Pela justeza dos conceitos que,
naturalmente, são contrariados por todos quantos, sabendo quanto são
verdadeiros, pretendem mascarar essas verdades a que diariamente se assiste, sob
a ficção da sua ideologia subversiva que as nega ou defende, movidos por ódios,
invejas, grosserias, ambições reais, sob a astuciosa aparência de uma generosidade
inexistente e de uma inteligência rasteira ou apenas submissa às chefias,
cristalizadas no seu balbucio repetitivo. Tal é o sentido dos comentários
negativos da crónica de M. Fátima
Bonifácio.
OPINIÃO
A Era do Desaforo
O primeiro quartel do século XXI talvez
surja um dia nos livros de história sob o título “A Era do Desaforo”. Eis no
que deu a morte de Deus e o eclipse da Verdade.
M. FÁTIMA BONIFÁCIO
PÚBLICO, 16 de Janeiro de 2020
Existe um site muito interessante que apresenta uma extensa
lista dos protestos de massas no século XXI. Em todos os continentes ocorreram
dezenas e dezenas de manifestações e rebeliões contra os poderes estabelecidos,
observando-se uma enorme variedade de motivações. Estes acontecimentos, muitos
deles de extrema violência e longa duração, de tão frequentes, tornaram-se, no
século XXI, por assim dizer quase rotineiros. Estarão causalmente
relacionados com a globalização? Muitos deles sim, mesmo que indirectamente,
mas a globalização e respectivas consequências não explicam todos nem tudo.
Por exemplo, a massiva e violenta mobilização popular em Hong Kong contra
a tutela repressiva de Pequim parece algo de endógeno e não uma sequela da
globalização. O mesmo
se poderá dizer da recente revolta muçulmana na Índia (Dezembro
2019), atiçada pela legislação que discrimina milhões de muçulmanos a quem o
governo de Narendra Modi, impelido por uma sanha nacionalista e racista de que
não há memória desde a fundação do Paquistão, em 1947, tenciona recusar a
nacionalidade indiana a quem não seja religiosa, étnica e culturalmente hindu.
Já as violentas e prolongadas manifestações
dos “coletes amarelos”, em França, são claramente um acto de
resistência desesperada contra a globalização que, entre outros, vem produzindo
o efeito de marginalizar a Europa e o Atlântico no quadro da nova
“economia-mundo” que há anos ou umas três décadas se vem desenhando e afirmando
sob os nossos olhos.
O
que impressiona neste nosso século é a frequência, a dimensão, a intensidade, a
violência e a tenacidade dos movimentos de protesto. Dizer que tudo não passa
de uma revolta de “descamisados” é passar ao lado do alvo. Muita e muita gente
bem encamisada, em toda a parte, engrossa o cortejo dos insurgentes, avultando
em muitos casos, sintomaticamente, os estudantes. No século XIX, aquando da
“Primavera dos Povos” de 1848-9, uma vaga de sublevações contra o legitimismo
monárquico em prol do nacionalismo e do liberalismo, Donoso Cortés, um político
espanhol muito conservador, concluiu que o problema não residia nos governos,
mas sim nos povos, que “se haviam tornado ingovernáveis”. Perante isto, Donoso
recomendou algo que, pela primeira vez na história, prefigurava uma ditadura
moderna (Carl Schmitt). Tal ditadura não chegou a ser necessária, porque em
1849 o movimento nacionalista-liberal foi militarmente derrotado e o
legitimismo monárquico restaurado nos Estados europeus donde fugazmente fora
expulso.
A maioria das rebeliões
contemporâneas parece não possuir organização, líderes, meneurs ou
hierarquia interna. Mas tem, só que sob formas radicalmente diversas dos
tradicionais partidos políticos e movimentos sociais. Os telemóveis e as redes
sociais
substituíram toda essa antiga e pesada engrenagem de mobilização e norteamento. Mas a eficácia das novas
modalidades do protesto depende, creio, de uma predisposição alicerçada no
desprezo pelos poderes instituídos, não apenas nas ditaduras – o que seria
compreensível – como também, com não menos ardor, nas democracias. Da América do Sul à Ásia, passando pela Europa, o
mundo parece varrido por uma gigantesca onda catártica, percorrido por uma vaga
vingativa de gente a mais variada mas que tem em comum o nunca ter saboreado o
poder nem, sobretudo, ter merecido a sua atenção. Estas massas tão variegadas,
de braços furiosos erguidos no ar em tão diversos azimutes, com reivindicações
tão discordantes, transmitem a impressão de que postergam todas as formas e
normas tradicionais da legitimidade cívica e política: berram os seus direitos,
exigem que a sua existência lhes seja reconhecida.
A eficácia da nova rebeldia –
nova pela simultaneidade e vastidão geográfica, pela sua ousadia e capacidade
de resistência – requer também uma considerável indiferença pela repressão
punitiva da Autoridade. Cada preso, cada espancado é mais um mártir da
“causa”, seja ela qual for. Haverá sempre uma apertada margem para uma certa
impunidade pelo motivo de que hoje em dia – felizmente –, no mundo civilizado,
que inclui não apenas o Ocidente mas também a América Latina e parte da Ásia
(China, Índia, por exemplo), existem linhas vermelhas que os Estados não podem
calcar sob pena de se verem acusados de barbárie por infracção dos Direitos do
Homem. Sabemos que tais infracções são
triviais e quotidianas, mas são-no longe dos olhos do público, em campos de concentração na China (disfarçados
de campos de educação) ou em prisões ensanguentadas, como na Venezuela; a tortura não foi
extirpada do mundo.
Mas a existência do que não se vê,
não se fala nem denuncia é como lixo varrido para baixo do tapete. Não
compromete os fautores e não indigna o público. Já a exibição televisiva de “excessivos”
desmandos policiais em Hong Kong ou Paris, ou em Santiago do Chile ou Bogotá e
Caracas, colocam um país numa indecorosa “lista negra” que envergonha e pode
traduzir-se em lesivas “sanções” internacionais. Por outras palavras, os
insurgentes sabem que os respectivos governos, em princípio, evitarão chegar ao
ponto de mandar a polícia intervir com balas reais, das que não só ferem como
matam. Ao abrigo desta muito periclitante garantia, os rebeldes perderam o
medo, arriscam e desafiam a Autoridade com desaforo e impudência nunca vistos.
Não, não se está a repetir a Era das Revoluções” (Eric Hobsbawm).
Pela heterogeneidade, intensidade e amplitude do fenómeno, o primeiro quartel
do século XXI talvez surja um dia nos livros de história sob o título “A Era do
Desaforo”. Eis no que deu a morte de Deus e o eclipse da Verdade.
COMENTÁRIOS
Norberto Miguel,
16.01.2020: Como pôde este jornal reiterar a
confiança nesta pessoa e na sua verborreia esquizóide, depois do escandaloso e
criminoso (ainda por julgar em sede própria-tribunais) artigo onde proclamava a
superioridade racial da "Cristandade", é que me espanta.... Não houve
rescisões mútuas, incompatibilidades, divergências insanáveis com a redacção e
os demais?
joão salgado: Portanto, para si, opiniões diferente da
sua são crime e merecem o despedimento por justa causa. Ainda bem que se fez o
25
James Courtauld: 16.01.2020: Maria de Fátima
Bonifácio escreve bem. Mesmo muito bem.
Duarte Sousa, 16.01.2020: Cheguei a meio
do texto sem compreender o tema, a tese ou do que aqui se trata. Desisti.
Francisco Laranjeira, 16.01.2020: Não é para todos.
Os marxistas têm sempre dificuldade quando têm de ler algumas verdades.
Sima Qian, 16.01.2020: Lembrar que a
China pertence ao mundo civilizado é um desaforo. Devia ler algo sobre a
Civilização chinesa.
antonio rocha, 16.01.2020: Tantas
psiquiatrias com vagas, e a senhora anda
à solta.
José Cruz
Magalhaes, 16.01.2020: Depois do
apressado "Fim da História", da última década do século XX, somos
confrontados com a possível "Era do desaforo", no início da segunda
década do século em curso. Em comum, têm os incontroláveis movimentos de massas,
outrora, quase exclusivos de uma Europa industrial, ou dos impérios coloniais, ou
de salão e que, são agora a normalidade da revolta, da contestação e do repúdio
contra o exercício leviano do poder, contra o arbítrio e as arbitrariedades, a
exclusão e o apagamento das pessoas e dos povos. A verdade tem sempre razões
que a própria razão desconhece.
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