da Palmeira foi vandalizada. Um cidadão indignado (ou um grupo deles, não se
sabe), adornou a peça, intitulada “A Linha do Mar”, com numerosas pichagens. A palavra “vergonha”
aparece várias vezes (para desconsolo de Ferro Rodrigues), tal como o argumento
essencial do protesto: a câmara municipal não deveria ter investido 300 mil
euros numa peça constituída por vigas de ferro de vários tamanhos empinadas e
pintadas de branco.
Em bom rigor, foram 250 mil euros mais 23% de IVA (total: 307,5 mil
euros) pagos à empresa Armazém 10 Lda. Alguns jornais foram investigar que
empresa era essa e, entre os seus sócios, encontraram não só Cabrita Reis e
família, mas também dois advogados conhecidos, que comentam nas televisões e
militam no CDS: António Lobo Xavier e Francisco Mendes da Silva. Tendo em conta
que a Câmara de Matosinhos é PS, seria sempre improvável que fossem dois
militantes do CDS a convencer Leça da Palmeira a abrir-se à obra de Pedro
Cabrita Reis. Mas como a presença daqueles dois nomes na empresa de um artista
plástico carecia de alguma explicação, e eu não a encontrei nos jornais,
resolvi perguntar.
A explicação de António Lobo Xavier é fiscal. Na verdade, não são dois,
mas três, os advogados que fazem parte da empresa de Cabrita Reis, todos com
uma quota mínima de 1% (Lobo Xavier, Mendes da Silva e Inês Pinto Leite) e
todos da equipa de Direito Fiscal que Lobo Xavier lidera no escritório de que é
sócio (Morais Leitão). Na altura da constituição da empresa Armazém 10, em
Novembro de 2016, foi decidido que o número de sócios deveria ser superior a
cinco para ficar absolutamente seguro que a sociedade não poderia ser
enquadrada no regime de transparência fiscal, porque nesse regime a tributação
seria penalizadora para Cabrita Reis.
Por aí, não há nenhum escândalo, e o próprio choradinho dos 300 mil
euros que a câmara de Matosinhos gastou em arte pública me parece duvidoso. Se
a câmara tiver orçamento para tal e contas equilibradas, não está obrigada a
gastar todo o dinheiro em habitação social. A valorização do espaço público é
um objectivo fundamental em qualquer cidade que se preze, e ainda bem que há
quem aposte nele – questão bem diferente está em saber se aquela obra
específica de Cabrita Reis valoriza a marginal de Leça da Palmeira.
Essa, sim, é uma discussão que vale a pena ter: até que ponto faz
sentido uma câmara municipal investir montantes elevados em arte pública tão
ostensivamente minimalista quanto a de Cabrita Reis, que deixará a esmagadora
maioria dos munícipes de queixo caído (não por deleite estético, temo bem) e
com a típica cara wtf? Ainda há um par de anos, Cabrita Reis ofereceu à
cidade de Santo Tirso uma escultura que consistia (palavras suas) num
“casinhoto tosco feito com tijolos” (conhecida popularmente como “a casa do
motor”), que um habitante da terra, pela calada da noite, destruiu à marretada,
para felicidade do artista: “Não é vandalismo”, declarou Pedro Cabrita Reis, “é
manifestação de criatividade de alguém que não quis deixar de se associar ao
processo artístico”. E o casinhoto ficou assim.
Infelizmente, no caso de Leça da Palmeira, não vai ficar. As pichagens
já estão a ser limpas, impedindo a reflexão pública sobre a relação difícil
entre arte, política e sociedade. E tão útil que essa reflexão seria.
III - OPINIÃO:
De regresso a Leça, para polemizar
mais um pouco
É essa falta de mão, essa ausência de trabalho técnico e de qualquer
vestígio de virtuosismo que choca em “A Linha do Mar”, de Cabrita Reis.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 4 de Janeiro de 2020,
O director do
PÚBLICO respondeu ontem ao meu texto sobre a obra de Pedro
Cabrita Reis em Leça da Palmeira acusando-me de estar a aproveitar
um gesto de vandalismo para depreciar “o valor da obra de Cabrita Reis”
– o que, como crítica, devo admitir que não é das mais injustas que já me
fizeram.
Sim, é verdade que considero que o gesto de vandalismo
serviu como chamada de atenção para uma obra de arte altamente discutível, quer
pela sua estética, quer pelo seu preço. Sim, é verdade que se não fossem as malvadas pichagens eu continuaria a
desconhecer a existência daquela curiosa obra escultórica na
marginal de Leça da Palmeira. E sim, também é verdade que, sendo vandalismo,
não é dos mais vândalos, até porque a vantagem de fazer uma obra de arte com
vigas de ferro para construir pontes é ela não ser facilmente vandalizável. No
caso do vandalismo em apreço, basta pintar outra vez de branco (convém dar
antes um primário, porque alguns leitores garantem que a peça já está a
enferrujar) e fica como nova.
Mas, se vale a pena voltar a este tema, não é para dar conselhos de
pintura, nem sequer pelo prazer de polemizar com Manuel Carvalho. É porque o
artigo em causa desmerece a expressão que usei para classificar a obra de Cabrita Reis – “ostensivamente
minimalista” –, como se ela fosse uma questão menor, que não compete ao
público avaliar. Ora, não só esta questão não é menor, como é bem capaz de
ser o problema central da arte contemporânea, muita da qual vive da
sobrevalorização da interpretação, exactamente para compensar o seu minimalismo
ostensivo. Aquilo que importa já não é a obra, mas sim o discurso sobre
a obra. O artista do tipo Cabrita Reis abdica de ser um artífice e dispensa o
domínio da técnica, para assumir em exclusivo o papel de tradutor e intérprete
– o ungido que diz aquilo que a obra é.
A arte contemporânea operou um corte brutal entre a produção artística e
a capacidade de executar técnicas complexas (que está associada a uma ideia de
virtuosismo), preferindo investir tudo na semântica. A arte escapou das mãos do
artista para dentro da sua cabeça – e ficou lá, a elucubrar, até as mãos se
tornaram inúteis. É essa falta de mão, essa ausência de trabalho técnico e
de qualquer vestígio de virtuosismo (que, apesar de tudo, ainda relacionamos
com o gesto artístico), que choca em “A Linha do Mar”, de Cabrita Reis.
Ao contrário do que sugere Manuel Carvalho, isto não é um problema de
gosto. Ou, pelo menos, não o é em primeiro lugar. Aquilo que a maior parte das
pessoas critica (é ler as caixas de comentários dos textos) é o facto de em
“A Linha do Mar” ser ostensiva a falta de labor. É, se quisermos, ela ser
mais um dos milhões de émulos da assinatura de Duchamp no urinol, 100 anos
depois. Este minimalismo, por parecer que está sempre à beira da fraude, é
especialmente problemático em arte pública.
Sem labor, a arte torna-se pedante e aristocrática –
ela só existe na dependência total da autoridade do autor e do reconhecimento
que lhe é atribuído pelos pares, pelas galerias e pelos museus. O mesmo
objecto, criado por um jovem acabado de sair de Belas Artes, valeria zero,
porque o valor da obra é o pagamento da assinatura do artista. E quando alguém
pergunta: “Que raio é aquilo?” A resposta varia entre: a) “cala-te”, b) “não
sejas ignorante” e c) “não és suficientemente inteligente para perceber”.
Desconfio que será possível encontrar a), b) e c) nalguns comentários a este
artigo.
IV - EDITORIAL: O
vandalismo de Leça não é política: é apenas crime
A vandalização de uma obra de arte, mesmo as que nos irritam ou deixam
indiferentes, é sempre um atentado à criação e à liberdade. Não há forma de a
justificar e ainda menos de a defender
MANUEL CARVALHO
PÚBLICO. 3 de Janeiro de 2020
A vandalização de uma escultura de Pedro Cabrita Reis em Leça da
Palmeira não mereceria mais do uma breve nota de rodapé no noticiário policial
do dia se não tivesse destapado a cortina onde se escondem os argumentos da
demagogia e do populismo. A pichagem do
conjunto escultório com as palavras “vergonha” ou “300 mil
euros” desviaram o crime banal do vandalismo para a discussão política onde se
procura transformar a arte num custo supérfluo que só existe à custa de
políticos corruptos, negócios insondáveis e uma total insensibilidade em
relação aos ditos problemas “reais” do país. Em vez de se tornar num exemplo
deplorável de insensibilidade, intolerância e desrespeito pelo património
público, o vandalismo de A Linha do Mar quase se tornou num monumento
que celebra a vitória de um povo oprimido sobre os seus algozes.
Faz parte da boa política discutir e defender prioridades e é normal que
haja quem não inclua a arte entre essas prioridades. Mas é igualmente legítimo
que uma autarquia, ou um ministério, decidam valorizar o seu património
adquirindo obras de arte a criadores
consagrados como Pedro Cabrita Reis. Nenhum projecto político
democrático, mais à esquerda ou à direita, deve à partida excluir o
investimento na cultura ou na arte. Nenhuma sociedade consegue prosperar e
enriquecer pondo de lado o investimento no seu património artístico e cultural
onde fermentam as ideias e a criatividade. Se a aposta na arte fosse uma
“vergonha”, teríamos sido privados da arte que temos, de Grão Vasco a Almada,
do mestre Afonso Domingues a Siza Vieira.
Mais grave ainda é o esforço de contextualizar o vandalismo depreciando
o valor da obra de Cabrita Reis – como o fez esta quinta-feira
no PÚBLICO João Miguel Tavares. Para esses críticos, “arte pública
tão ostensivamente minimalista” não cabe nas categorias estéticas do comum dos
mortais, logo “não faz sentido”. Teríamos assim firmada a ideia segundo a qual
uma autarquia pode comprar caras de meninos com lágrimas que, essas sim, suscitam
deleite estético, mas nunca uma obra de Cabrita Reis; Matosinhos teria de
despedir a sua soberba Orquestra de Jazz e dedicar-se ao vira do Minho.
Faz sentido que uma autarquia empenhada na modernidade e no
desenvolvimento aposte em arte e na cultura. Goste-se ou não dos artistas
escolhidos. A
vandalização de uma obra de arte, mesmo as que nos irritam ou deixam
indiferentes, é sempre um atentado à criação e à liberdade. Não
há forma de a justificar e ainda menos de a defender. Entre a arte e a
boçalidade que a detesta e quer destruir, não pode haver margem para
ambiguidades.
COMENTÁRIO: arquivo.toni: Arte? Aquilo é arte? Porque meia dúzia de gabirus
assim o estabelecem? Como escreve Alberto Gonçalves no Observador a propósito
deste episódio, "achar que um produto é “arte” porque três patetas o dizem
ou porque se encontra exposto na Tate Modern é uma confissão comovente de
insegurança, de ignorância e de discutível equilíbrio mental". Obviamente
que colocar meia dúzia de vigas pelo chão e cobrar 300 mil (mais 50 mil para
transporte e instalação) tem um nome. Mas não é bem "arte". Fico contente
porque, à medida que os anos vão passando, as caixas de comentários já não são
bem palcos de bajulação de pessoas inseguras mas de pessoas críticas, seguras e
que mandam os pedantes à fava.
V - A solidão do mundo da arte em Leça da Palmeira/premium
A imposição, num país pobre em que quase tudo de essencial funciona mal,
de uma obra paga a 300.000 euros pelos contribuintes manifesta falta de pudor.
PAULO TUNHAS OBSERVADOR 02 jan
2020
Como se sabe, uma escultura de Pedro Cabrita Reis, intitulada “A Linha
do Mar”, recentemente instalada na Avenida da Liberdade de Leça da Palmeira,
foi pintada com palavras como “vergonha”, “300.000 euros”, “os nossos
impostos”, e mais umas coisas assim. Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos, que havia
encomendado a obra por cerca dos tais 300.000 euros, declarou, em protesto
contra o acto, que, na sua opinião, o Estado deve fomentar o acesso à
cultura por parte da “classe média e baixa” e que “a política cultural é
determinante para combater a intolerância”. Já o artista, Pedro
Cabrita Reis, foi mais longe: “Não
é um vandalismo contra a minha escultura, é uma manifestação de extrema-direita”,
disse ao Público, acrescentando que estamos em presença de uma “manifestação
provocatória de arruaceiros de extrema-direita”, “com os intuitos típicos de
uma cultura de ódio, populista”, coisa própria a pessoas “que vivem claramente
em roteiro de colisão e de confronto com a sociedade democrática e que,
lamentavelmente, agora até têm uma voz na Assembleia da República”. Suponho
que o ridículo do propósito vem da compreensível irritação.
Já muita gente falou e escreveu sobre este, apesar de
tudo pouco excepcional, episódio. O que não falta por aí são lugares públicos,
incluindo obras de arte, vandalizados e, particularmente na altura do “Porto
Capital da Cultura”, intervenções, como se diz, no espaço público cujo gosto é
discutível, como, na Avenida de Montevideu, a substituição de uns simpáticos e
bonitos bancos em frente ao mar por uns pousos agrestes para namorados
desavindos – já para não falar da destruição pouco criativa do Jardim da
Cordoaria (onde, por coincidência, ou é uma mania, os simpáticos banquinhos
também foram desta para melhor, substituídos por uma sua paródia kitsch). Tanto
as razões para se queixar de Pedro Cabrita Reis como as dos anónimos que
protestam contra a Câmara de Matosinhos têm, portanto, um longo historial. O que esta história particular tem de interesse reside
em algo diferente. E não me refiro à “extrema-direita”, que agora toda a
gente refere, quase sempre a despropósito. O interesse da história tem a
ver com a relação da arte contemporânea com o gosto mais comum das pessoas.
Arthur Danto, um influente filósofo americano da segunda metade
do século XX e do princípio do XXI, conhecido sobretudo pelas suas obras de
estética, dedicou-se, entre outras coisas, à teorização do que chamou “mundo da
arte”. De acordo com Danto, a qualificação de um objecto como objecto artístico –
a sua aceitação, por assim dizer, no mundo da arte — depende da articulação de
um determinado “discurso de razões” que o institui como obra de arte. A qualificação de um determinado objecto como “artístico” seria sempre
o produto de uma decisão, eventualmente obtida através de pressões, imposições,
negociações, do “mundo da arte” (artistas, críticos, etc.). Ora, há sem dúvida uma parte de verdade naquilo que Danto
diz, independentemente de falhar algo
de essencial no que respeita ao juízo estético, fundado no prazer ou no
desprazer que uma obra de arte nos provoca, se me é permitida uma
concepção tão pouco contemporânea, à qual voltarei no fim. O problema é que,
mais do que nunca na história, a obra, não se limitando a conviver com os
argumentos que a apoiam, depende por inteiro deles, ao ponto de quase se
confundir com estes, com o tal “discurso de razões”.
Por definição, o “discurso de razões” é produto de um
número limitado de pessoas, de um círculo fechado. Dito de outra maneira:
funciona num circuito interno imunizado a qualquer contacto com o mundo exterior.
Tal não significa que estejamos no reino do perfeito arbitrário: há regras
próprias que o “discurso de razões” estabelece. E não duvido que a obra de
Cabrita Reis (que conheço muito mal, admito) obedeça a essas regras e que o seu
reconhecimento se deva a outra coisa do que a motivos espúrios. Resta que as
razões desse prestígio têm origem numa comunidade fechada, sem comunicação com
o exterior. Só pelo milagre de uma harmonia pré-estabelecida verdadeiramente
inexplicável poderia “A Linha do Mar” entusiasmar a maioria dos passeantes da
Avenida da Liberdade de Leça da Palmeira.
Luísa Salgueiro, também ela, pertence a uma comunidade fechada, a
dos políticos – que partilham com os meteorologistas a dúbia honra de
colectivamente se verem designados por “eles”. Acredita que a sua missão
neste mundo consiste em fomentar, com a ajuda do Estado, o acesso à cultura por
parte da “classe média e baixa” e que a solução para tão nobre imperativo se
materializa na encomenda de “A Linha do Mar” a Pedro Cabrita Reis. Passo
por cima da estranheza da ideia segundo a qual a “classe média e baixa”
(“classe média e baixa”?) se vai extasiar culturalmente a passear na Avenida da
Liberdade de Leça da Palmeira, uma ideia de um absurdo à prova de bala. O
que é mais verosímil é que nem ela própria experimente nada de parecido com
qualquer êxtase cultural. Muitos políticos sofrem do complexo do
simulador, que David Hume teorizou há muito nesse ensaio ao qual é sempre
preciso voltar, “Sobre os padrões do gosto”. Para concitar a boa opinião da
elite intelectual e artística, fingem adoptar os seus juízos de gosto, às vezes
de forma entusiástica, sem, no entanto, experimentarem no seu íntimo nada de
remotamente semelhante. Como disse, duvido muito que Luísa Salgueiro contemple
todas as manhãs “A Linha do Mar” com um desvelo inusitado. Do que não duvido é
que ela acredite do fundo do coração que o Estado tem por missão introduzir na
plebe – e, em primeiro lugar, em si mesma – um amor imoderado pela arte
contemporânea, quer a plebe (média ou baixa) o queira ou não – e quer ela
perceba o que está a ver ou não.
Num diálogo célebre de Platão, Protágoras, o
sofista com esse nome defende, contra Sócrates, pela boca do qual
presumivelmente é aqui Platão que fala (embora seja matéria discutível), que
não há especialistas da política, que a capacidade política é propriedade de
todos. Protágoras seria hoje provavelmente visto como um “populista”, mas num
sentido essencial é ele quem efectivamente tem razão. Algo de muito semelhante se passa no domínio da
arte, embora o juízo estético possua uma natureza muito distinta do juízo
político. Cada um – excluo naturalmente os simuladores, que falseiam o seu
próprio gosto – parte de um sentimento de evidência pessoal do prazer ou do
desprazer. É claro que tal sentimento só se pode enriquecer com a cultura, e há
bons argumentos de vário tipo que nos podem conduzir a preferir certas obras a
outras e a apreciar obras que inicialmente nos provocam, pela sua dificuldade,
um sentimento imediato de rejeição. Mas a possibilidade e a desejabilidade de
um gosto cultivado não implicam a ilegitimidade de um gosto não cultivado,
fundado num sentimento de evidência pessoal. Dito de outra maneira, não há modo
de provar – sublinho: provar – a ninguém a superioridade musical da Paixão
segundo Mateus ou do Tristão e Isolda sobre Marco Paulo (ou José Mário Branco).
Se fundado num sentimento de evidência pessoal do prazer, a preferência por
Marco Paulo (ou José Mário Branco) goza de uma impecável legitimidade. Por
estas razões é sempre aconselhável algum pudor, que para Platão era também uma
virtude política. Não sei se “pudor” é hoje, como “vergonha”, conotado com a
“extrema-direita”. Se é, tanto pior. Resta que a imposição, num país pobre em
que quase tudo de essencial funciona mal, de uma obra paga a 300.000 euros
pelos contribuintes manifesta falta de pudor. Nada disto pretende – ou sequer
podia – ser uma censura a Pedro Cabrita Reis: fez o que tinha a fazer e como o
sabia fazer, e provavelmente o preço é perfeitamente razoável para o “mundo da
arte”. É sim uma crítica à Câmara de Matosinhos. Quanto a Pedro Cabrita Reis, espero que se tenha apercebido da solidão do “mundo
da arte” e que tire daí as conclusões que achar mais convenientes, quaisquer
que elas sejam. Todas menos ver nesta manifestação da plebe um complot da extrema-direita
internacional contra a sua pessoa e contra a vida do espírito em geral.
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