sábado, 11 de janeiro de 2020

Um presente de Natal


Longa Pétala de Marde Isabel Allende. Um livro que se lê com muito prazer, por ter associados referentes do mundo próximo a uma prosa chã (que segue a direito, como é a função da prosa, como “discurso que segue em linha recta” -ao contrário do verso (< lt. “versus”), discurso que retorna continuamente, e se repega - em metro, rima, ritmo, sentido, refrão... ). Mas não deixa de ser profundamente literária, a prosa de Isabel Allende, pelo seu rigor expressivo, de uma lógica serena, sem pretensiosismos de modernidade luxuriosa, poética, ou de suspense, a dificultar, tantas vezes, o entendimento. Uma prosa contida de uma história vivida por tantos, e centrada em figuras expressivas de uma realidade que por muitos passou, não só na questão da expatriação, como nas mudanças políticas, sem, contudo, tão dramáticas vivências como as nele sintetizadas - pelo menos para nós, portugueses, de um pendor mais brando que o das gentes de sangue castelhano, bem mais poderoso e determinado.
Uma história entre guerras e a sua continuação – a Guerra Civil de Espanha, dos anos 30 - (36-39) -de combate às forças comunistas e republicanas, por um franquismo tradicionalista devastador, e a guerra no Chile de Pinochet, igualmente absurda de crueldade estapafúrdia, entre cidadãos dos mesmos espaços e raízes, em represália pelo tempo que durou a tentativa governativa socialista de Salvador Allende (70 – 73), que alterara profundamente o regime de castas e privilégios económicos a que a doutrina socialista pretendera pôr cobro nesses anos setenta, em breve espaço temporal, contudo  – graças à intervenção dos Estados Unidos, desfeiteados nos compromissos económicos não cumpridos para com a sua intrusão económica, e que logo trouxera consequências igualmente macabras na violência desmedida, pelos repositores da ordem anterior ao interregno de Allende, que morreria durante a repressão de Pinochet.
Isabel Allende não critica, contudo, a violência franquista, na longa fuga dos espanhóis comunistas até França, mas retrata, com objectividade isenta, a longa marcha de incómodos e perseguições cruéis, onde logo se destaca a heroína da história – Roser Bruguera – grávida de Guillem Dalmau, que morrerá na batalha do Rio Ebro, em 1938, segundo informação de um basco – Aitor -a Victor Dalmau, (irmão de Guillem), o qual lhe entregou a carteira encontrada com os documentos de Victor, entre os quais a foto da rapariga com quem pensava casar depois da guerra, a mesma Roser, aluna do pai de ambos os irmãos, que a acolhera desde muito jovem, na família, apiedado da sua pobreza, contrastante com a sua inteligência e jeito musical. Roser Bruguera, grávida, e Victor Dalmau, (juntamente com a mãe Carme, que depois se escapuliu), após uma penosa marcha de fuga às perseguições franquistas, conseguiram embarcar para o Chile, viagem de que o poeta Pablo Neruda fora patrocinador.
Contrariamente à placidez narrativa, embora objectiva na dureza dos pormenores, de Isabel Allende, transcrevo, de Miguel Torga, um breve relato da travessia por Espanha, nesses tempos de guerra, quando já as forças de Franco imperavam e perseguiam, destruindo, e a profunda revolta daquele sobre o espectáculo que ele e os companheiros iam presenciando, do carro que os levava, com a tímida bandeira portuguesa a isentá-los de intromissão culposa, mas não isenta da necessidade de corresponderem ao “Arriba, Franco” provocatório dos funcionários alfandegários: “Mas, à firmeza das convicções juntava-se não sei que imperativo da paisagem humana e telúrica que os olhos iam devassando constrangidamente, como se cometessem uma profanação. Homens da minha idade, manetas, coxos cegos, desfigurados, inválidos para o resto da vida; velhos, velhas e crianças cobertos de luto; e um palco imenso de terra em pousio e silêncio opressivo à espera do último acto da tragédia” (inA Criação do Mundo, III”).
Estruturalmente, a obra divide- se em 3 partes, com um número variável de capítulos, que acompanham temporalmente a movimentação das suas personagens, cada capítulo sendo acompanhado por versos do grande amigo de todos eles, o poeta Pablo Neruda, morto também na altura da guerra contra Allende:

I PARTE: Guerra e Exílio: Capítulo I: 1938; II: 1938: III: 1939; IV: 1938-1939.
II PARTE: Exílio, Amores e Desencontros: V: 1939; VI: 1939-40. VII: 1939-41; VIII: 1941-42
III PARTE: Raízes e regressos: IX: 1948 – 1970; X: 1970 – 1973; XI: 1974 – 1983; XII: 1893 – 1991;     XIII: Aqui termino de contar 1994
As personagens ir-se-ão definindo à medida das peripécias das suas vidas difíceis, os das personagens centrais – Roser, Victor, com quem aquela teve de casar para poderem embarcar no Winnipeg, - (casamento só muitos anos depois consumado, pelo grande amor que os unia, adiado pelo respeito pela memória do irmão de Victor, com quem, aliás, Roser não chegara a casar), vida penosa de esforço, mas de empreendimento, também, ela como musicóloga, ele como médico, curso que acabara, já no Chile, ambos pessoas de uma honestidade exemplar. O filho de Roser e de Guillem, e afinal reconhecido como filho de VictorMarcel; a mãe de Victor e de Guillem, Carme, entretanto recuperada pelo filho, que a convence a vir com eles para o Chile, a "Longa Pétala de Mara verdadeira pátria de todos eles.
E as figuras paralelas das suas relações primeiras, no Chile – os riquíssimos Del Solar, cuja filha Ofélia, caprichosa e ingénua, terá uma filha dos seus amores com Victor, amores jamais por ela desvendados, o padre da famíliaUrbina – encarregara-se de fazer adoptar a bebé por um casal alemão, convencendo a mãe (o padre de conivência com Dona Laura, mãe de Ofélia) de que o seu filho morrera à nascença, o que Dona Laura, não pudera calar, mais tarde, já senil, junto da fiel criada Juana e que o irmão de Ofélia – Felipe (amigo de Victor desde os primeiros tempos no Chile, para escândalo do seu pai, figura imponente de capitalista, de hábitos convencionais) - .se encarregara de procurar, por meio de ardis vários.
Maus tratos foram sofridos por Victor, (e tantos outros, em verdadeiras cenas de horror), feito prisioneiro na guerra contra Salvador Allende, por ter sido seu amigo, com quem jogava xadrez – mas o ter salvo um dos seus esbirros, figura de relevo, deu-lhe a possibilidade de partir para a Venezuela, cada vez mais enamorado da sua mulher, o filho Marcel tendo ali arranjado trabalho.
Regressarão ao Chile, a verdadeira pátria de todos eles, mas Roser morrerá cancerosa, com enorme desespero de Victor.Finalmente, encontrará uma família, nesse Chile bem-amado, o que lhe daria a pacificação interior, com essa filha e esses netos que encontrara, tarde na vida, embora.
E a conclusão do livro, com a decisão de um Victor apaziguado, de corresponder às simpáticas investidas de uma vizinha que lhe oferecia produtos da sua horta, respondendo, assim, aos apelos da filha Ingrid, para que voltasse a apaixonar-se – encerrando, com essas disposições, uma  filosofia de vida da própria Isabel Allende, de transparência e fraternidade, verdadeiramente adepta, ao que parece, de uma real capacidade de amor pelo próximo:

«A Victorpareceu-lhe voltar a ouvir Roser, quando, nos últimos momentos, lhe recordava que os seres humanos são criaturas gregárias, que não estão programadas para a solidão nem para viverem em solidão, mas sim para dar e receber. Por isso insistira tanto para que ele não se resignasse à viuvez... e chegara até a escolher-lhe uma namorada. Deu por si a pensar em Meche com uma súbita ternura. Meche. Aquela vizinha de coração aberto que lhe oferecera a gata, que lhe trazia tomates e verduras frescas da sua horta, a mulher diminuta que esculpia aquelas figuras gordas. Decidiu que, mal a sua filha partisse, lhe iria levar o que lhe restara do arroz negro com chocos e da crema catalana..
Serão, quem sabe, outras e novas navegações, pensou. E assim sempre seja... até à navegação final. 

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