sábado, 11 de janeiro de 2020

Contas e Contos



Mas, na questão dos contos faltou o do “Capuchinho Vermelho”, simpaticamente intrigado, a Avozinha estirada na cama, bem tapadinha, a disfarçar, embora não o bastante: “Porque tens a boca tão grande, Avozinha? –“É para melhor te comer, minha Netinha!”. Ou o da Branca de Neve que ficou cem anos adormecida com a maçã envenenada da madrasta entalada na garganta (não a madrasta, mas a maçã), à espera do príncipe desentalador. Mas os cem anos não bastarão para desentalar, o entorpecimento irá continuar, os anõezinhos a multiplicarem-se, a aristocracia em extinção...
E quanto à história final, de Joacine, trata-se mesmo duma anedota a sua participação, puro gozo pateticamente provocatório, num parlamento pouco sensato que a aceita demagogicamente, para gala de uma pobre nação que não se sabe dar ao respeito e por tal é assim achincalhada, em cenas de palhaçada exibicionista.
Orçamento do Estado foi aprovado na generalidade esta sexta-feira /premium
Texto de Rita Tavares, Ana Suspiro, Beatriz Ferreira, Rita Dinis e Rita Penela
Costa acredita ter "o melhor orçamento", Centeno citou Pessoa, a oposição recorreu à magia e às metáforas com animais. Quer saber o que se passou no longo debate do OE? A literatura explica.
OBSERVADOR, 10 jan 2020
Não é o twist surpreendente que costuma marcar aqueles livros em que viramos página atrás de página, mas a legislatura é nova, há novas geometrias no Parlamento e tudo podia acontecer. Não aconteceu: o Orçamento do Estado foi aprovado na generalidade, ainda que apenas com os votos do PS e com a abstenção de todos os partidos à esquerda (e mais três deputados do PSD). Foi um dia e meio de troca de argumentos, de discursos mais ou menos inspirados, com o Governo a puxar pelos méritos do “melhor orçamento dos últimos cinco anos” e a oposição a carregar nas críticas e a falar de “um país imaginário”.
Mas houve surpresas. E talvez a maior de todas foi que para além dos números, Governo e oposição puxaram pela literatura para atacar e se defender. Pegando nessa deixa, resumimos aqui as 11 horas de debate em 17 clássicos da literatura mundial. Vá, 16 e ainda o popular “Onde Está o Wally”, trazido à conversa pelo líder do PSD. Acreditamos que vai sair daqui mais esclarecido com o que se passou durante a aprovação na generalidade do Orçamento para 2020. Mas se não sair, pelo menos fica com uma bela lista de sugestões de leitura para as semanas que ainda faltam para a votação final global. Não precisa de agradecer.
Odisseia, Homero
Foram cerca de 11 horas de debate pouco poéticas e sem grande dimensão épica, a não ser no que diz respeito ao número de horas contínuas que deputados e ministros passam sentados nas respetivas cadeiras a ouvirem, fazerem e responderem a intervenção atrás de intervenção. Um dia e meio, com intervalo para uma ausência de 12 horas (entre as dez da noite de quinta e as dez da manhã de sexta) para dormir e outra para almoço no segundo dia. E foi pouco, segundo alguns queixosos. O primeiro-ministro bem esbracejou e tentou que o presidente da Assembleia da República fosse mais benevolente com a hora de regresso para o almoço. Ferro disse 15h15 e Costa pedia: “15h30”. Nada feito, o toque estridente que chama os deputados para o plenário começou mesmo à hora ditada por Ferro.
Robinson Crusoe, Daniel Defoe
António Crusoé é um político que sobrevive numa espécie de ilha deserta, que é o Governo sem um apoio maioritário, que com habilidade vai sobrevivendo longe da maioria absoluta, aprovando orçamentos com abstenções de quem tem à mão. Bem podia ser a sinopse de uma nova versão da obra de Defoe dedicada a esta legislatura, depois da aprovação do primeiro Orçamento do novo Governo de António Costa.
O primeiro-ministro, António Costa, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado     ANTÓNIO COTRIM/LUSA
Sem geringonça, com os partidos da esquerda que nos últimos quatro anos o apoiaram a lembrarem constantemente essa ausência e até alguns, como Mariana Mortágua, a evocarem “o espírito” da mesma porque o que está no Orçamento não chega, António Costa conseguiu sair com o Orçamento aprovado. Os votos favoráveis dos 108 deputados PS foram suficientes, perante as abstenções de Bloco de Esquerda, PCP, Verdes, PAN, Livre e ainda de três extra: os deputados do PSD eleitos pela Madeira. Está aprovado o primeiro Orçamento pós-geringonça, embora com avisos claros para o que se passar na especialidade. Não houve quem entre os abstencionistas não sublinhasse isso mesmo, dando a entender que se não tiverem respostas às alterações que pretendem no debate que vai seguir-se no próximo mês, a votação final global pode ser diferente. Na verdade, não é muito diferente daquilo que os partidos que nos últimos anos tinham um acordo escrito com o Governo fizeram nesta altura. Recorde-se, aliás, a insistência permanente do PCP em dizer que no acordo constava apenas o compromisso da “análise conjunta prévia de orçamentos do Estado” e não mais do que isso. As negociações foram, de facto, diferentes das outras, mas desta vez também não eram necessários os votos favoráveis da esquerda. Bastava a abstenção. E assim foi, com uma ajuda extra do PSD Madeira, porque de resto, à direita, só críticas sobretudo sobre a falta de adesão à realidade por parte do Governo. Ou da civilização, no caso de Crusoé.
A Mensagem, Fernando Pessoa
N’A Mensagem, Fernando Pessoa elogiava os actos heróicos passados dos portugueses, para depois tentar explicar a decadência da época de então (início do século XX). O ministro das Finanças preferiu trocar a ordem: o passado, menos bom, ficou para trás — aliás, este Orçamento é do F de Futuro — e “decadência” não é palavra que descreva o presente. Até porque o Orçamento (agora aprovado) tem “o maior reforço financeiro da história do Sistema Nacional de Saúde” e o país “está mais robusto face a riscos externos”. Se Pessoa referia os feitos dos portugueses de outrora, neste caso, Centeno segue-lhe os passos, mas para os dias de hoje. “Portugal está de parabéns” e “as famílias portuguesas são as verdadeiras obreiras”, bradou. Outros feitos não os puxou — pelo menos explicitamente — para si. Mas deixou claro que este é o Orçamento do “E de equilíbrio” (prevê um excedente de 0,2% do PIB); de Economia (pela sua evolução); de estabilidade (financeira, política e social); de empresas; de emprego, de esquerda. “O que pareceu estranho agora entranha-se”, apontou, voltando a citar Pessoa.
O ministro das Finanças, Mário Centeno, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado   ANTÓNIO COTRIM/LUSA
A Mensagem de Centeno foi também para a Esquerda, sob forma de avisos: “Não esperem medidas que ponham Portugal a adoptar o caminho do aumento da dívida e de alteração do equilíbrio orçamental que provoque aumentos de impostos amanhã”. Aos antigos parceiros de Geringonça pediu ainda que deixassem os heterónimos de lado. “No momento de votar este Orçamento não tentem ser pessoanos porque Fernando Pessoa só houve um. Não votem as medidas de despesa com um heterónimo gastador e as de receita com um heterónimo aforrador”. A Mensagem foi recebida com frieza. Logo a seguir, Mariana Mortágua pedia “menos poesia”.
Cândido ou o Optimismo, Voltaire
“O melhor orçamento destes cinco anos”. Foi uma das frases de António Costa que marcou o arranque do debate e se ouviu ao longo das horas, mas com entoações muito distintas, umas vezes irónicas e outras para chegar à conclusão contrária. E porque é que os socialistas consideram este é o melhor dos cinco orçamentos apresentados? Porque vai além da reposição de rendimentos e reversão dos cortes nos investimentos e nos serviços públicos, da reversão do enorme aumento de impostos, aprovado no tempo da troika e do Governo PSD/CDS, e da redução do défice público, neste caso a obtenção de um saldo positivo. Os méritos dos socialistas transformam-se em defeitos no discurso da oposição. E nem os parceiros da esquerda pouparam críticas, apesar da abstenção. O PSD e o CDS centraram-se no “choque fiscal” ao contrário, ou seja, no “brutal aumento de impostos”, como lhe chamou Rui Rio referindo-se aos anos da governação socialista. Não porque as taxas tenham aumentado, mas porque o Estado está a cobrar mais, e não é só em contribuições para a Segurança Social. O Governo prevê arrecadar 35 vezes mais impostos às famílias do que prevê devolver, são as contas do CDS.  E a carga fiscal foi outro protagonista deste debate. Mais um recorde, clamam PSD e CDS, uma queda do peso em percentagem do PIB, garante Centeno.
O primeiro-ministro, António Costa, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado MIGUEL A. LOPES/LUSA
De Joacine Katar Moreira vieram pedidos para aumentar o salário mínimo, matéria que não consta da proposta, a Iniciativa Liberal alertou que a proposta deixa o país “parado de mão estendida à espera do Estado”. O deputado do Chega atacou projeções “em que ninguém acredita” sobre o crescimento e o petróleo e previu uma crise gravíssima. “Não digam que não foram avisados”. Mas o principal argumento de António Costa vai bater no inevitável primeiro excedente (saldo positivo) das contas públicas da história da democracia, que para o seu braço direito no Governo — neste caso Siza Vieira e não Mário Centeno, a quem coube encerrar a discussão que o primeiro-ministro lançou — foi mesmo “a estrela do debate” orçamental.
Orgulho e Preconceito, Jane Austen
E precisamente neste ponto, o do excedente orçamental, o plenário dividiu-se entre o orgulho do Governo e o preconceito dos partidos à esquerda. BE e PCP atacaram os saldos positivos, porque são uma “submissão” às imposições de Bruxelas, acusou Jerónimo de Sousa; ou porque os superavits, sublinhou Pedro Filipe Soares, “não garantem comboios a horas” e atacam as funções essenciais do Estado, deixando as escolas sem obras e com amianto. O PAN também criticou esse “objectivo contabilístico” e acusou o Governo de esconder a cabeça na areia em vez de enfrentar os problemas.
O excedente” é uma opção e não uma obsessão”, garantiu o primeiro-ministro a Mariana Mortágua. É uma opção e o resultado de uma política que Costa faz questão de demarcar daquela que permitiu o excedente em 1973, recordado pela deputada do Bloco de Esquerda. O primeiro-ministro reconhece que os partidos estão desconfortáveis com o saldo positivo das contas públicas, sobretudo à esquerda, e procurou também tranquilizar o líder do PCP, ao dizer-lhe que o excedente não é o objectivo. Então qual é? Não se pode, argumentou o primeiro-ministro, ignorar a “outra necessidade”, a do país libertar-se da “elevada dívida pública”. É a poupança nos juros da dívida “que nos permite reforçar o investimento nos serviços públicos e reduzir a nossa exposição ao risco de uma nova crise internacional”, garante. O saldo positivo das contas públicas é a rampa de lançamento do novo ciclo que o primeiro-ministro ambiciona para esta legislatura, “mais focado nos desafios estratégicos”.
Onde Está o Wally, Martin Handford
O mistério dos números que mudam, consoante as tabelas foi lançado horas antes do início do debate pela análise da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) e o PSD nunca mais largou o tema. Em causa está uma diferença que resulta da passagem dos números da contabilidade pública para a contabilidade nacional e que, segundo a UTAO, mostra que há uma fatia da despesa para o qual o Governo pede aprovação, mas que não tenciona gastar e não diz em que áreas da governação vai poupar. Como não gasta, o excedente será afinal maior que o anunciado.
O líder do PSD, Rui Rio, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado    MIGUEL A. LOPES/LUSA
Mário Centeno deu explicações técnicas na apresentação do documento esta segunda-feira e sugeriu que os deputados do PSD têm dificuldade em perceber as contas do Orçamento, uma crítica que já tinha feito a Rui Rio. Mas o líder dos sociais-democratas confrontou agora o primeiro-ministro: “Onde estão os 590 milhões de euros? Não é o Wally, são os 590 milhões”. Costa nunca respondeu directamente e desvalorizou que, numa despesa de 96.918 milhões, a sua preocupação é sobre 0,6% desta despesa. “Isso diz tudo sobre a sua dificuldade em interpretar este orçamento”. Uma desvalorização que, mais tarde, Rio não deixaria passar em branco. Já depois da aprovação do Orçamento, lembrou que o mesmo primeiro-ministro que desvaloriza 590 milhões agora, era o mesmo que ameaçava demitir-se no final da anterior legislatura por causa dos 600 milhões quando uma chamada coligação negativa (que juntou PSD e CDS aos partidos à esquerda) esteve prestes a forçar a contagem integral do tempo de serviço congelado dos professores.
Sonhos Eléctricos, Philip K. Dick
A descida do IVA da eletricidade também passou pelo debate, mas ficámos na mesma. É o mais que se pode dizer daquela que será uma das medidas relevantes, para as famílias e para as receitas do Estado, deste Orçamento. Nem o Governo, nem os partidos da oposição avançaram que propostas pretendem fazer na especialidade. E apenas o Bloco prometeu que o tema não será esquecido, porque “menos despesa na tarifa da luz é mais salário e mais pensões“, realçou Catarina Martins. A coordenadora do Bloco lembrou ainda a Costa que a negociação poderia estar mais avançada se o Executivo já tivesse revelado qual o impacto orçamental do modelo que propõe.
A líder do BE, Catarina Martins, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado  MIGUEL A. LOPES/LUSA
O primeiro-ministro reafirmou a recusa em baixar a taxa do IVA sobre a energia, seja para 13%, seja para 6%, mas com base em argumentos politicamente correctos. “Não temos no nosso programa a redução do IVA porque achamos que é socialmente injusto e ambientalmente irresponsável.” E nem respondeu à provocação do Bloco que recordou o tempo em que o PS de António José Seguro votou contra o aumento das taxas sobre a electricidade e o gás para 23%. Costa tirou também da carteira um número: a descida do IVA só iria beneficiar 16% das famílias mais pobres, enquanto os agregados com maiores rendimentos sairiam a ganhar, porque pagam mais. Ficou por explicar quem poderá beneficiar do tal IVA variável em função do consumo, se Bruxelas der luz verde, e de que forma pretende o Governo incentivar a poupança sem beneficiar de alguma forma as famílias que ganham mais e que também consomem mais.
Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
Marta Temido não chegou ouvir o primeiro-ministro dizer que o Orçamento que tem a Saúde como prioridade é o “melhor” que já apresentou como chefe do Executivo. A ministra da Saúde quis mais e, quando falou no plenário, avisou que para si, na área da saúde, este orçamento é mesmo o “melhor dos últimos 20 anos”. “Os anos que eu me lembro como profissional do setor”. Antes dela, nada. O tempo que a ministra considera é o seu e é neste que diz estar a resposta para os problemas de desinvestimento dos últimos anos.
Esta proposta é reflexo orçamental das escolhas políticas que fizemos, de recuperação e crescimento económico e compromisso com o modelo social em que consiste em que ninguém fique para trás”. Há 30 novas unidades de saúde familiar, 8.400 novas contratações (com contratos sem termo) entre 2020 e 2021, 800 milhões para pôr fim à suborçamentação e mais 200 milhões para outras medidas, o fim das taxas moderadoras no SNS, o regime de exclusividade dos médicos do SNS.
A ministra da Saúde, Marta Temido, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado   ANTÓNIO COTRIM/LUSA
“Tudo o que temos feito é no sentido de melhoria do SNS e não apenas do seu equilíbrio financeiro”, defendeu Marta Temido perante uma linha de fogo parlamentar feroz nesta matéria. E onde até os partidos que se abstiveram apontaram insuficiências na prioridade do Governo: “Suborçamentação na saúde é apenas um problema, o outro é o subfinanciamento”, disse Ricardo Batista Leite do PSD. Moisés Ferreira, do BE, tem uma tese (partilhada à esquerda) sobre a razão deste investimento no SNS: “Poderia ser melhor se não estivesse estrangulado por esta obsessão do excedente orçamental”.
O Médico e o Monstro, Robert Louis Stevenson
Dr. Pedro Nuno Jekyll Santos procura explicar que dentro deste Governo existe uma natureza de esquerda. E que ela está lá apesar de um excedente das contas públicas. Até porque, explicou aos deputados da ponta mais à esquerda da bancada do Governo, não se pode “com seriedade, dizer aos portugueses que queremos mais médicos, enfermeiros, polícias, professores, hospitais, centros de saúde, tribunais, estradas, comboios, transportes e energia mais barata e, ao mesmo tempo, exigir que quem pode contribuir, contribua menos”.
Quem mais tem, pode contribuir mais. É esta a linha que promete a quem, como ele, tem aspirações a que o Orçamento possa agradar à esquerda que está sentada à esquerda do PS. Não fosse ele o pivot das negociações da era da geringonça, sobretudo daquelas que levaram à aprovação dos últimos quatro orçamentos do Estado. E faz questão de deixar bem clara essa sua linha também nos apartes que vai lançando da sua cadeira aos deputados da direita, sobretudo Chega e Iniciativa Liberal, que se dirigiram ao púlpito para intervenções. Quanto mais à direita, mais este Mr. Hyde Santos solta a sua veia (para não dizer todo o sistema circulatório) de esquerda.
Já na relação com a direita, Pedro Nuno Jekyll Santos, garante que o PS sabe controlar bem a natureza despesista (e neste lado da história, esse é o Mr. Hyde) que PSD e CDS tantas vezes lhe apontam. “Hoje, convenhamos, é mais difícil acusar de despesismo o Governo que obteve o défice mais baixo da nossa democracia. Mas muitos ainda insistem na ideia de que os socialistas não sabem fazer as reformas estruturais criadoras de riqueza”. E garante que o PS soube fazer reformas, mas que elas não são o que a direita pretendia já que não querem dizer “privatizar, liberalizar, desregular”: “Para nós, as reformas são aquelas que mobilizam os sectores público, privado, social e académico”. Entre as várias vertentes políticas que tenta equilibrar no seu discurso, agradando à esquerda e enxotando a direita, o ministro das Infraestruturas e da Habitação teve de reconhecer que há duas áreas que tem em mãos que são críticas: transportes e habitação. Mas prometeu a cura para “décadas de desinvestimento”. Embora também avise que não consegue fazê-lo “em meia dúzia de anos”.
Grandes Esperanças, Charles Dickens
No clássico de Charles Dickens, o jovem (e pobre) Pip sonha em melhorar as condições de vida. Tanto sonha, que acaba por concretizar, ao ponto de não saber como lidar quando a vida não corre do seu agrado. Para já, ouvindo Pedro Siza Vieira, ministro da Economia, o desalento de Pip não chega ao Governo. Embora o país — tal como Pip — tenha ganho ambição e a situação económica esteja mais sólida, o Executivo — também tal como Pip — quer mais: na justiça social, nos serviços públicos, no emprego, nas infraestrutuas.
“Passamos do irrealismo optimista das projecções” de há quatro anos, para a pouca ambição dos objectivos, disse Siza Vieira. “Antes queixavam-se da redução da dívida pública, agora há pedidos insistentes para reduzir mais impostos e gastar mais na despesa pública.” O debate centra-se em como consolidar mais depressa os ganhos passados e isso “é o melhor legado da geringonça”. Mas, ao contrário de Pip, garante o ministro que o Governo saberá como responder às eventuais nuvens que pairem sobre o país. Porque o Executivo tem “desafios estratégicos”, mas também soluções, nomeadamente através de medidas para as empresas, passando pelos impostos para os jovens qualificados e as melhorias que o Governo pretende alcançar nos rendimentos do trabalho (com a subida do salário mínimo até aos 750 euros no final da legislatura).
Utopia, Thomas More
A ficção e magia foram linhas importantes nesta discussão, com o PSD a dizer que o primeiro-ministro apresentou um “país imaginário”, ao qual o deputado Duarte Pacheco não sabe se há-de chamar “Costolândia ou Centenolândia”. Quando o Governo, e Centeno, anunciam uma descida da carga fiscal em 2020, em particular no IRS e IRC, o PSD contou 15 aumentos em outros impostos, como o IMT, imposto de selo, IUC ou jogo online. “Mas o Governo acha que todos estes impostos são pagos pelos extraterrestres”. A esta visão imaginária, o primeiro-ministro respondia com o “pensamento mágico” daqueles que defendem o impossível: “Mais investimento, menos impostos e maior excedente orçamental. É um pensamento mágico”. E a magia voltou a estar no ar pela mão do deputado social-democrata Eduardo Teixeira que sugeriu mais alcunhas alternativas para o ministro das Finanças: Desde “Centeno, o cativador”, até ao “Luís de Matos do ilusionismo em Portugal”.
O Diabo e Outros Contos – Lev Tolstoi
O Diabo já foi outra coisa, noutros tempos em que o PSD era liderado por Passos Coelho. Mas esse de que se falava então, nunca chegou a aparecer. Agora é a carga fiscal. Se no conto de Tolstoi um jovem rapaz tenta fugir de uma bem-parecida camponesa, na saga dos dias de discussão de Orçamento, foi Centeno a tentar escapar de um tema praticamente inevitável (e desconfortável): a carga fiscal. No fim da história de Tolstoi, o autor dá aos leitores a possibilidade de escolherem entre dois finais (spoiler alert: ambos são trágicos). Mas Centeno, Costa e PS insistiram numa explicação aos deputados: o que faz a carga fiscal subir não são as receitas fiscais, “mas as contribuições sociais”. Só que a oposição não ficou convencida. Os dedos foram apontados por todos os partidos da direita: Rui Rio falou num “descarado aumento da carga fiscal”, a centrista Assunção Cristas, que fez o último discurso no Parlamento, apontou que este é um Orçamento de “continuidade da maior carga fiscal de sempre”. “O que até podia compreender, se os serviços públicos tivessem melhorado — mas é a maior carga fiscal de sempre e os piores serviços públicos de sempre”. Ainda no CDS, Cecília Meireles lembrou os “E’s” de Centeno, mas quis acrescentar um outro. “O de Elogio”. “Até Fernando Pessoa convocou para se autoelogiar. Se este fosse um discurso sobre aumentos da carga fiscal, poderia autoelogiar-se, mas como foi sobre orçamento, acho que não se justifica.”
Nem André Ventura (Chega) deixou Centeno fugir da incómoda carga fiscal. Lembrou um debate de António Costa com António José Seguro, em que o primeiro-ministro terá garantido que, se fosse chefe do Governo, não seria responsável pelo aumento da carga fiscal. “Sabe o que eu fazia? Demitia-me!”, atirou. João Cotrim Figueiredo do Iniciativa Liberal, voltou ao tema e referiu que “ se ponderarmos a carga fiscal com o PIB per capita estamos no fim da tabela com maior esforço fiscal”. Afonso Oliveira, do PSD, apontou mesmo um “problema de imposto-dependência” ao Governo. Ou seja, provou-se em mais um debate que o peso da carga fiscal é um argumento que a oposição à direita não quer largar.
Fábulas, La Fontaine
Este debate do Orçamento dava direito à inclusão no famoso livro de histórias uma série de adendas, mas esta com uma moral orçamental. No caso da fábula da Cigarra e da Formiga, podia ser uma nova versão (já que foi uma das citadas neste debate que também consta do livro de La Fontaine). Foi Rui Rio quem a foi buscar, quando advertiu que é a “política monetária europeia que ajuda a manter as taxas de juro a um nível anormalmente baixo”. Se subirem, avisa, “os portugueses perceberão que Portugal andou a viver de ilusões e que, tal como a cigarra na sua história com a formiga, não se preparou devidamente no Verão para estar apto para enfrentar o Inverno”. A moral vai dar ao mesmo, mas no lugar da cigarra estaria Costa e companhia e no lugar da formiga, o deputado e líder do PSD não hesitaria em colocar-se a si mesmo. Depois há também a história da Carochinha, que António Costa recuperou há dias para garantir que era à esquerda que esperava aprovar o Orçamento. Claro que a tirada foi aproveitada neste debate, pelo deputado do PSD Ricardo Batista Leite, que logo colocou o Bloco de Esquerda no papel de João Ratão (André Ventura, por seu lado, sublinhava este “namoro” BE/Governo a cada intervenção). Depois aproveitou a personagem para a aplicar a um dito popular, no que toca ao investimento anunciado pelo Governo na saúde: “A montanha pariu um ratão”. E isto porque o Governo apenas apresenta vagas promessas que não são cumpridas pela confraria socialista, comunista, bloquista e até animalista que deveria fazer corar de vergonha os seus autores, verdadeiros comparsas numa fraude democrática sem paralelo na história recente”.
André Silva, do PAN, também diz que as respostas orçamentais às áreas que coloca como prioritárias resumem-se a “pequenos apontamentos avulsos adicionados a um documento que tem como desígnio um objetivo contabilístico: o superavit”. Depois também ele se atirou para um ditado, aquela história da avestruz que não tira a cabeça da areia. “Este é um Orçamento avestruz: o Governo prefere esconder a cabeça debaixo da areia para não ter de encarar o complexo desafio de enfrentar de forma consequente os problemas do país”.
Crime e Castigo, Fiódor Dostoiévski
O crime é assumido, e o castigo também: “Assumiremos as consequências dos nossos actos”. Foi assim que os deputados do PSD Madeira (Sara Madruga da Costa, Paulo Neves e Sérgio Marques) justificaram, em conferência de imprensa, o facto de se prepararem para viabilizar o Orçamento do Estado (com a abstenção), desrespeitando o sentido de voto imposto pela bancada do PSD. No final da votação, Rui Rio deixou claro que ia informar o Conselho de Jurisdição da falta cometida por aqueles deputados, embora compreendesse que a falta tivesse sido cometida por “pressão” exercida pelo PSD Madeira. Em todo o caso, se houver castigo, eles lá estarão para o receber. Porque o crime, esse, foi premeditado e, dizem, foi por uma boa causa. “Colocamos o interesse da nossa região em primeiro lugar”, disse a deputada madeirense aos jornalistas, explicando que, com uma verba de 17 milhões de euros atribuída pelo OE à construção do novo hospital do Funchal, era impossível os deputados da Madeira chumbarem o documento. Mesmo assim, o sinal que o governo dá vale apenas para a votação na generalidade, já que nem todas as reivindicações dos deputados madeirenses foram atendidas. Até à votação final ainda há tempo… por isso é importante manter a via aberta. Mesmo que isso implique um processo disciplinar por parte do PSD? Sim.
O Imenso Adeus, Raymond Chandler
“É com tristeza que a vemos partir, apesar dos muitos debates agrestes na anterior legislatura e desejo felicidades para o futuro”. Foi assim que o presidente da Assembleia da República introduziu a subida de Assunção Cristas ao púlpito pela última vez. Daqui a duas semanas, o CDS terá congresso e, a partir do momento em que tiver um novo líder, Assunção Cristas deixa o lugar de deputada. A líder do CDS sorriu e o plenário aplaudiu, incluindo deputados da bancada socialista.
Assunção Cristas, na última intervenção que fez no plenário    MIGUEL A. LOPES/LUSA
No discurso, Cristas criticou o rumo escolhido pelo Governo socialista e reservou a última intervenção parlamentar para falar também para dentro do partido: “É o dever do CDS dizer a verdade às pessoas. É dever do CDS não baixar os braços. É dever do CDS fazer renovadamente o trabalho de construção de uma alternativa. Porque em democracia há sempre uma alternativa, se não é para hoje, é para amanhã”. Foi para mim uma honra”, rematou, sem esconder alguma comoção. Foi o imenso adeus de Assunção Cristas.
O Capital, Karl Marx
É já um clássico nos discursos do PCP: ao longo da intervenção de encerramento dos comunistas, Jerónimo de Sousa repetiu por três vezes a expressão “grande capital”. Primeiro para criticar o excedente orçamental: “Essa é uma opção do Governo do PS que, estando hoje menos condicionado do que na anterior legislatura por força dos últimos resultados eleitorais, tenta impor as suas opções de sempre, acentuando a sua submissão às imposições da União Europeia e aos interesses do grande capital”. Depois, para referir que “a maioria das empresas e sectores estratégicos estão hoje sob domínio do grande capital”. E, por fim, numa nova referência à UE: “Não nos contentamos com a rédea curta que emana de Bruxelas, nem deixaremos de contrariar os interesses do grande capital”.
O secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, durante o debate antes da votação na generalidade do Orçamento do Estado    MIGUEL A. LOPES/LUSA
Nos dois últimos dias de debate sobre Orçamento, o PCP manteve-se relativamente discreto, sem grandes tensões com os restantes partidos. E foi o excedente orçamental a merecer as maiores críticas dos comunistas, porque “é uma opção errada” que ”continua a adiar respostas a problemas centrais do país”, disse Jerónimo. “Chamemos-lhe um pífaro, se quiser, mas que há imposições da UE e que há submissão da parte do Governo é uma realidade incontornável. E não tinha de ser assim”.
No caderno de encargos da especialidade na luta contra esse “grande capital”, o PCP já fez saber que vai exigir o aumento dos salários, a “contratação de milhares de trabalhadores que fazem falta ao bom funcionamento dos serviços públicos”, o aumento da progressividade do IRS, o aumento substancial do investimento público no SNS, na Educação, na Cultura, na Justiça, na Segurança e nos Transportes, e na melhoria das prestações sociais”.
O Jogador, Fiódor Dostoiévski
É uma jogadora, na verdade. Trata-se de Joacine Katar-Moreira, a deputada única do Livre, que a julgar pela última semana poderá ser óptima no póker. Abstenção, voto a favor ou voto contra? Estava tudo em aberto, como o Observador noticiou, e mesmo com a pressão do partido para que anunciasse o sentido de voto antes da votação no hemiciclo, Katar Moreira aguentou o bluffmaté ao fim.
Conseguiu, aliás, falar aos jornalistas, esta sexta-feira no exterior do hemiciclo – a horas do voto -, e não revelar claramente a estratégia que ia seguir. Sabe, o Observador, que mesmo no partido, houve quem ficasse agarrado à tv para ver como a deputada votaria no final. Portanto, uma ótima jogadora que, ainda assim, não tinha nada na manga. Apesar do mistério e do suspense que a deputada e o partido conseguiram colar à decisão, o governo já tinha garantida a aprovação do OE com as abstenções da esquerda, divulgadas na quarta e quinta-feira, e por isso qualquer que fosse a decisão de Joacine, não teria qualquer influência no resultado final.

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