terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Um pouco como o João Ratão

E a Carochinha, que achou no chão cinco réis, enquanto varria a cozinha, por conselho da vizinha que a mandou pôr-se bonitinha, e comprar sedas, brincos, anéis, foi para a janela interrogar os passantes se quereriam casar com ela, assim bonita e perfeitinha. Só gostou do discurso do João Ratão e aceitou-o por esposo. E disse-lhe, eficiente e prazenteira: “Põe-te a descansar, que eu vou comprar bolinhos para o nosso jantar.” A continuação:
“Mal o nosso João Ratão se viu sozinho, a correr foi espreitar ao caldeirão que estava ao lume a ferver. Quis roubar um feijãozito. Debruçou-se e zás! Caiu. Nunca mais ninguém o viu.”

 Pelo menos era assim que contava Vasco Santana, naqueles velhos tempos, e isso aplica-se a estes novos tempos. Todos aspiramos à mão da Carochinha, e aos feijões da sua panela. Tal como o João Ratão, mas, ávidos, não reparamos que estão a ferver e zás, como ele, morreremos cozidos e assados no caldeirão. Podemos renascer, é certo, a esperança sendo a última a desaparecer, mas de momento não temos ilusões de que isso volte a acontecer, na banalização dos tempos que correm, embora lamentemos, como a Carochinha: “Ai o meu rico João Ratão que morreu cozido e assado no caldeirão!”.
António Pires de Lima confessou que é fascista? /premium
Vamos certamente assistir à multiplicação de “fascistas” e de “populistas”, não porque haja mais “fascistas” e “populistas”, mas porque os que mandam há muito tempo estão com medo de deixar de mandar.
RUI RAMOS, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 28 jan 2020,
Há quarenta e cinco anos que as direitas se queixam de que as esquerdas as tratam como “anti-democráticas”, isto é, sem direito à luz do sol em democracia. Dirão: um problema da esquerda, que, enquanto auto-proclamada vanguarda do progresso e da virtude, se habituou a tratar outras opiniões como expressão de atavismo ou de ideias sinistras. Mas não é só à esquerda que o pluralismo causa problemas digestivos, como se viu no último congresso do CDS.
Na noite de sábado, o ex-ministro António Pires de Lima subiu ao palanque para, agarrando num vocábulo avulso (“quadrilha”), acusar um candidato de deficiência ou falta de “cultura democrática”. Os apoiantes do  candidato não apreciaram, e reagiram. O que serviu aos que estavam do mesmo lado de Pires de Lima para dar por provada a imputação.
O candidato assim acusado por Pires de Lima era Francisco Rodrigues dos Santos, que aliás veio a ganhar o congresso. Ora, Rodrigues dos Santos  (se a sua ficha na Wikipedia estiver correcta) inscreveu-se na organização juvenil do CDS em 2007, ano em que o partido voltou a ser dirigido por Paulo Portas. Foi presidente da Juventude Popular desde 2015, enquanto Paulo Portas e depois Assunção Cristas lideraram o CDS. Em 2015, esteve no governo, como adjunto no gabinete do ministro Luís Pedro Mota Soares, outro dirigente do CDS. Mais: em 2017, a direcção do CDS, presidida por Assunção Cristas, propôs Rodrigues dos Santos como candidato à Assembleia Municipal de Lisboa, e em 2019 como candidato à Assembleia da República.
Que devemos concluir, portanto, se as acusações de Pires de Lima forem verídicas? Primeiro, que o CDS é um partido que não dá  “cultura democrática” aos seus militantes e dirigentes, e portanto que os valores da democracia não são os do CDS. Segundo, que as direcções do CDS presididas por Paulo Portas e depois por Assunção Cristas aceitaram que a sua organização de juventude fosse dirigida por um indivíduo sem a necessária “cultura democrática”, a quem se dispuseram a promover à Assembleia Municipal de Lisboa, Assembleia da República e Governo de Portugal.
António Pires de Lima foi presidente do Conselho Nacional do CDS. Que pensar do CDS, quando um ex-dirigente diz isto do seu próprio partido? Que pensar de Paulo Portas, de Assunção Cristas e do próprio Pires de Lima? Durante anos, o Partido Comunista e a extrema-esquerda trataram o CDS como um partido “fascista” (a sua maneira de dizer que lhe faltava “cultura democrática”), e como tal chegaram a impedir a sua actividade e a exigir a sua ilegalização. Está Pires de Lima a confessar que afinal tinham razão?
É óbvio que não. Simplesmente, na passada noite de sábado, quando Pires de Lima discursou, a candidatura que ele apoiava estava em risco de ser derrotada no congresso. Através de Pires de Lima, falaram o desespero, a desorientação e também o cinismo de um grupo que dirige o CDS há cerca de 20 anos e que se via na iminência de perder o seu brinquedo partidário. Nesse momento, valeu tudo, incluindo legitimar o tipo de estigmatização a que as esquerdas sujeitaram o CDS e todos os seus dirigentes, de Freitas do Amaral a Assunção Cristas. Bastou os seus lugares estarem em risco para que aqueles que durante anos lutaram por ser respeitados deixassem de se respeitar a si próprios.
As acusações de falta de “cultura democrática” contra a direita começaram como parte do esforço das esquerdas para se tornarem donas do regime. O caso de Pires de Lima mostra que hoje fazem parte do arsenal de toda a oligarquia, à esquerda mas também à direita, sempre que sente ameaçadas as suas posições e influências. Vamos certamente assistir à multiplicação de “fascistas” e de “populistas”, não porque haja mais “fascistas” e “populistas”, mas porque os que mandam há muito tempo estão com medo de deixar de mandar.
COMENTÁRIOS:
António Sennfelt: Receio que grande parte dos comentários a criticar o artigo de Rui Ramos revelam que os seus autores não compreenderam nada do artigo... Sad but true!
Maria Múrias > António Sennfelt; Adorava um resumo. 
Joaquim Zacarias: O Chicão parece estar a incomodar muita gente. Não há comentador de esquerda na CS, que não refira depreciativamente a juventude dele, assim como a sua origem da jota do CDS. Mas esses não são os motivos das criticas, mas sim ,a afirmação feita no congresso, de que tudo fará para combater a esquerda, e numa futura aliança, incluirá o Chega.
Ana Baptista > Joaquim Zacarias: Claro. O único problema para esta gente, que se antecipa como possível, é a oposição à esquerda totalitária e corrupta, com a qual esta "direita", que agora critica, alegremente se irmana na repartição do produto do roubo a Portugal e aos portugueses. O senhor só erra na parte da aliança. A questão não será saber se o CDS aceita o Chega, mas o oposto. Por mim o que deve acontecer é sim uma fusão e não uma mera coligação pontual.
Afonso Portela: Brilhante Rui. Com excepção de  Camarate, foi sem dúvida o momento mais triste e baixo de que guardo memória em toda a história do CDS. O Rui, certamente por cortesia, só não verbalizou com todas as letras que, como sabemos, quem pela boca do "fascista" Lima falou foi o inenarrável e irrevogável Portas. A maleita mais desprezível que alguma vez assombrou a direita. Se decência houvesse, seria razoável esperar que tal gente se retirasse de vez, mas claro, sendo o que são, ao invés, começaram a fazer a vida negra aos novos dirigentes do partido, e por essa via a Portugal, muito antes de eles serem sequer empossados. Um nojo de gente.
ALEX de Sousa: Alguns leitores por aqui deviam ser um pouco mais sensatos e respeitosos evitando os insultos ao articulista Rui Ramos. Para quem tenha dúvidas sobre o  que é ou não é insulto, tomem como referência a palavra quadrilha usada pelo Chicão, o novel líder do CDS, para qualificar as esquerdas. Com este novo referencial de boas maneiras políticas, fiquem à vontade para chamarem ao Rui Ramos tudo o que entenderem desde que seja de quadrilha para cima; quadrilha (ou chefe de quadrilha) incluída…
Luís Martins: Na mouche!
Carlitos Sousa: Desta vez estou totalmente de acordo com a análise. Pires de Lima usou o que estava à mão para defender o seu candidato. Ficou mal na foto e já deve estar arrependido. É pena, porque Pires de Lima é um excelente activo do PP.
Manuel Ferreira: Pires de Lima tem umas intervenções um pouco estranhas. Lembro-me daquela na AR depois do almoço onde também não ficou nada bem na fotografia. Nesta também fica mal visto dentro e fora do partido. Enfim, de vez em quando calça o chinelinho de andar por casa!
Manuel Magalhães: Grandes realidades!!!
Dani Silva: Relembro que o CDS teve 4,22% dos votos nas últimas legislativas. Parece-me que se está a dar demasiada importância (e cobertura mediática) a um partido tão insignificante...
José Ribeiro e Castro: Os insultos que alguns dirigem aqui ao Rui Ramos confirmam o acerto absoluto do seu artigo. Tenha pena que APL tenha feito aquilo, mas o que Rui Ramos analisa e conclui é infelizmente certíssimo.
Há muito que a política e a "comentocracia" em Portugal sofrem de um tique deplorável, uma mania medíocre. É o que chamo de "o fascista de turno". Há muita gente que precisa de descobrir e apontar o "fascista" para se sentir "à esquerda" e se aconchegar na zona de conforto.  Talvez seja ainda uma arrastada herança do PREC. Ou uma consequência do largo peso gordo que a esquerda mantém no ambiente político-cultural do país
Manuel Magalhães > José Ribeiro e Castro: Muito certo!
Paulo Guerra > José Ribeiro e Castro: Com o espaço para as viúvas do Ribeiro e Castro assegurado, como o compreendo meu caro. Se o leitorzinho de frases feitas chegar às próximas legislativas, voltamos a falar.
José Broa: No fundo, Rui Ramos tem é inveja que alguém chame isso ao Pires de Lima ... e não a si próprio. O que diga de passagem é injusto, perante todo o esforço de RR!!!!!
Pedro Dragone: A obsessão desta “direita calhambeque” com os rótulos políticos, esquerda, direita, fascista, socialista, etc, vai liquidá-la à nascença. E também não faz cá falta nenhuma, excepto para “museu”! A esmagadora maioria das pessoas que votam, e com o seu voto podem ou não dar relevância a um partido ou corrente política, não liga a rótulos! E as esquerdas já perceberam isso há muito tempo… Este pessoal que tanto valoriza o mercado, e a “atenção ao cliente”, parece ignorar as regras básicas desse mesmo mercado. Neste caso o “mercado da política” que são os eleitores. Será que o “cliente eleitor”  “é estúpido” e precisa de ser reeducado???
Paulo Guerra: A desonestidade intelectual deste RR nunca pára de nos surpreender. Pires de Lima não agarrou num vocábulo avulso mas antes limitou-se a ler a 1ª frase da Moção do Francisco. Que já agora era a única coisa que ia a votos no Congresso, ou seja a verdadeira razão de ser do Congresso. Logo e tal como disse Pires de Lima, era uma frase mais que pensada e daí a gravidade. E que pretendia antes de mais escamotear aquilo que o Observador e nomeadamente o desonesto RR também não se cansa de escamotear. Em 2015 Cavaco convidou primeiro para formar Governo os pafiosos. Que como a direita também não se cansa de repetir, tiveram mais votos. Foi Paços que deu conta a Cavaco que não conseguia formar Governo e só a partir desse ponto é que Cavaco, com muita dificuldade, como todos pudemos comprovar mas sem outra alternativa, teve que se virar para Costa, que assegurava desde logo a aprovação do 1º OE. Não há outra história, não vale a pena inventar outras narrativas. Aconteceu em Portugal o que acontece em todas as Democracias parlamentares europeias. Claro que Pires de Lima está coberto de razão em tudo quanto proferiu. E em relação ao resto do blá blá do texto do RR, também há um provérbio popular, tão do agrado dos conservadores, que ilustra bem esta mudança e que diz que “se queres conhecer realmente alguém, dá-lhe poder.”  E claro que quem não respeita os seus adversários políticos numa Democracia Parlamentar, não está sequer apto para entrar no Parlamento. Julgo que foi o que Pires de Lima foi dizer ao Congresso, coberto de razão. Com uma atitude até muito pedagógica porque em vez de tentar enfatizar os perigos que decorrem de pensamentos como os expressos na Moção limitou-se a pedir tempo para o Francisco crescer. Com razão, convenhamos.
Miguel Bergano: Uma excelente reflexão, parabéns pela lucidez.
Ana Ferreira: Vendo uma luz ao fundo do túnel, a reprimir óbvia satisfação, RR no seu habitual estilo dissimulado, abençoa Chicão. Pode ser que evite a suprema vergonha de ter que apoiar o charlatão! 
Manuel Magalhães > Ana Ferreira: Quem apoia o charlatão é você !!!
Adelino Lopes: Análise simples e directa. Gosto e concordo. Só faltou o complemento. E o complemento é: “a idade é um posto”. Aprende-se na tropa (quem por lá passou). Só que os “berros” do “mais velho” resultam (às vezes) nas instituições não democráticas. Exemplo gritante acontece nas etnias africanas. Neste caso não resultou. Será que afinal o CDS é democrata?
José Montargil: Um desplante desse tal Pires de Lima! Nada mais. Esse Lima e o resto da manada, não só do CDS mas de todos os partidos bem podem ir à vida pois para nós portugueses não servem para nada. Não mostram trabalho quando estão no poder, na oposição nada de construtivo aparece. É gente que não interessa ao País. Incluo nessa manada todos os partidos sem excepção que exerceram o poder. Está na hora de irem para a reforma, de se preocuparem com o que não fizeram durante os anos que trataram Portugal como coisa sua. Nenhum deles  presta para nada. Para mim há uma excepção que é Passos Coelho.  O resto, e sobretudo o actual PR, são prejudiciais ao funcionamento de Portugal, tratam os portugueses como menores de idade e com arrogância desmedida.
Carlos Quartel: Fraca crónica, em minha opinião. Todo o episódio não passou da democracia em funcionamento, cada um expressando o que pensa, sem papas na língua, como deve ser. O que deve ser realçado é a vivacidade e a discussão acalorada, num congresso onde se elegem os líderes e onde a vitória não está assegurada. Comparar  isto com as "missas" em que se transformaram os congressos dos partidos com eleições separadas, podia dar assunto para uma boa crónica.
Rui Vieira da Silva: Muito Bem!


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