Mas, na questão dos contos faltou o do “Capuchinho Vermelho”, simpaticamente intrigado, a Avozinha estirada na cama, bem tapadinha, a disfarçar, embora
não o bastante: “Porque tens a boca tão grande, Avozinha?” –“É para melhor te comer, minha Netinha!”.
Ou o da Branca de Neve que ficou cem anos adormecida com a maçã envenenada da
madrasta entalada na garganta (não a madrasta, mas a maçã), à espera do
príncipe desentalador. Mas os cem anos não bastarão para desentalar, o
entorpecimento irá continuar, os anõezinhos a multiplicarem-se, a aristocracia em
extinção...
E quanto à história final, de Joacine, trata-se mesmo duma anedota a sua participação, puro
gozo pateticamente provocatório, num parlamento pouco sensato que a aceita
demagogicamente, para gala de uma pobre nação que não se sabe dar ao respeito e
por tal é assim achincalhada, em cenas de palhaçada exibicionista.
Orçamento do Estado foi aprovado na generalidade esta sexta-feira /premium
Texto de Rita Tavares, Ana Suspiro, Beatriz Ferreira,
Rita Dinis e Rita Penela
Costa
acredita ter "o melhor orçamento", Centeno citou Pessoa, a oposição recorreu
à magia e às metáforas com animais. Quer saber o que se passou no longo debate
do OE? A literatura explica.
OBSERVADOR,
10 jan 2020
Não é o twist surpreendente que costuma marcar aqueles livros em que viramos
página atrás de página, mas a legislatura é nova, há novas geometrias no
Parlamento e tudo podia acontecer. Não aconteceu: o Orçamento do Estado foi
aprovado na generalidade, ainda que apenas com os votos do PS e com a abstenção
de todos os partidos à esquerda (e mais três deputados do PSD). Foi um dia
e meio de troca de argumentos, de discursos mais ou menos inspirados, com o
Governo a puxar pelos méritos do “melhor orçamento dos últimos cinco anos”
e a oposição a carregar nas críticas e a falar de “um país imaginário”.
Mas houve surpresas. E talvez a maior de todas foi que para além dos
números, Governo e oposição puxaram pela literatura para atacar e se
defender. Pegando nessa deixa, resumimos aqui as 11 horas de debate em
17 clássicos da literatura mundial. Vá, 16 e ainda o popular “Onde Está o
Wally”, trazido à conversa pelo líder do PSD. Acreditamos que vai sair
daqui mais esclarecido com o que se passou durante a aprovação na generalidade
do Orçamento para 2020. Mas se não sair, pelo menos fica com uma bela lista de
sugestões de leitura para as semanas que ainda faltam para a votação final
global. Não precisa de agradecer.
Odisseia, Homero
Foram cerca de 11 horas de debate pouco poéticas e sem grande dimensão
épica, a não ser no que diz respeito ao número de horas contínuas que deputados
e ministros passam sentados nas respetivas cadeiras a ouvirem, fazerem e
responderem a intervenção atrás de intervenção. Um dia e meio, com intervalo
para uma ausência de 12 horas (entre as dez da noite de quinta e as dez da
manhã de sexta) para dormir e outra para almoço no segundo dia. E foi pouco,
segundo alguns queixosos. O primeiro-ministro bem esbracejou e tentou que o
presidente da Assembleia da República fosse mais benevolente com a hora de
regresso para o almoço. Ferro disse 15h15 e Costa pedia: “15h30”. Nada feito, o
toque estridente que chama os deputados para o plenário começou mesmo à hora
ditada por Ferro.
Robinson Crusoe,
Daniel Defoe
António Crusoé é um político
que sobrevive numa espécie de ilha deserta, que é o Governo sem um apoio
maioritário, que com habilidade vai sobrevivendo longe da maioria absoluta,
aprovando orçamentos com abstenções de quem tem à mão. Bem podia ser a sinopse de uma
nova versão da obra de Defoe dedicada a esta legislatura, depois da aprovação
do primeiro Orçamento do novo Governo de António Costa.
O primeiro-ministro, António Costa, durante o debate antes da votação
na generalidade do Orçamento do Estado
ANTÓNIO COTRIM/LUSA
Sem geringonça, com os partidos da esquerda que nos últimos quatro anos
o apoiaram a lembrarem constantemente essa ausência e até alguns, como Mariana
Mortágua, a evocarem “o espírito” da mesma porque o que está no Orçamento
não chega, António Costa conseguiu sair com o Orçamento aprovado. Os
votos favoráveis dos 108 deputados PS foram suficientes, perante as abstenções
de Bloco de Esquerda, PCP, Verdes, PAN, Livre e ainda de três extra: os
deputados do PSD eleitos pela Madeira. Está aprovado o primeiro Orçamento pós-geringonça,
embora com avisos claros para o que se passar na especialidade. Não houve quem entre os abstencionistas não
sublinhasse isso mesmo, dando a entender que se não tiverem respostas às
alterações que pretendem no debate que vai seguir-se no próximo mês, a votação
final global pode ser diferente. Na verdade, não é muito diferente
daquilo que os partidos que nos últimos anos tinham um acordo escrito com o
Governo fizeram nesta altura. Recorde-se, aliás, a insistência permanente do
PCP em dizer que no acordo constava apenas o compromisso da “análise
conjunta prévia de orçamentos do Estado” e não mais do que isso. As negociações
foram, de facto, diferentes das outras, mas desta vez também não eram
necessários os votos favoráveis da esquerda. Bastava a abstenção. E
assim foi, com uma ajuda extra do PSD Madeira, porque de resto, à
direita, só críticas sobretudo sobre a falta de adesão à realidade por parte do
Governo. Ou da civilização, no caso de Crusoé.
A Mensagem, Fernando
Pessoa
N’A Mensagem, Fernando Pessoa elogiava os actos
heróicos passados dos portugueses, para depois tentar explicar a decadência da
época de então (início do século XX). O ministro das Finanças preferiu
trocar a ordem: o passado, menos bom, ficou para trás — aliás, este Orçamento é
do F de Futuro — e “decadência” não é palavra que descreva o presente. Até
porque o Orçamento (agora aprovado) tem “o maior reforço financeiro da história
do Sistema Nacional de Saúde” e o país “está mais robusto face a riscos
externos”. Se Pessoa referia os feitos dos portugueses de outrora, neste
caso, Centeno segue-lhe os passos, mas para os dias de hoje. “Portugal está
de parabéns” e “as famílias portuguesas são as verdadeiras obreiras”, bradou.
Outros feitos não os puxou — pelo menos explicitamente — para si. Mas deixou
claro que este é o Orçamento
do “E de equilíbrio” (prevê um excedente de 0,2% do PIB); de Economia
(pela sua evolução); de estabilidade (financeira, política e social); de
empresas; de emprego, de esquerda. “O que pareceu estranho agora entranha-se”,
apontou, voltando a citar Pessoa.
O ministro das Finanças, Mário Centeno, durante o
debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado ANTÓNIO COTRIM/LUSA
A Mensagem de Centeno foi também para a Esquerda, sob forma de avisos: “Não
esperem medidas que ponham Portugal a adoptar o caminho do aumento da dívida e
de alteração do equilíbrio orçamental que provoque aumentos de impostos
amanhã”. Aos antigos parceiros de Geringonça pediu ainda que deixassem os
heterónimos de lado. “No momento de votar este Orçamento não tentem ser
pessoanos porque Fernando Pessoa só houve um. Não votem as medidas de
despesa com um heterónimo gastador e as de receita com um heterónimo aforrador”.
A Mensagem foi recebida com frieza. Logo a seguir, Mariana Mortágua pedia
“menos poesia”.
Cândido ou o Optimismo,
Voltaire
“O melhor orçamento destes cinco anos”. Foi uma das frases de António
Costa que marcou o arranque do debate e se ouviu ao longo das horas, mas com
entoações muito distintas, umas vezes irónicas e outras para chegar à conclusão
contrária. E porque é que os socialistas consideram este é o melhor dos
cinco orçamentos apresentados? Porque vai além da reposição de rendimentos e
reversão dos cortes nos investimentos e nos serviços públicos, da reversão do
enorme aumento de impostos, aprovado no tempo da troika e do Governo PSD/CDS, e
da redução do défice público, neste caso a obtenção de um saldo positivo. Os
méritos dos socialistas transformam-se em defeitos no discurso da oposição. E
nem os parceiros da esquerda pouparam críticas, apesar da abstenção. O PSD e o
CDS centraram-se no “choque fiscal” ao contrário, ou seja, no “brutal aumento
de impostos”, como lhe chamou Rui Rio referindo-se aos anos da governação
socialista. Não porque as taxas tenham aumentado, mas porque o Estado está a
cobrar mais, e não é só em contribuições para a Segurança Social. O Governo
prevê arrecadar 35 vezes mais impostos às famílias do que prevê devolver, são
as contas do CDS. E a carga fiscal foi outro protagonista deste debate.
Mais um recorde, clamam PSD e CDS, uma queda do peso em percentagem do PIB,
garante Centeno.
O primeiro-ministro, António Costa, durante o debate antes da votação
na generalidade do Orçamento do Estado MIGUEL A. LOPES/LUSA
De Joacine Katar Moreira vieram pedidos para aumentar o salário
mínimo, matéria que não consta da proposta, a Iniciativa Liberal alertou que a
proposta deixa o país “parado de mão estendida à espera do Estado”. O deputado
do Chega atacou projeções “em que ninguém acredita” sobre o crescimento e o petróleo
e previu uma crise gravíssima. “Não digam que não foram avisados”. Mas o
principal argumento de António Costa vai bater no inevitável primeiro excedente
(saldo positivo) das contas públicas da história da democracia, que para o seu
braço direito no Governo — neste caso Siza Vieira e não Mário Centeno, a quem
coube encerrar a discussão que o primeiro-ministro lançou — foi mesmo “a
estrela do debate” orçamental.
Orgulho e
Preconceito, Jane Austen
E precisamente neste ponto, o do excedente orçamental, o plenário
dividiu-se entre o orgulho do Governo e o preconceito dos partidos à
esquerda. BE e PCP atacaram os saldos positivos, porque são uma
“submissão” às imposições de Bruxelas, acusou Jerónimo de Sousa; ou porque os
superavits, sublinhou Pedro Filipe Soares, “não garantem comboios a horas” e
atacam as funções essenciais do Estado, deixando as escolas sem obras e com
amianto. O PAN também criticou esse “objectivo contabilístico” e acusou o
Governo de esconder a cabeça na areia em vez de enfrentar os problemas.
O excedente” é uma opção e não uma obsessão”, garantiu
o primeiro-ministro a Mariana Mortágua. É uma opção e o resultado de uma política que Costa
faz questão de demarcar daquela que permitiu o excedente em 1973, recordado
pela deputada do Bloco de Esquerda. O primeiro-ministro reconhece que os
partidos estão desconfortáveis com o saldo positivo das contas públicas,
sobretudo à esquerda, e procurou também tranquilizar o líder do PCP, ao
dizer-lhe que o excedente não é o objectivo. Então qual é? Não se pode,
argumentou o primeiro-ministro, ignorar a “outra necessidade”, a do país
libertar-se da “elevada dívida pública”. É a poupança nos juros da
dívida “que nos permite reforçar o investimento nos serviços públicos e reduzir
a nossa exposição ao risco de uma nova crise internacional”, garante. O
saldo positivo das contas públicas é a rampa de lançamento do novo ciclo que o
primeiro-ministro ambiciona para esta legislatura, “mais focado nos desafios
estratégicos”.
Onde Está o Wally, Martin Handford
O mistério dos números que mudam, consoante as tabelas foi lançado horas
antes do início do debate pela análise da Unidade Técnica de Apoio Orçamental
(UTAO) e o PSD nunca mais largou o tema. Em causa está uma diferença que
resulta da passagem dos números da contabilidade pública para a contabilidade
nacional e que, segundo a UTAO, mostra que há uma fatia da despesa para o qual
o Governo pede aprovação, mas que não tenciona gastar e não diz em que áreas da
governação vai poupar. Como não gasta, o excedente será afinal maior que o
anunciado.
O líder do PSD, Rui Rio, durante o debate antes da
votação na generalidade do Orçamento do Estado MIGUEL A. LOPES/LUSA
Mário Centeno deu explicações técnicas na apresentação do documento esta
segunda-feira e sugeriu que os deputados do PSD têm dificuldade em perceber as
contas do Orçamento, uma crítica que já tinha feito a Rui Rio. Mas o líder dos
sociais-democratas confrontou agora o primeiro-ministro: “Onde estão os 590
milhões de euros? Não é o Wally, são os 590 milhões”. Costa nunca
respondeu directamente e desvalorizou que, numa despesa de 96.918 milhões, a
sua preocupação é sobre 0,6% desta despesa. “Isso diz tudo sobre a sua
dificuldade em interpretar este orçamento”. Uma desvalorização que, mais tarde,
Rio não deixaria passar em branco. Já depois da aprovação do Orçamento, lembrou
que o mesmo primeiro-ministro que desvaloriza 590 milhões agora, era o mesmo
que ameaçava demitir-se no final da anterior legislatura por causa dos 600
milhões quando uma chamada coligação negativa (que juntou PSD e CDS aos
partidos à esquerda) esteve prestes a forçar a contagem integral do tempo de
serviço congelado dos professores.
Sonhos Eléctricos,
Philip K. Dick
A descida do IVA da eletricidade também passou pelo
debate, mas ficámos na mesma. É o mais que se pode dizer daquela que será uma das medidas
relevantes, para as famílias e para as receitas do Estado, deste Orçamento. Nem
o Governo, nem os partidos da oposição avançaram que propostas pretendem fazer
na especialidade. E apenas o Bloco prometeu que o tema não será esquecido,
porque “menos despesa na tarifa da luz é mais salário e mais pensões“,
realçou Catarina Martins. A coordenadora do Bloco lembrou ainda a Costa que
a negociação poderia estar mais avançada se o Executivo já tivesse revelado
qual o impacto orçamental do modelo que propõe.
A líder do BE, Catarina Martins, durante o debate antes da votação na
generalidade do Orçamento do Estado MIGUEL
A. LOPES/LUSA
O primeiro-ministro reafirmou a recusa em baixar a taxa do IVA sobre a
energia, seja para 13%, seja para 6%, mas com base em argumentos politicamente
correctos. “Não temos no nosso programa a redução do IVA porque achamos que é
socialmente injusto e ambientalmente irresponsável.” E nem respondeu à
provocação do Bloco que recordou o tempo em que o PS de António José Seguro
votou contra o aumento das taxas sobre a electricidade e o gás para 23%. Costa
tirou também da carteira um número: a descida do IVA só iria beneficiar 16%
das famílias mais pobres, enquanto os agregados com maiores rendimentos sairiam
a ganhar, porque pagam mais. Ficou por explicar quem poderá beneficiar do tal
IVA variável em função do consumo, se Bruxelas der luz verde, e de que forma
pretende o Governo incentivar a poupança sem beneficiar de alguma forma as
famílias que ganham mais e que também consomem mais.
Em Busca do Tempo
Perdido, Marcel Proust
Marta Temido não chegou ouvir o primeiro-ministro dizer que o Orçamento
que tem a Saúde como prioridade é o “melhor” que já apresentou como chefe do
Executivo. A ministra da Saúde quis mais e, quando falou no plenário, avisou
que para si, na área da saúde, este orçamento é mesmo o “melhor dos últimos
20 anos”. “Os anos que eu me lembro como profissional do setor”. Antes
dela, nada. O tempo que a ministra considera é o seu e é neste que diz estar a
resposta para os problemas de desinvestimento dos últimos anos.
“Esta proposta é reflexo orçamental das escolhas políticas que
fizemos, de recuperação e crescimento económico e compromisso com o modelo
social em que consiste em que ninguém fique para trás”. Há 30 novas unidades de
saúde familiar, 8.400 novas contratações (com contratos sem termo) entre 2020 e
2021, 800 milhões para pôr fim à suborçamentação e mais 200 milhões para outras
medidas, o fim das taxas moderadoras no SNS, o regime de exclusividade dos
médicos do SNS.
A ministra da Saúde, Marta Temido, durante o debate antes da votação na
generalidade do Orçamento do Estado ANTÓNIO
COTRIM/LUSA
“Tudo o que temos feito é no sentido de melhoria do SNS e não apenas do
seu equilíbrio financeiro”, defendeu Marta Temido perante uma linha de fogo
parlamentar feroz nesta matéria. E onde até os partidos que se abstiveram apontaram
insuficiências na prioridade do Governo: “Suborçamentação na saúde é apenas um
problema, o outro é o subfinanciamento”, disse Ricardo Batista Leite do PSD.
Moisés Ferreira, do BE, tem uma tese (partilhada à esquerda) sobre a razão
deste investimento no SNS: “Poderia ser melhor se não estivesse estrangulado
por esta obsessão do excedente orçamental”.
O Médico e o
Monstro, Robert Louis Stevenson
Dr. Pedro Nuno Jekyll Santos procura explicar
que dentro deste Governo existe uma natureza de esquerda. E que ela está lá
apesar de um excedente das contas públicas. Até porque, explicou aos deputados
da ponta mais à esquerda da bancada do Governo, não se pode “com seriedade,
dizer aos portugueses que queremos mais médicos, enfermeiros, polícias,
professores, hospitais, centros de saúde, tribunais, estradas, comboios,
transportes e energia mais barata e, ao mesmo tempo, exigir que quem pode
contribuir, contribua menos”.
Quem mais tem, pode contribuir
mais. É esta a linha que promete a quem, como ele, tem aspirações a que o
Orçamento possa agradar à esquerda que está sentada à esquerda do PS. Não fosse
ele o pivot das negociações da era da geringonça, sobretudo daquelas que
levaram à aprovação dos últimos quatro orçamentos do Estado. E faz questão
de deixar bem clara essa sua linha também nos apartes que vai lançando da sua
cadeira aos deputados da direita, sobretudo Chega e Iniciativa Liberal, que se
dirigiram ao púlpito para intervenções. Quanto mais à direita, mais este Mr.
Hyde Santos solta a sua veia (para não dizer todo o sistema circulatório) de
esquerda.
Já na relação com a direita, Pedro Nuno
Jekyll Santos, garante que o PS sabe controlar bem a natureza despesista (e
neste lado da história, esse é o Mr. Hyde) que PSD e CDS tantas vezes lhe
apontam. “Hoje, convenhamos, é mais difícil acusar de despesismo o Governo
que obteve o défice mais baixo da nossa democracia. Mas muitos ainda insistem
na ideia de que os socialistas não sabem fazer as reformas estruturais
criadoras de riqueza”. E garante que o PS soube fazer reformas, mas que elas
não são o que a direita pretendia já que não querem dizer “privatizar,
liberalizar, desregular”: “Para nós, as reformas são aquelas que mobilizam
os sectores público, privado, social e académico”. Entre as várias vertentes
políticas que tenta equilibrar no seu discurso, agradando à esquerda e
enxotando a direita, o ministro das Infraestruturas e da Habitação teve de
reconhecer que há duas áreas que tem em mãos que são críticas: transportes e
habitação. Mas prometeu a cura para “décadas de desinvestimento”. Embora também
avise que não consegue fazê-lo “em meia dúzia de anos”.
Grandes Esperanças, Charles Dickens
No clássico de Charles Dickens, o jovem (e pobre) Pip sonha em melhorar
as condições de vida. Tanto sonha, que acaba por concretizar, ao ponto de não
saber como lidar quando a vida não corre do seu agrado. Para já, ouvindo
Pedro Siza Vieira, ministro da Economia, o desalento de Pip não chega ao
Governo. Embora o país — tal como Pip — tenha ganho ambição e a situação
económica esteja mais sólida, o Executivo — também tal como Pip — quer mais: na
justiça social, nos serviços públicos, no emprego, nas infraestrutuas.
“Passamos do irrealismo optimista das projecções” de há
quatro anos, para a pouca ambição dos objectivos, disse Siza Vieira. “Antes queixavam-se da redução da dívida pública,
agora há pedidos insistentes para reduzir mais impostos e gastar mais na
despesa pública.” O debate centra-se em como consolidar mais depressa os
ganhos passados e isso “é o melhor legado da geringonça”. Mas, ao contrário
de Pip, garante o ministro que o Governo saberá como responder às eventuais
nuvens que pairem sobre o país. Porque o Executivo tem “desafios
estratégicos”, mas também soluções, nomeadamente através de medidas para as
empresas, passando pelos impostos para os jovens qualificados e as melhorias
que o Governo pretende alcançar nos rendimentos do trabalho (com a subida do
salário mínimo até aos 750 euros no final da legislatura).
Utopia, Thomas More
A ficção e magia foram linhas importantes nesta
discussão, com o PSD a dizer que o primeiro-ministro apresentou um “país
imaginário”, ao qual o deputado Duarte Pacheco não sabe se há-de chamar
“Costolândia ou Centenolândia”. Quando o Governo, e Centeno, anunciam uma descida da carga fiscal em
2020, em particular no IRS e IRC, o PSD contou 15 aumentos em outros
impostos, como o IMT, imposto de selo, IUC ou jogo online. “Mas o Governo
acha que todos estes impostos são pagos pelos extraterrestres”. A esta visão
imaginária, o primeiro-ministro respondia com o “pensamento mágico” daqueles
que defendem o impossível: “Mais investimento, menos impostos e maior
excedente orçamental. É um pensamento mágico”. E a magia voltou a estar no
ar pela mão do deputado social-democrata Eduardo Teixeira que sugeriu mais
alcunhas alternativas para o ministro das Finanças: Desde “Centeno, o
cativador”, até ao “Luís de Matos do ilusionismo em Portugal”.
O Diabo e Outros
Contos – Lev Tolstoi
O Diabo já foi outra coisa,
noutros tempos em que o PSD era liderado por Passos Coelho. Mas esse de que se
falava então, nunca chegou a aparecer. Agora é a carga fiscal. Se no conto de Tolstoi um
jovem rapaz tenta fugir de uma bem-parecida camponesa, na saga dos dias de
discussão de Orçamento, foi Centeno a tentar escapar de um tema praticamente
inevitável (e desconfortável): a carga fiscal. No fim da história de Tolstoi, o
autor dá aos leitores a possibilidade de escolherem entre dois finais (spoiler
alert: ambos são trágicos). Mas Centeno, Costa e PS insistiram numa
explicação aos deputados: o que faz a carga fiscal subir não são as receitas
fiscais, “mas as contribuições sociais”. Só que a oposição não ficou
convencida. Os dedos foram apontados por todos os partidos da direita: Rui
Rio falou num “descarado aumento da carga fiscal”, a centrista Assunção
Cristas, que fez o último discurso no Parlamento, apontou que este é um
Orçamento de “continuidade da maior carga fiscal de sempre”. “O que até podia
compreender, se os serviços públicos tivessem melhorado — mas é a maior carga
fiscal de sempre e os piores serviços públicos de sempre”. Ainda no CDS,
Cecília Meireles lembrou os “E’s” de Centeno, mas quis acrescentar um outro. “O
de Elogio”. “Até Fernando Pessoa convocou para se autoelogiar. Se este
fosse um discurso sobre aumentos da carga fiscal, poderia autoelogiar-se, mas
como foi sobre orçamento, acho que não se justifica.”
Nem André Ventura (Chega)
deixou Centeno fugir da incómoda carga fiscal. Lembrou um debate de António
Costa com António José Seguro, em que o primeiro-ministro terá garantido que,
se fosse chefe do Governo, não seria responsável pelo aumento da carga fiscal.
“Sabe o que eu fazia? Demitia-me!”, atirou. João Cotrim Figueiredo do
Iniciativa Liberal, voltou ao tema e referiu que “ se ponderarmos a carga fiscal
com o PIB per capita estamos no fim da tabela com maior esforço fiscal”. Afonso
Oliveira, do PSD, apontou mesmo um “problema de imposto-dependência” ao
Governo. Ou seja, provou-se em mais um debate que o peso da carga fiscal é um
argumento que a oposição à direita não quer largar.
Fábulas, La Fontaine
Este debate do Orçamento dava direito à inclusão no famoso livro de
histórias uma série de adendas, mas esta com uma moral orçamental. No caso da
fábula da Cigarra e da Formiga, podia ser uma nova versão (já que foi
uma das citadas neste debate que também consta do livro de La Fontaine). Foi
Rui Rio quem a foi buscar, quando advertiu que é a “política monetária
europeia que ajuda a manter as taxas de juro a um nível anormalmente baixo”.
Se subirem, avisa, “os portugueses perceberão que Portugal andou a viver de
ilusões e que, tal como a cigarra na sua história com a formiga, não se
preparou devidamente no Verão para estar apto para enfrentar o Inverno”. A
moral vai dar ao mesmo, mas no lugar da cigarra estaria Costa e companhia e no
lugar da formiga, o deputado e líder do PSD não hesitaria em colocar-se a si
mesmo. Depois há também a história da Carochinha, que António Costa recuperou há dias para garantir que era à esquerda que
esperava aprovar o Orçamento. Claro que a tirada foi aproveitada neste debate, pelo deputado do PSD
Ricardo Batista Leite, que logo colocou o Bloco de Esquerda no papel de João
Ratão (André Ventura, por seu lado, sublinhava este “namoro” BE/Governo a cada
intervenção). Depois aproveitou a personagem para a aplicar a um dito
popular, no que toca ao investimento anunciado pelo Governo na saúde: “A
montanha pariu um ratão”. E isto porque o Governo apenas apresenta vagas
promessas que não são cumpridas pela confraria socialista, comunista, bloquista
e até animalista que deveria fazer corar de vergonha os seus autores,
verdadeiros comparsas numa fraude democrática sem paralelo na história recente”.
André Silva, do PAN, também diz que as respostas orçamentais às áreas
que coloca como prioritárias resumem-se a “pequenos apontamentos avulsos
adicionados a um documento que tem como desígnio um objetivo contabilístico: o
superavit”. Depois também ele se atirou para um ditado, aquela história da
avestruz que não tira a cabeça da areia. “Este é um Orçamento avestruz: o
Governo prefere esconder a cabeça debaixo da areia para não ter de encarar o
complexo desafio de enfrentar de forma consequente os problemas do país”.
Crime e Castigo,
Fiódor Dostoiévski
O crime é assumido, e o castigo também: “Assumiremos as
consequências dos nossos actos”. Foi assim que os deputados do PSD Madeira (Sara Madruga da Costa, Paulo
Neves e Sérgio Marques) justificaram, em conferência de imprensa, o facto de se
prepararem para viabilizar o Orçamento do Estado (com a abstenção),
desrespeitando o sentido de voto imposto pela bancada do PSD. No final da
votação, Rui Rio deixou claro que ia informar o Conselho de Jurisdição da falta
cometida por aqueles deputados, embora compreendesse que a falta tivesse sido
cometida por “pressão” exercida pelo PSD Madeira. Em todo o caso, se houver
castigo, eles lá estarão para o receber. Porque o crime, esse, foi premeditado
e, dizem, foi por uma boa causa. “Colocamos o interesse da nossa região em
primeiro lugar”, disse a deputada madeirense aos jornalistas, explicando
que, com uma verba de 17 milhões de euros atribuída pelo OE à construção do
novo hospital do Funchal, era impossível os deputados da Madeira chumbarem o
documento. Mesmo assim, o sinal que o governo dá vale apenas para a votação
na generalidade, já que nem todas as reivindicações dos deputados madeirenses
foram atendidas. Até à votação final ainda há tempo… por isso é importante
manter a via aberta. Mesmo que isso implique um processo disciplinar por parte
do PSD? Sim.
O Imenso Adeus,
Raymond Chandler
“É com tristeza que a vemos partir, apesar dos muitos debates agrestes
na anterior legislatura e desejo felicidades para o futuro”. Foi assim que o
presidente da Assembleia da República introduziu a subida de Assunção Cristas
ao púlpito pela última vez. Daqui a duas semanas, o CDS terá congresso e, a
partir do momento em que tiver um novo líder, Assunção Cristas deixa o lugar de
deputada. A líder do CDS sorriu e o plenário aplaudiu, incluindo deputados da
bancada socialista.
Assunção Cristas, na
última intervenção que fez no plenário
MIGUEL A. LOPES/LUSA
No discurso, Cristas criticou o rumo escolhido
pelo Governo socialista e reservou a última intervenção parlamentar para falar
também para dentro do partido: “É o dever do CDS dizer a verdade às pessoas. É
dever do CDS não baixar os braços. É dever do CDS fazer renovadamente o trabalho
de construção de uma alternativa. Porque em democracia há sempre uma
alternativa, se não é para hoje, é para amanhã”. Foi para mim uma honra”,
rematou, sem esconder alguma comoção. Foi o imenso adeus de Assunção Cristas.
O Capital, Karl Marx
É já um clássico nos discursos do PCP: ao longo
da intervenção de encerramento dos comunistas, Jerónimo de Sousa repetiu por
três vezes a expressão “grande capital”. Primeiro para criticar o excedente
orçamental: “Essa é uma opção do Governo do PS que, estando hoje menos
condicionado do que na anterior legislatura por força dos últimos resultados
eleitorais, tenta impor as suas opções de sempre, acentuando a sua submissão às
imposições da União Europeia e aos interesses do grande capital”. Depois, para
referir que “a maioria das empresas e sectores estratégicos estão hoje sob
domínio do grande capital”. E, por fim, numa nova referência à UE: “Não nos
contentamos com a rédea curta que emana de Bruxelas, nem deixaremos de
contrariar os interesses do grande capital”.
O secretário-geral
do PCP, Jerónimo de Sousa, durante o debate antes da votação na generalidade do
Orçamento do Estado MIGUEL A. LOPES/LUSA
Nos dois últimos dias de debate sobre Orçamento, o PCP manteve-se
relativamente discreto, sem grandes tensões com os restantes partidos. E foi o
excedente orçamental a merecer as maiores críticas dos comunistas, porque “é
uma opção errada” que ”continua a adiar respostas a problemas centrais do
país”, disse Jerónimo. “Chamemos-lhe um pífaro, se quiser, mas que há imposições
da UE e que há submissão da parte do Governo é uma realidade incontornável. E
não tinha de ser assim”.
No caderno de encargos da especialidade na luta contra esse “grande
capital”, o PCP já fez saber que vai exigir o aumento dos salários, a “contratação
de milhares de trabalhadores que fazem falta ao bom funcionamento dos serviços
públicos”, o aumento da progressividade do IRS, o aumento substancial do
investimento público no SNS, na Educação, na Cultura, na Justiça, na Segurança
e nos Transportes, e na melhoria das prestações sociais”.
O Jogador, Fiódor
Dostoiévski
É uma jogadora, na verdade. Trata-se de Joacine Katar-Moreira, a
deputada única do Livre, que a julgar pela última semana poderá ser óptima no
póker. Abstenção, voto a favor ou voto contra? Estava tudo em aberto, como o Observador noticiou, e mesmo com a pressão do partido para que anunciasse
o sentido de voto antes da votação no hemiciclo, Katar Moreira aguentou o bluffmaté
ao fim.
Conseguiu, aliás, falar aos jornalistas, esta sexta-feira no exterior do
hemiciclo – a horas do voto -, e não revelar claramente a estratégia que ia
seguir. Sabe, o Observador, que mesmo no partido, houve quem ficasse agarrado à
tv para ver como a deputada votaria no final. Portanto, uma ótima jogadora que,
ainda assim, não tinha nada na manga. Apesar do mistério e do suspense que a
deputada e o partido conseguiram colar à decisão, o governo já tinha garantida
a aprovação do OE com as abstenções da esquerda, divulgadas na quarta e
quinta-feira, e por isso qualquer que fosse a decisão de Joacine, não teria
qualquer influência no resultado final.
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