Enviado por João Sena: Do blog de David Martelo, “A BIGORNA” mais uma narrativa, clara e infelizmente
não de ficção, nos seus inícios, quando não se prognosticavam ainda os horrores
a vir, tentando impedir que deflagrasse a tragédia que se seguiria.
1938 – A TRAGÉDIA DE MUNIQUE
2.ª
Parte
Winston
Churchill
A
humilhação sentida após as propostas anglo-francesas levou o governo checo à
demissão. Um governo não-partidário foi formado sob a chefia do general Syrovy,
comandante das legiões checoslovacas na Sibéria, durante a Guerra Mundial. Em
22 de Setembro, o presidente Benés dirigia à nação checa, pela rádio, um apelo
à calma, pleno de dignidade. Enquanto Benés preparava o seu discurso,
Chamberlain tomava o avião para a segunda entrevista com Hitler, desta vez na
vila renana de Godesberg. (…)
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1938 – A TRAGÉDIA DE MUNIQUE 3.ª Parte Winston Churchill
Enquanto
o Führer se
encontrava em conflito com os seus generais, o Sr. Chamberlain, pela sua parte, preparava-se para endereçar uma
mensagem radiodifundida à nação inglesa.
Na tarde de 27 de Setembro, pronunciou as seguintes palavras:
« É horrível,
fantástico, incrível, sermos obrigados a cavar trincheiras e aprontar as
máscaras antigás, por causa de uma querela num país longínquo, entre gentes de
que nada sabemos!... Eu não hesitaria mesmo em fazer uma terceira viagem à
Alemanha, se pensasse que serviria para alguma coisa... Eu próprio sou um homem
com espírito pacífico no mais fundo da minha alma. Um conflito armado entre
nações constitui, para mim, um pesadelo; mas, se eu estivesse convencido de que
uma nação qualquer tinha decidido dominar o mundo através da ameaça da sua
força, consideraria que é um dever opor-lhe resistência. Sob uma tal dominação,
com efeito, a vida de um povo que tem fá na liberdade não valeria a pena ser
vivida. Mas a guerra é uma coisa horrível, e, antes de nos envolvermos numa
guerra, é preciso que estejamos bem seguros de que o que está em jogo é
essencial.»
Após
a publicação desta mensagem, cuidadosamente equilibrada, o Sr. Chamberlain
recebeu a resposta de Hitler à carta que ele lhe havia enviado por intermédio
de Sir Horace Wilson. A carta trazia uma réstia de esperança. Hitler
declarava-se disposto a associar-se à garantia das novas fronteiras da
Checoslováquia, e dizia-se pronto a comprometer-se relativamente à forma de organização
do novo plebiscito. Não havia tempo a perder. O ultimato alemão contido no
memorando de Godesberg expiraria às 14 horas do dia seguinte, 28 de Setembro.
Por conseguinte, Chamberlain redigiu para Hitler a seguinte mensagem
pessoal:
«Após a leitura da sua carta, estou
persuadido de que todos os objectivos essenciais por si visados podem ser
alcançados sem guerra e sem demora. Estou pronto a ir eu próprio a Berlim,
imediatamente, discutir as modalidades da transmissão, consigo e com os
representantes do governo checo, assim como, se for vosso desejo, com os
representantes da França e da Itália. Estou convencido de que, numa semana,
poderemos chegar a um acordo». (1)
Ao
mesmo tempo, telegrafava a Mussolini para o informar deste último apelo a
Hitler:
«
Confio que Vossa Excelência informe o chanceler da Alemanha de que tem a
intenção de se fazer representar e que o persuada a aceitar a minha proposta, a
qual manterá os nossos povos afastados da guerra. »
Um
dos traços marcantes desta crise é o facto de ela parecer não ter dado azo a
nenhuma consulta confidencial entre os governos de Londres e de Paris. Encontravam-se de acordo nas
(1
FIELING, Keith, Life of Neville Chamberlain, p. 372. )
grandes
linhas, mas verificavam-se poucos, ou nenhuns, contactos pessoais. Enquanto
o Sr. Chamberlain escrevia estas duas cartas sem consultar nem o governo
francês nem os seus próprios colegas do gabinete, os ministros franceses
tomavam as suas medidas, separadamente, mas paralelas às nossas. Pudemos ver
qual era, na imprensa francesa, a importância das forças que se opunham à
resistência à Alemanha, e como os jornais parisienses, sob a inspiração do
ministro dos Negócios Estrangeiros francês, haviam insinuado que o comunicado
muito firme dos ingleses, onde a Rússia era mencionada, poderia ser apócrifo.
O embaixador da França em Berlim recebeu instruções, na noite de 27, para
endereçar à Alemanha novas propostas, concedendo-lhe a imediata ocupação de um
território mais vasto na zona dos Sudetas. Enquanto o
Sr. François-Poncet (2) se encontrava
com Hitler, chegou
uma mensagem de Mussolini,
aconselhando a aceitação da ideia de Chamberlain no sentido de reunir uma
conferência, e adiantando que a Itália estaria presente. Em 28 de Setembro, às 15 horas, Hitler enviou mensagens a Chamberlain e a Daladier (3) ,
propondo, para o dia seguinte, uma reunião, em Munique, com a presença de Mussolini. À mesma hora, o Sr. Chamberlain pronunciando um discurso na Câmara dos Comuns,
procedia à exposição do conjunto dos últimos acontecimentos. Quando chegou
ao fim do seu discurso, lorde Halifax (4) , que assistia à sessão na Galeria dos Pares, fez-lhe
passar uma mensagem que o convidava a ir à conferência de Munique. Nesse
instante, o Sr. Chamberlain falava da carta que enviara a Mussolini e dos
resultados da sua iniciativa:
«Em resposta à mensagem que enviei ao Sr.
Mussolini, fui informado de que pelo Duce foram endereçadas instruções..., nos
termos das quais, se a Itália estava decidida a manter todos os seus
compromissos de fidelidade para com a Alemanha, Mussolini esperava, no entanto,
tendo em vista a grande importância do pedido que lhe foi remetido pelo governo
de Sua Majestade, que o Sr. Hitler arranjaria maneira de adiar, por pelo menos
vinte e quatro horas, a decisão que devia, segundo o que o chanceler havia dito
a Sir Horace Wilson, entrar em vigor às 14 horas de hoje, de modo a que o Sr.
Mussolini pudesse reexaminar a situação e esforçar-se por encontrar uma solução
pacífica. Em resposta, o Sr. Hitler
consentiu em adiar a mobilização por vinte e quatro horas... Não é tudo. Agora,
tenho mais qualquer coisa a anunciar à Câmara. Acabo de ser informado de que o
Sr. Hitler me convidou para um encontro em Munique, amanhã de manhã. Endereçou
o mesmo convite aos Srs. Mussolini e Daladier. O Sr. Mussolini aceitou e não
tenho qualquer dúvida de que o Sr. Daladier também aceitará. Não preciso de
dizer qual será a minha resposta... Estou certo de que a Câmara está pronta a
autorizar-me a ir ver o que poderei retirar desta última tentativa.»
Assim, pela terceira vez, o Sr. Chamberlain
voou para a Alemanha.
* * * *
Foram
escritos diversos relatos desta memorável reunião, e não podemos, aqui,
fazer mais do que registar alguns traços particulares. Não foi endereçado
convite à Rússia. E, os próprios checos não foram admitidos nas reuniões.
O governo checo tinha sido informado, com algumas palavras secas, na noite
de 28, de que iria ter lugar no dia seguinte uma conferência com representantes
das quatro potências europeias. Os “quatro grandes” chegaram rapidamente a um
acordo. As conversações começaram ao meio dia e duraram até às 2 horas da
madrugada seguinte. Foi redigido um memorando, o qual foi assinado às 2 horas
da madrugada de 30 de Setembro. Consistia, essencialmente, na aceitação do
ultimato de
(2 André François-Poncet, embaixador da França em Berlim. (Nota do
tradutor) 3 Édouard
Daladier, chefe do governo francês. (Nota do tradutor) 4 Edward Frederick Lindley Wood, 1.º Conde de
Halifax, desempenhava as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros. (Nota
do tradutor) )
Godesberg. A evacuação dos Sudetas teria
lugar em cinco etapas, a contar de 1 de Outubro, e deveria estar concluída em
dez dias. Uma comissão internacional fixaria o traçado definitivo das
fronteiras. O conhecimento do documento foi dado aos delegados checos, os quais
tinham sido autorizados a vir a Munique para tomarem nota das decisões.
Enquanto os três homens de Estado aguardavam que os especialistas redigissem o
texto definitivo, o primeiro-ministro [Chamberlain] perguntou a Hitler se
estava interessado em ter com ele uma reunião privada. Hitler “aceitou com
entusiasmo” (5) . Os dois
homens de Estado encontraram-se no apartamento de Hitler, em Munique, na manhã
de 30 de Setembro; ficaram a sós, apenas com o intérprete. Chamberlain
apresentou um projecto de declaração, por ele preparado, nos seguintes termos:
«Nós, o Führer e Chanceler da
Alemanha, e o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, tivemos hoje uma reunião
suplementar, e estamos de acordo em reconhecer que a questão das relações
angloalemãs tem para os nossos dois países e para a Europa uma importância
primordial. Consideramos o acordo assinado na passada noite e o acordo naval
anglo-alemão como simbólicos do desejo dos dois povos e nunca mais entrarem em
guerra, um contra o outro. Estamos decididos a que este método de consultas
seja adoptado para todas as outras questões que sejam do interesse dos nossos
dois países; estamos decididos a prosseguir os esforços com vista a remover as
possíveis causas de desacordo entre nós, e, desse modo, contribuir para a manutenção
da paz na Europa.»
Hitler leu a nota e assinou-a sem hesitar.
Reunido com o seu aliado italiano, deve ter discutido soluções menos
amistosas. Uma carta escrita por Mussolini a Hitler, em Junho de 1940,
e publicada mais tarde, é reveladora:
«Führer Roma, 26.VI.40 Agora que
chegou o momento de malhar na Inglaterra, recordo o que eu lhe disse, em
Munique, acerca da participação directa da Itália no assalto à ilha. Estou
pronto a tomar parte, com forças terrestres e aéreas, e sabe bem quanto o
desejo. Peço-lhe que me responda de modo a que eu possa passar à fase de acção.
Esperando esse dia, envio-lhe as minhas saudações de camaradagem. Mussolini (6)
Não
há registo de qualquer outra reunião entre Hitler e Mussolini, em Munique, no
espaço de tempo intermédio. Chamberlain regressou a Inglaterra. Em Heston, onde
aterrou, brandiu a declaração comum que fizera assinar a Hitler, e leu-a aos
notáveis e à multidão que o aguardavam. Ao deixar o aeródromo, à medida que a
viatura que o transportava abria caminho por entre a multidão que o aclamava,
dizia para Halifax, sentado a seu lado: “Nada disto durará mais do que três
meses”. Mas, das janelas de Downing Street, brandiu novamente a sua folha
de papel e pronunciou
5 FIELING, Keith, Idem, p. 376. 6 Les
lettres secrètes échangés para Hitler et Mussolini. Introduction de André
Francois-Poncet.
as
seguintes palavras:
«É a segunda vez na nossa história que foi trazida da Alemanha até
Downing Street a paz com honra. Julgo que é a paz para o nosso tempo.» (7)
* * * *
Presentemente,
conhecemos a resposta que o marechal Keitel
deu à questão específica que lhe colocou o representante checo no julgamento de
Nuremberga: O coronel Eger, representante da Checoslováquia, pergunta ao
marechal Keitel: “O Reich teria atacado a Checoslováquia, em
1938, se as potências ocidentais tivessem apoiado Praga?”
O
marechal Keitel respondeu: “Seguramente não. Militarmente nós não
estávamos suficientemente fortes. O objectivo de Munique [quer dizer, a obtenção do acordo de Munique] era eliminar a Rússia
da Europa, ganhar tempo e completar o armamento alemão.”(8)
* * * *
A
clarividência de Hitler impusera-se, uma vez mais, de maneira decisiva. O
Estado-Maior alemão fora completamente confundido. Uma vez mais, no fim de
contas, o Führer havia tido razão. Sozinho, com o seu génio e a sua intuição,
havia pesado com exactidão todas as possibilidades militares e políticas. Uma vez mais, como no caso da Renânia, a direcção
do Führer tinha-se revelado magistral e triunfado sobre a oposição dos seus
chefes militares. Todos os seus generais eram patriotas. Aspiravam ver a Mãe
Pátria a reconquistar a sua posição no mundo. Devotavam-se, noite e dia, à
busca de todas as formas possíveis de reforçar o seu exército. Sentiram, por
isso, dolorosamente, o facto de se sentirem tão inferiores ao acontecimento, e,
em muitos casos, a sua admiração por Hitler, pelos seus dons de comando e pela
sua sorte miraculosa, fez-lhes superar a antipatia e a desconfiança com que até
aí o olhavam. Havia ali, certamente, uma estrela a seguir, um guia a quem
obedecer. É assim que Hitler se torna, finalmente, o senhor incontestado da
Alemanha, e a via ficou aberta para a realização do grande desígnio. Os
conspiradores, que se resignaram, não foram traídos pelos seus camaradas do
Exército.
* * * *
É talvez conveniente colocar aqui alguns
princípios de moral e de acção, susceptíveis de servirem de guia no futuro.
Nenhum caso deste tipo pode ser separado das circunstâncias que o acompanham.
Os factos são, muitas vezes, desconhecidos à época e vemo-nos reduzidos a fazer
conjecturas, mais ou menos falseadas pelas opiniões e intenções daqueles que
emitem um julgamento. Aqueles cujo temperamento ou carácter os leva a imaginar
soluções bem talhadas e definitivas de problemas difíceis ou obscuros, e que
estão prontos a bater-se de cada vez que um desafio é lançado por uma potência
estrangeira, não têm sempre razão. Por
outro lado, aqueles que têm tendência a curvar a cerviz, a procurar paciente e
seguramente compromissos pacíficos, não estão sempre errados. Pelo contrário, na
(7) FIELING, Keith, Idem, p.
3816. (8) Citado em REYNAUD, Paul, La France a sauvé l’Europe, I, nota da p.
561.
maioria
dos casos podem ter razão, não só no plano moral como também do ponto de vista
prático. Quantas guerras não foram evitadas graças à paciência e a uma
persistente boa vontade! A religião e a virtude encorajam do mesmo modo a
docilidade e a humildade, não só nas relações entre os homens mas também entre
as nações. Quantas guerras não foram desencadeadas levianamente por
atiçadores de discórdias! Quantos mal-entendidos conduziram a guerras
que podiam ter sido evitadas por contemporização! Quantos países se envolveram
entre si em guerras cruéis, para se tornarem, após alguns anos de paz, não só
amigos, mas aliados! O Sermão
da Montanha constitui
a última palavra da moral cristã. Todo o mundo respeita os Quakers. No entanto,
não é nestas bases que os ministros assumem a responsabilidade do governo dos
Estados. O seu primeiro dever é lidar com as outras nações de maneira a evitar
os conflitos e a guerra, e de prevenir a agressão sob todas as suas formas,
seja ela de origem nacionalista ou ideológica. Mas a segurança do Estado, a
salvaguarda da vida e da liberdade dos seus concidadãos, aos quais devem a sua
posição, tornam correcto e imperativo, como último argumento ou quando foi
alcançada uma convicção final e segura, que o recurso à força não seja
excluído. Se as circunstâncias forem tais que o justifiquem, impõe-se o emprego
da força. E, em tal caso, ela deve ser usada nas condições mais favoráveis. Não
há mérito algum em adiar uma guerra por um ano se, quando ela se desencadeia,
se revela uma guerra muito pior ou mais difícil de vencer. São estes os
tormentosos dilemas nos quais a humanidade, no decurso dos tempos, tem sido
frequentemente envolvida. O juízo final acerca dos mesmos só pode ser registado
pela história em relação aos factos do caso, nos precisos termos em que, à
época, eram do conhecimento das partes e, também, consoante foram
subsequentemente provados. Resta, de
qualquer maneira, um guia útil, nomeadamente, para uma nação: o dever de manter
a sua palavra e agir em conformidade com as obrigações assumidas mediante
tratados em relação aos seus aliados. Este guia chama-se honra. Por
desconcertante que possa parecer, o que os homens assim designam nem sempre
corresponde à moral cristã. A Honra é, muitas
vezes, influenciada por esse elemento de orgulho que entra em tão grande parte
na sua concepção. Não
poderíamos defender, por mais sedutor que parecesse, um código de honra exagerado,
se ele conduzisse a acções completamente inúteis ou irrazoáveis. Mas chegara
o momento em que a Honra apontava o caminho do Dever, e onde uma justa
apreciação dos factos teria assim dado mais força aos imperativos por ela
ditados. Quando o governo francês abandonou ao seu destino a Checoslováquia,
sua fiel aliada, esse gesto foi da sua parte um triste incumprimento, o qual
foi seguido de consequências terríveis. Uma política sagaz e justa, com mais
espírito cavalheiresco, e um sentido de honra e simpatia por um pequeno povo
ameaçado, teriam formado um conjunto de forças irresistíveis. A Grã-Bretanha,
que, seguramente, teria combatido se estivesse comprometida por um tratado,
estava então profundamente envolvida, e, deve ficar registado, com tristeza,
que o governo britânico não só aprovou como incentivou o governo francês a
seguir aquela via funesta.
(In Winston Churchill, The Second World War. Tradução de David Martelo
a partir da versão francesa da obra – Mémoires sur la deuxième Guerre Mondiale
– Vol. I – L’Orage Approche – D’Une Guerre à l’autre – 1919-1939, Plon, Paris,
1948, pp. 321-327. – Novembro de 2019)
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