“Longa Pétala de Mar” de Isabel
Allende. Um livro que se lê
com muito prazer, por ter associados referentes do mundo próximo a uma prosa
chã (que segue a direito, como é a função da prosa, como “discurso
que segue em linha recta” -ao contrário do verso (< lt. “versus”),
discurso que retorna continuamente, e se repega - em metro, rima, ritmo,
sentido, refrão... ). Mas não deixa de ser profundamente literária, a prosa de Isabel Allende, pelo seu rigor expressivo, de uma lógica serena, sem
pretensiosismos de modernidade luxuriosa, poética, ou de suspense, a dificultar,
tantas vezes, o entendimento. Uma prosa contida de uma história vivida por
tantos, e centrada em figuras expressivas de uma realidade que por muitos
passou, não só na questão da expatriação, como nas mudanças políticas, sem,
contudo, tão dramáticas vivências como as nele sintetizadas - pelo menos para nós,
portugueses, de um pendor mais brando que o das gentes de sangue castelhano,
bem mais poderoso e determinado.
Uma história entre guerras e a sua continuação – a Guerra
Civil de Espanha, dos anos 30 - (36-39) -de combate às forças comunistas e republicanas, por
um franquismo tradicionalista devastador, e a guerra no Chile de Pinochet, igualmente absurda de crueldade estapafúrdia, entre cidadãos
dos mesmos espaços e raízes, em represália pelo tempo que durou a tentativa
governativa socialista de Salvador Allende (70 – 73), que alterara profundamente o regime de castas
e privilégios económicos a que a doutrina socialista pretendera pôr cobro nesses
anos setenta, em breve espaço temporal, contudo – graças à intervenção dos Estados
Unidos, desfeiteados nos compromissos
económicos não cumpridos para com a sua intrusão económica, e que logo trouxera
consequências igualmente macabras na violência desmedida, pelos repositores da
ordem anterior ao interregno de Allende, que morreria durante a repressão de Pinochet.
Isabel Allende não
critica, contudo, a violência franquista, na longa fuga dos espanhóis comunistas
até França, mas retrata, com objectividade isenta, a longa marcha de incómodos
e perseguições cruéis, onde logo se destaca a heroína da história – Roser
Bruguera – grávida de Guillem
Dalmau, que morrerá na batalha do Rio
Ebro, em 1938, segundo informação de um basco – Aitor -a Victor Dalmau, (irmão de Guillem), o qual lhe entregou a carteira encontrada com os
documentos de Victor, entre
os quais a foto da rapariga com quem pensava casar depois da guerra, a mesma Roser, aluna do pai de ambos os irmãos, que a acolhera
desde muito jovem, na família, apiedado da sua pobreza, contrastante com a sua
inteligência e jeito musical. Roser Bruguera, grávida, e Victor Dalmau, (juntamente com a mãe Carme, que depois se escapuliu), após uma penosa marcha de
fuga às perseguições franquistas, conseguiram embarcar para o Chile, viagem de
que o poeta Pablo Neruda fora
patrocinador.
Contrariamente à placidez narrativa, embora objectiva na dureza dos
pormenores, de Isabel Allende,
transcrevo, de Miguel Torga,
um breve relato da travessia por Espanha, nesses tempos de guerra, quando já as
forças de Franco imperavam
e perseguiam, destruindo, e a profunda revolta daquele sobre o espectáculo que
ele e os companheiros iam presenciando, do carro que os levava, com a tímida
bandeira portuguesa a isentá-los de intromissão culposa, mas não isenta da
necessidade de corresponderem ao “Arriba, Franco” provocatório dos
funcionários alfandegários: “Mas, à firmeza das convicções juntava-se
não sei que imperativo da paisagem humana e telúrica que os olhos iam devassando
constrangidamente, como se cometessem uma profanação. Homens da minha idade,
manetas, coxos cegos, desfigurados, inválidos para o resto da vida; velhos,
velhas e crianças cobertos de luto; e um palco imenso de terra em pousio e
silêncio opressivo à espera do último acto da tragédia” (in “A
Criação do Mundo, III”).
Estruturalmente, a obra divide- se em 3 partes, com um número variável
de capítulos, que acompanham temporalmente a movimentação das suas personagens,
cada capítulo sendo acompanhado por versos do grande amigo de todos eles, o
poeta Pablo Neruda, morto
também na altura da guerra contra Allende:
I PARTE: Guerra
e Exílio: Capítulo I: 1938; II:
1938: III: 1939; IV: 1938-1939.
II PARTE: Exílio, Amores e Desencontros: V: 1939; VI: 1939-40.
VII: 1939-41; VIII: 1941-42
III PARTE: Raízes e regressos: IX: 1948 – 1970; X: 1970 –
1973; XI: 1974 – 1983; XII: 1893 – 1991; XIII: Aqui termino de contar 1994
As personagens ir-se-ão definindo à medida das peripécias das suas
vidas difíceis, os das personagens centrais – Roser, Victor, com quem aquela teve de casar para poderem embarcar
no Winnipeg, - (casamento só
muitos anos depois consumado, pelo grande amor que os unia, adiado pelo
respeito pela memória do irmão de Victor, com quem, aliás, Roser não chegara a casar), vida penosa de esforço, mas de
empreendimento, também, ela como musicóloga, ele como médico, curso que acabara,
já no Chile, ambos pessoas de uma honestidade exemplar. O filho de Roser e de
Guillem, e afinal reconhecido como filho de Victor – Marcel; a mãe de Victor e
de Guillem, Carme, entretanto recuperada pelo filho, que a convence a
vir com eles para o Chile, a "Longa Pétala de Mar”a verdadeira pátria de todos eles.
E as figuras paralelas das suas relações primeiras, no Chile – os riquíssimos Del Solar, cuja filha Ofélia, caprichosa e ingénua, terá uma filha dos seus amores
com Victor, amores jamais
por ela desvendados, o padre da família – Urbina – encarregara-se de fazer adoptar a bebé por um casal
alemão, convencendo a mãe (o padre de conivência com Dona Laura, mãe de Ofélia) de que o seu filho morrera à nascença, o que Dona
Laura, não pudera calar, mais tarde, já
senil, junto da fiel criada Juana e que o irmão de Ofélia – Felipe (amigo de Victor desde os primeiros tempos no Chile, para escândalo do seu pai, figura imponente de
capitalista, de hábitos convencionais) - .se encarregara de procurar, por meio de ardis vários.
Maus tratos foram sofridos por Victor, (e tantos outros, em verdadeiras cenas de horror),
feito prisioneiro na guerra contra Salvador Allende, por ter sido seu amigo, com quem jogava xadrez – mas
o ter salvo um dos seus esbirros, figura de relevo, deu-lhe a possibilidade de
partir para a Venezuela, cada vez mais enamorado da sua mulher, o filho Marcel
tendo ali arranjado trabalho.
Regressarão ao Chile, a verdadeira pátria de todos eles, mas Roser morrerá cancerosa, com enorme desespero de Victor.Finalmente, encontrará uma família, nesse Chile
bem-amado, o que lhe daria a pacificação interior, com essa filha e esses netos
que encontrara, tarde na vida, embora.
E a conclusão do livro, com a decisão de um Victor apaziguado, de corresponder às simpáticas investidas
de uma vizinha que lhe oferecia produtos da sua horta, respondendo, assim, aos
apelos da filha Ingrid, para
que voltasse a apaixonar-se – encerrando, com essas disposições, uma filosofia de vida da própria Isabel
Allende, de transparência e fraternidade,
verdadeiramente adepta, ao que parece, de uma real capacidade de amor pelo
próximo:
«A Victorpareceu-lhe
voltar a ouvir Roser, quando, nos últimos momentos, lhe recordava que os seres
humanos são criaturas gregárias, que não estão programadas para a solidão nem
para viverem em solidão, mas sim para dar e receber. Por isso insistira tanto
para que ele não se resignasse à viuvez... e chegara até a escolher-lhe uma
namorada. Deu por si a pensar em Meche
com uma súbita ternura. Meche.
Aquela vizinha de coração aberto que lhe oferecera a gata, que lhe trazia
tomates e verduras frescas da sua horta, a mulher diminuta que esculpia aquelas
figuras gordas. Decidiu que, mal a sua filha partisse, lhe iria levar o que lhe
restara do arroz negro com chocos e da crema catalana..
Serão, quem sabe, outras e novas navegações,
pensou. E assim sempre seja... até à navegação final.
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