Um daqueles escritos que parece que
todos sabemos de cor, há muitos anos. Só que extraordinariamente bem escrito. E
com uma ferocidade sem tréguas. Mas o país Angola, que ao que se diz, não
cuidou bem do seu povo, na senda de um enriquecimento oligárquico, de
governantes e afins, terá muito que explicar aos seus cidadãos. Portugal foi
apenas uma via natural de escoamento e interajuda, talvez mais barato do que
outros, que figurariam em negociatas semelhantes a preços orgulhosamente
superiores, julgo.
OPINIÃO
Angola é nossa!
Os últimos anos revelaram numerosas
situações em que foi sempre Angola a pôr condições e Portugal a ceder.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 26 de Janeiro de 2020
A onda de corrupção comprovada, alegada ou suposta é enorme, conhecida
há anos e pressentida há décadas.
Bancos, seguradoras, exportadoras, agências de comunicação, consultoras e
escritórios de advogados instalaram-se confortavelmente na charneira
entre Angola e Portugal. Estabeleceram-se ainda
mais comodamente no universo das relações ilícitas entre os dois países. E
navegaram na onda dos refúgios dourados: os paraísos fiscais, os infernos da
droga, os campos de petróleo e as lapidadoras de diamantes. Durante anos, em
Portugal e alhures, floresceram os negócios à sombra de Estados de direito
associados a ditaduras de desenvolvimento e a democracias de acumulação
primitiva. Os Governos de Portugal e Angola organizaram a galáxia. As elites
dos dois países aproveitaram.
Alguma
coisa correu mal. Este universo suspeito ou, mais do que isso, ilícito, deu nas
vistas e foi posto no pelourinho. Não pelo Estado de direito, mas simplesmente
porque, num dos parceiros, em Angola, o poder mudou. Ainda não sabemos se
mudou para melhor ou apenas porque o poder mudou. Mas já sabemos que o que vem
aí não é a brincar. Preparemo-nos para as consequências.
O que esta senhora fez foi enorme. Conquistou o mais que era possível: empresas, bancos,
técnicos, advogados, ministros, secretários de Estado, deputados e jornalistas.
Deu trabalho. Distribuiu dividendos. Deu acções. Fez transferências. Pagou.
Ficou a dever. Emprestou. Pediu emprestado. Investiu. Comprou acções, empresas,
administradores, técnicos, corretores e advogados. Teve a seus pés quem quis e
quem queria estar por ali.
Fez
tudo sozinha? Era só ela própria? Sabia tudo? Decidiu na sua solidão sábia e
visionária? Fez sozinha aquela fortuna colossal? Transferiu-a sozinha para
Portugal e para toda a malha de offshore e paraísos deste mundo e do
outro? Certamente não. Nem em Angola, nem em Portugal. Nem, aliás, na Rússia ou
nos Emiratos. Comprou quem estava à venda, depois de verificar que havia muita
oferta neste mercado. Fez uma rede e passeou-se nela. Fez presas e alimentou-se
delas. Teve
a indiferença de quem não queria levantar ondas e a complacência de quem não queria
prejudicar as boas relações entre dois países. Teve
surdos-mudos e paralíticos que assim julgavam defender a razão de Estado. Soube
encontrar, em Portugal, parceiros à altura, empreendedores, advogados,
ministros e banqueiros disponíveis para uma verdadeira aventura de circulação e
reciclagem de fortunas.
Antes
do fim das tempestades, que ainda está muito longe, já se podem ir fazendo
balanços e retirar lições. Verdade ou ficção política, uma coisa
é certa: Portugal precisa de Angola, mas Angola não precisa de Portugal.
Os angolanos precisam de Portugal para descansar, investir, guardar
dinheiro, transferir capitais, fazer trânsito de pessoas, bens e mercadorias. Tudo que podem fazer noutro país qualquer. Se não
puderem fazer aqui, às suas condições, fazem noutro sítio. É menos confortável,
mas não custa nada mudar! Essa é a sua independência.
Os portugueses precisam de Angola para
vender mercadoria, prestar serviços, abrir as portas da Avenida de Roma, vender
apartamentos de luxo, fazer obra pública e ganhar empreitadas de construção. O
que os portugueses fazem em Angola, não fazem noutro sítio. Essa é a sua dependência.
A
independência angolana e a dependência portuguesa podem não ser exactamente o
que parece ou o que aqui se diz. Talvez não sejam. Mas é como se fossem. Isto
é, governantes e gente de negócio de Angola e de Portugal comportam-se como se
tudo o que acima vem fosse verdade.
Os últimos anos revelaram numerosas
situações em que foi sempre Angola a pôr condições e Portugal a ceder. Os
calendários diplomáticos e as agendas políticas entre os dois países estiveram
à mercê dos interesses de Angola e dos caprichos dos seus dirigentes, nunca ou
raramente dos de Portugal. As visitas de políticos, as reuniões entre Governos,
a circulação de capitais e a reciprocidade das relações judiciais estiveram
sempre dependentes das exigências angolanas.
O ambiente em Angola é propício a
fazer a vida difícil aos portugueses.
Estes são brancos e foram colonialistas, duas características em crise. Tanto
lá, como cá, aliás.
O ambiente em Portugal é propício a
fazer a vida fácil aos angolanos.
São ricos e têm dinheiro para gastar. Os portugueses precisam dos angolanos
para vender os seus produtos de luxo. Sem eles, a Avenida da Liberdade não
seria o que é.
Os angolanos têm em Portugal inúmeras vantagens, a língua, famílias,
proximidade histórica e conhecimentos. Para os angolanos, estar em Lisboa é
fácil. Mais fácil do que para os portugueses estar em Angola. Quanto ao racismo, existe nos dois lados, não é por
aí que temos desigualdade.
Cunhas,
luvas e contrabando: é desgraçadamente o dia-a-dia contemporâneo. Locais de quarentena, instituições de reciclagem,
redes de branqueamento e veículos de lavagem fazem parte do mundo de hoje,
infelizmente. É, todavia, verdade que, para contrariar esse mundo, muito se
pode fazer com a lei, as inspecções, a fiscalidade, a vigilância, a supervisão
e a regulação. Em muitos países do mundo se vai fazendo. Em Portugal, muito
pouco.
Os políticos, as instituições, os
tribunais, as leis, as polícias e os grupos económicos portugueses não parecem
estar à altura da tempestade que se prepara nem do furacão que já começou.
Vai
haver problemas? Sim. Com os bancos, as empresas, as dívidas, os contratos e os
investimentos? Sim. Talvez não sejam muito graves. Talvez. Mas o pior é a
certeza de que não temos Governo, polícias, juízes e bancos à altura. Nem tivemos
durante as últimas décadas.
Por
cá, já não se diz “Angola é nossa!”, um atrevido slogan inventado no
tempo de Salazar e da guerra. Fazia parte deste género de afirmações que se
fazem quando nos queremos enganar a nós próprios.
Há cinquenta anos, íamos perder a
colónia? Sim. Então inventámos um hino e um slogan a dizer o
contrário. Será que em Angola, hoje, alguém diz “Portugal é nosso!”?
Sociólogo
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