Entre a estátua de Eça, de Teixeira Lopes, como alegoria de génio e a “ficção de
arte” de Cabrita Reis, puramente
oportunista. O que não justifica a vandalização, só possível num povo vândalo.
CRÓNICA: Violência e estranheza
DELFIM SARDO PÚBLICO, 17 de Janeiro de 2020
Não sei se se recordam de uma estátua
em mármore branco, homenagem a Eça de Queiroz, com a inscrição “Sobre a nudez
forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, que havia no Largo Barão de
Quintela, à Rua do Alecrim. Foi retirada em 2001 e substituída por uma cópia em
bronze porque era sistematicamente vandalizada. Obra de Teixeira Lopes de 1903, figurativa e alegórica, sempre me
surpreendeu a violência da sua sistemática vandalização, desde as mãos
decepadas, o sexo da musa objecto de inscrições obscenas, tudo o que a
boçalidade pode inventar. Não se lhe
poderia objectar qualquer pecado minimalista, qualquer falta de manualidade
redentora, qualquer outra piedosa simplificação queixosa de incompreensão. Hipoteticamente,
toda a gente pode compreender quem ali está representado, até mesmo a metáfora
da nudez da verdade. No entanto, uma qualquer potência erótica fez com
que a martirizada estátua em pedra fosse substituída por uma cópia em bronze, a
que lá está, mais resistente e facilmente lavável — e o original em mármore
colocado no recato dos jardins do Museu da Cidade. Donde, a questão
da vandalização não reside na maior ou menor componente manual, na modernidade
da solução estética e no seu hipotético hermetismo, mas numa cultura de
agressividade em relação ao que não parece ter outro propósito senão a fruição
pública. Enfim,
uma lacuna cívica que, não podendo ser combatida, só pode ser anulada pelo
paciente e reiterado restauro. Vem
isto a propósito da polémica sobre a vandalização
da escultura da autoria de Pedro Cabrita Reis em Leça da Palmeira,
porque há algumas ideias que me parece deveriam ser tidas em consideração.
1. A
arte nas cidades tem sido historicamente inerente à própria noção de espaço
público, isto é, de espaço que é fruído colectivamente. A arte no espaço
público, ao contrário da arte que se encontra nos museus, não requer uma
vontade específica por parte dos seus usufrutuários de ser visitada. Quando
vamos a um museu vemos arte porque assim escolhemos. As obras são
enquadradas por um contexto que é o do lugar dedicado à sua apreciação, com
processos de mediação. O que acontecia com as obras de arte nas igrejas, onde
o contexto da devoção e da transcendência as fazia reconhecer para lá da sua
eventual compreensão, é hoje providenciado pelos museus, com os seus processos
de mediação e tradução. Quando somos confrontados com arte no espaço público,
as obras atravessam-se à nossa frente e não temos outro contexto para a sua
apreciação senão a nossa sensibilidade, o que nelas reconhecemos ou, nos casos
mais pobres, a metáfora que nos propõem.
2. A
arte no espaço público é, por isso, ingrata. Não pede autorização e atravessa-se
no nosso caminho, umas vezes incómoda, outras vezes impositiva. Não tem
mediação, nem tradução — pode ser uma proposta de reenquadramento da paisagem,
uma evocação ou memento. No caso da obra de Cabrita Reis é um
enquadramento da paisagem, uma estrutura rígida e branca e vertical que se
contrapõe à mobilidade e horizontalidade da linha do horizonte do mar. Faz
aquilo que a arte da paisagem sempre fez: propõe uma visão estruturada do nosso
campo visual, faz ver o já visto através de uma outra estrutura perceptiva,
recorta-se contra o campo da visão na distância. Pode-se tocar, porque está
lá, no espaço público e torna o campo visual mais consciente para o espectador.
Por outras palavras, amplifica a experiência do campo visual porque, para
quem se disponibilizar para tal, propõe uma ordem diversa em relação ao
horizonte. A sua vandalização é um triste facto da vida que deve ser
imediatamente corrigido, porque a sua função ficou corrompida, da mesma forma
que um piano tem de estar afinado para poder ser tocado. O tipo de razões
que levaram à sua vandalização pertencem a uma outra ordem de discussão, a
de saber se os recursos devem ser aplicados em arte ou noutro tipo de
investimentos. É uma discussão política entre os que pensam que a arte
deve ter um lugar na fruição colectiva, se essa escolha deve ser efectuada com
critério e risco, e os que pensam que não há lugar para a arte no espaço que é
de todos porque outras urgências o impedem — ou usam este tipo de argumento
como arma de arremesso político, violentando para tal o património colectivo.
3. A
discussão implica pressupostos que devem ser esclarecidos. A arte no espaço
público precisa de tempo para estabelecer cumplicidades com os habitantes.
Frequentemente demora até ser integrada nos afectos colectivos, até encontrar o
seu lugar de pertença. Há um enorme historial de obras que são recusadas
no momento em que são edificadas e, posteriormente, vêm a encontrar um afecto
que as assimila. O que é compreensível, mas é preciso dar tempo ao tempo,
deixar que se instaurem relações, que os passeantes por ela passem, que nela
encontrem os seus usos. E, entretanto, cuidar das obras que, apesar do seu
aspecto massivo, são criaturas frágeis, sujeitas à intempérie e aos populistas
que pretendem que tudo deve ser assimilado instantaneamente. O tempo da fruição
artística não é o mesmo do tempo de fruição de outras manifestações de
entretenimento, sobretudo no caso em que os seus destinatários são
indiferenciados e os processos de mediação inexistentes.
4.
Claro que existem sempre vozes que clamam por um qualquer mínimo denominador
comum estético, uma ficção de estética universalmente agregadora que, sendo
instantaneamente reconhecida, não suscitaria qualquer atrito porque mergulharia
no comum. Só que este comum não existe na diversidade do mundo moderno.
A linguagem artística do consenso é uma caricatura de um qualquer
neo-classicismo, refeito e macerado até não se compreender de que contexto
cultural, político, criativo e colectivo emana até perder qualquer relação com
o seu tempo e, portanto, qualquer tipo de oportunidade. Não precisamos
para nada de obras de arte que mimetizem a arte do passado, não porque a arte
do passado e os seus tópicos de representação, simbolismo ou competência
técnica sejam despiciendos, mas precisamente porque, sendo poderosos,
sobreviveram e podemos fruí-la.
5. A
história da arte dos últimos 120 anos tem vindo a espelhar o atrito inerente ao
mundo, mas também a colocar uma permanente interrogação sobre a relação da
arte com a própria materialidade das coisas porque o não-artístico foi
invadindo progressivamente o campo tradicional da arte: o vernáculo na
literatura, o gesto quotidiano na dança, o ruído na música, o objecto e a
imagem comuns nas artes visuais. Este esborratamento de fronteiras dificilmente
pode ser considerado elitista, mas por vezes dificulta o reconhecimento do
Artístico — sim, desse A grande e hierárquico que fundamentou a academia e
estabeleceu fascinantes e complexos sistemas de significação na arte desde o
Renascimento. Claro que a ilusão que muitas vezes temos de compreender
obras de Mantegna, Fra Angelico, de El Greco ou Ticiano deriva da condição de
não as vermos, mas de as reconhecermos. Quem conhece a história da jangada do
Medusa quando vê a pintura de Gericault? E, como pergunta Julian Barnes, é
necessário? Eu acho que sim, mas depois de ficar preso ao gesto, à intensidade
e, talvez, à comoção. A arte de hoje, resultado do mundo que experienciamos,
deverá certamente ser mais porosa em relação à nossa experiência, mesmo se essa
experiência é a da estranheza nessa familiaridade.
6. As
vozes que encontram uma justificação para a vandalização da obra de Cabrita Reis numa estranheza da arte moderna e contemporânea
tentam, portanto, justificar o injustificável. Pretender que um sentimento de incompreensão
permite a agressão, equivale a justificar toda a violência em relação ao que
não se compreende. Por outras palavras, justifica a violência face a
qualquer estranheza. É dentro deste quadro intelectual que surgem as
justificações piedosas da violência em relação ao outro, qualquer que ele seja.
É, por isso, um mau argumento.
A
arte no espaço público vive de contradições que são inerentes ao seu estatuto:
se, por um lado, pretende propor um reenquadramento (perceptivo, cultural) de
um determinado contexto urbano, é-lhe confiada também a tarefa de evocar, unir
e referenciar colectivamente. A conciliação entre estas funções contraditórias
só se pode exercer no tempo, por um processo de absorção, umas vezes mais
pacífico, outra, mais ácido. Pretender
darem-nos só o que já sabemos e vimos é pobre, presunçoso e paternalista. Por outras palavras, a escultura de Cabrita Reis terá de ser restaurada para um dia alguém poder, em
liberdade e face a ela, exercer a sua capacidade de juízo.
Professor Universitário e Curador
COMENTÁRIOS
Elsinor: De facto violência gratuita e vandalismo desfigurando a arte é
reprovável, é insano, é inaceitável. Mas ali não há Arte nenhuma. Ou melhor —
há a arte porque o seu autor a afirma como tal, segundo depoimento expresso
neste mesmo jornal. Acontece que não é ele a instância legitimadora — como o
não foi Duchamp no seu célebre urinol, que pelo menos se apresentou com o
propósito de provocação aberta, frontal, filosófica, e por isso conquistou o estatuto
de “arte” (no museu - legitimado). Aqui não. Aquilo é pobre. E (não queria
dizer estúpido) fraco — até como mediador para uma discutível poética. O que
emerge — de algo não sancionado por nenhuma outra instância para além da
autoral e do pagador (obviamente sujeito a suspeita) — é uma confrangedora
pobreza de espírito fingindo outra coisa.
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