quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Coisas passadas, antes do minuto fatal



Enviado por João Sena: Do blog de David Martelo, “A BIGORNA” mais uma narrativa, clara e infelizmente não de ficção, nos seus inícios, quando não se prognosticavam ainda os horrores a vir, tentando impedir que deflagrasse a tragédia que se seguiria.
1938 – A TRAGÉDIA DE MUNIQUE
2.ª Parte
Winston Churchill
A humilhação sentida após as propostas anglo-francesas levou o governo checo à demissão. Um governo não-partidário foi formado sob a chefia do general Syrovy, comandante das legiões checoslovacas na Sibéria, durante a Guerra Mundial. Em 22 de Setembro, o presidente Benés dirigia à nação checa, pela rádio, um apelo à calma, pleno de dignidade. Enquanto Benés preparava o seu discurso, Chamberlain tomava o avião para a segunda entrevista com Hitler, desta vez na vila renana de Godesberg. (…)

1938 – A TRAGÉDIA DE MUNIQUE     3.ª Parte Winston Churchill
Enquanto o Führer se encontrava em conflito com os seus generais, o Sr. Chamberlain, pela sua parte, preparava-se para endereçar uma mensagem radiodifundida à nação inglesa. Na tarde de 27 de Setembro, pronunciou as seguintes palavras:
« É horrível, fantástico, incrível, sermos obrigados a cavar trincheiras e aprontar as máscaras antigás, por causa de uma querela num país longínquo, entre gentes de que nada sabemos!... Eu não hesitaria mesmo em fazer uma terceira viagem à Alemanha, se pensasse que serviria para alguma coisa... Eu próprio sou um homem com espírito pacífico no mais fundo da minha alma. Um conflito armado entre nações constitui, para mim, um pesadelo; mas, se eu estivesse convencido de que uma nação qualquer tinha decidido dominar o mundo através da ameaça da sua força, consideraria que é um dever opor-lhe resistência. Sob uma tal dominação, com efeito, a vida de um povo que tem fá na liberdade não valeria a pena ser vivida. Mas a guerra é uma coisa horrível, e, antes de nos envolvermos numa guerra, é preciso que estejamos bem seguros de que o que está em jogo é essencial.»
Após a publicação desta mensagem, cuidadosamente equilibrada, o Sr. Chamberlain recebeu a resposta de Hitler à carta que ele lhe havia enviado por intermédio de Sir Horace Wilson. A carta trazia uma réstia de esperança. Hitler declarava-se disposto a associar-se à garantia das novas fronteiras da Checoslováquia, e dizia-se pronto a comprometer-se relativamente à forma de organização do novo plebiscito. Não havia tempo a perder. O ultimato alemão contido no memorando de Godesberg expiraria às 14 horas do dia seguinte, 28 de Setembro. Por conseguinte, Chamberlain redigiu para Hitler a seguinte mensagem pessoal:
«Após a leitura da sua carta, estou persuadido de que todos os objectivos essenciais por si visados podem ser alcançados sem guerra e sem demora. Estou pronto a ir eu próprio a Berlim, imediatamente, discutir as modalidades da transmissão, consigo e com os representantes do governo checo, assim como, se for vosso desejo, com os representantes da França e da Itália. Estou convencido de que, numa semana, poderemos chegar a um acordo». (1)
Ao mesmo tempo, telegrafava a Mussolini para o informar deste último apelo a Hitler:
« Confio que Vossa Excelência informe o chanceler da Alemanha de que tem a intenção de se fazer representar e que o persuada a aceitar a minha proposta, a qual manterá os nossos povos afastados da guerra. »
Um dos traços marcantes desta crise é o facto de ela parecer não ter dado azo a nenhuma consulta confidencial entre os governos de Londres e de Paris. Encontravam-se de acordo nas

(1 FIELING, Keith, Life of Neville Chamberlain, p. 372. )

grandes linhas, mas verificavam-se poucos, ou nenhuns, contactos pessoais. Enquanto o Sr. Chamberlain escrevia estas duas cartas sem consultar nem o governo francês nem os seus próprios colegas do gabinete, os ministros franceses tomavam as suas medidas, separadamente, mas paralelas às nossas. Pudemos ver qual era, na imprensa francesa, a importância das forças que se opunham à resistência à Alemanha, e como os jornais parisienses, sob a inspiração do ministro dos Negócios Estrangeiros francês, haviam insinuado que o comunicado muito firme dos ingleses, onde a Rússia era mencionada, poderia ser apócrifo. O embaixador da França em Berlim recebeu instruções, na noite de 27, para endereçar à Alemanha novas propostas, concedendo-lhe a imediata ocupação de um território mais vasto na zona dos Sudetas. Enquanto o Sr. François-Poncet (2) se encontrava com Hitler, chegou uma mensagem de Mussolini, aconselhando a aceitação da ideia de Chamberlain no sentido de reunir uma conferência, e adiantando que a Itália estaria presente. Em 28 de Setembro, às 15 horas, Hitler enviou mensagens a Chamberlain e a Daladier (3) , propondo, para o dia seguinte, uma reunião, em Munique, com a presença de Mussolini. À mesma hora, o Sr. Chamberlain pronunciando um discurso na Câmara dos Comuns, procedia à exposição do conjunto dos últimos acontecimentos. Quando chegou ao fim do seu discurso, lorde Halifax (4) , que assistia à sessão na Galeria dos Pares, fez-lhe passar uma mensagem que o convidava a ir à conferência de Munique. Nesse instante, o Sr. Chamberlain falava da carta que enviara a Mussolini e dos resultados da sua iniciativa:
«Em resposta à mensagem que enviei ao Sr. Mussolini, fui informado de que pelo Duce foram endereçadas instruções..., nos termos das quais, se a Itália estava decidida a manter todos os seus compromissos de fidelidade para com a Alemanha, Mussolini esperava, no entanto, tendo em vista a grande importância do pedido que lhe foi remetido pelo governo de Sua Majestade, que o Sr. Hitler arranjaria maneira de adiar, por pelo menos vinte e quatro horas, a decisão que devia, segundo o que o chanceler havia dito a Sir Horace Wilson, entrar em vigor às 14 horas de hoje, de modo a que o Sr. Mussolini pudesse reexaminar a situação e esforçar-se por encontrar uma solução pacífica. Em resposta, o Sr. Hitler consentiu em adiar a mobilização por vinte e quatro horas... Não é tudo. Agora, tenho mais qualquer coisa a anunciar à Câmara. Acabo de ser informado de que o Sr. Hitler me convidou para um encontro em Munique, amanhã de manhã. Endereçou o mesmo convite aos Srs. Mussolini e Daladier. O Sr. Mussolini aceitou e não tenho qualquer dúvida de que o Sr. Daladier também aceitará. Não preciso de dizer qual será a minha resposta... Estou certo de que a Câmara está pronta a autorizar-me a ir ver o que poderei retirar desta última tentativa.»
 Assim, pela terceira vez, o Sr. Chamberlain voou para a Alemanha.
* * * *
Foram escritos diversos relatos desta memorável reunião, e não podemos, aqui, fazer mais do que registar alguns traços particulares. Não foi endereçado convite à Rússia. E, os próprios checos não foram admitidos nas reuniões. O governo checo tinha sido informado, com algumas palavras secas, na noite de 28, de que iria ter lugar no dia seguinte uma conferência com representantes das quatro potências europeias. Os “quatro grandes” chegaram rapidamente a um acordo. As conversações começaram ao meio dia e duraram até às 2 horas da madrugada seguinte. Foi redigido um memorando, o qual foi assinado às 2 horas da madrugada de 30 de Setembro. Consistia, essencialmente, na aceitação do ultimato de

(2 André François-Poncet, embaixador da França em Berlim. (Nota do tradutor) 3 Édouard Daladier, chefe do governo francês. (Nota do tradutor) 4 Edward Frederick Lindley Wood, 1.º Conde de Halifax, desempenhava as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros. (Nota do tradutor) )

 Godesberg. A evacuação dos Sudetas teria lugar em cinco etapas, a contar de 1 de Outubro, e deveria estar concluída em dez dias. Uma comissão internacional fixaria o traçado definitivo das fronteiras. O conhecimento do documento foi dado aos delegados checos, os quais tinham sido autorizados a vir a Munique para tomarem nota das decisões. Enquanto os três homens de Estado aguardavam que os especialistas redigissem o texto definitivo, o primeiro-ministro [Chamberlain] perguntou a Hitler se estava interessado em ter com ele uma reunião privada. Hitler “aceitou com entusiasmo” (5) . Os dois homens de Estado encontraram-se no apartamento de Hitler, em Munique, na manhã de 30 de Setembro; ficaram a sós, apenas com o intérprete. Chamberlain apresentou um projecto de declaração, por ele preparado, nos seguintes termos:
«Nós, o Führer e Chanceler da Alemanha, e o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, tivemos hoje uma reunião suplementar, e estamos de acordo em reconhecer que a questão das relações angloalemãs tem para os nossos dois países e para a Europa uma importância primordial. Consideramos o acordo assinado na passada noite e o acordo naval anglo-alemão como simbólicos do desejo dos dois povos e nunca mais entrarem em guerra, um contra o outro. Estamos decididos a que este método de consultas seja adoptado para todas as outras questões que sejam do interesse dos nossos dois países; estamos decididos a prosseguir os esforços com vista a remover as possíveis causas de desacordo entre nós, e, desse modo, contribuir para a manutenção da paz na Europa.»
 Hitler leu a nota e assinou-a sem hesitar. Reunido com o seu aliado italiano, deve ter discutido soluções menos amistosas. Uma carta escrita por Mussolini a Hitler, em Junho de 1940, e publicada mais tarde, é reveladora:
 «Führer Roma, 26.VI.40 Agora que chegou o momento de malhar na Inglaterra, recordo o que eu lhe disse, em Munique, acerca da participação directa da Itália no assalto à ilha. Estou pronto a tomar parte, com forças terrestres e aéreas, e sabe bem quanto o desejo. Peço-lhe que me responda de modo a que eu possa passar à fase de acção. Esperando esse dia, envio-lhe as minhas saudações de camaradagem. Mussolini (6)
Não há registo de qualquer outra reunião entre Hitler e Mussolini, em Munique, no espaço de tempo intermédio. Chamberlain regressou a Inglaterra. Em Heston, onde aterrou, brandiu a declaração comum que fizera assinar a Hitler, e leu-a aos notáveis e à multidão que o aguardavam. Ao deixar o aeródromo, à medida que a viatura que o transportava abria caminho por entre a multidão que o aclamava, dizia para Halifax, sentado a seu lado: “Nada disto durará mais do que três meses”. Mas, das janelas de Downing Street, brandiu novamente a sua folha de papel e pronunciou

5 FIELING, Keith, Idem, p. 376. 6 Les lettres secrètes échangés para Hitler et Mussolini. Introduction de André Francois-Poncet.

as seguintes palavras:
«É a segunda vez na nossa história que foi trazida da Alemanha até Downing Street a paz com honra. Julgo que é a paz para o nosso tempo.» (7)
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 Presentemente, conhecemos a resposta que o marechal Keitel deu à questão específica que lhe colocou o representante checo no julgamento de Nuremberga: O coronel Eger, representante da Checoslováquia, pergunta ao marechal Keitel:O Reich teria atacado a Checoslováquia, em 1938, se as potências ocidentais tivessem apoiado Praga?”
O marechal Keitel respondeu: Seguramente não. Militarmente nós não estávamos suficientemente fortes. O objectivo de Munique [quer dizer, a obtenção do acordo de Munique] era eliminar a Rússia da Europa, ganhar tempo e completar o armamento alemão.”(8)
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A clarividência de Hitler impusera-se, uma vez mais, de maneira decisiva. O Estado-Maior alemão fora completamente confundido. Uma vez mais, no fim de contas, o Führer havia tido razão. Sozinho, com o seu génio e a sua intuição, havia pesado com exactidão todas as possibilidades militares e políticas. Uma vez mais, como no caso da Renânia, a direcção do Führer tinha-se revelado magistral e triunfado sobre a oposição dos seus chefes militares. Todos os seus generais eram patriotas. Aspiravam ver a Mãe Pátria a reconquistar a sua posição no mundo. Devotavam-se, noite e dia, à busca de todas as formas possíveis de reforçar o seu exército. Sentiram, por isso, dolorosamente, o facto de se sentirem tão inferiores ao acontecimento, e, em muitos casos, a sua admiração por Hitler, pelos seus dons de comando e pela sua sorte miraculosa, fez-lhes superar a antipatia e a desconfiança com que até aí o olhavam. Havia ali, certamente, uma estrela a seguir, um guia a quem obedecer. É assim que Hitler se torna, finalmente, o senhor incontestado da Alemanha, e a via ficou aberta para a realização do grande desígnio. Os conspiradores, que se resignaram, não foram traídos pelos seus camaradas do Exército.
* * * *
É talvez conveniente colocar aqui alguns princípios de moral e de acção, susceptíveis de servirem de guia no futuro. Nenhum caso deste tipo pode ser separado das circunstâncias que o acompanham. Os factos são, muitas vezes, desconhecidos à época e vemo-nos reduzidos a fazer conjecturas, mais ou menos falseadas pelas opiniões e intenções daqueles que emitem um julgamento. Aqueles cujo temperamento ou carácter os leva a imaginar soluções bem talhadas e definitivas de problemas difíceis ou obscuros, e que estão prontos a bater-se de cada vez que um desafio é lançado por uma potência estrangeira, não têm sempre razão. Por outro lado, aqueles que têm tendência a curvar a cerviz, a procurar paciente e seguramente compromissos pacíficos, não estão sempre errados. Pelo contrário, na

(7)  FIELING, Keith, Idem, p. 3816. (8) Citado em REYNAUD, Paul, La France a sauvé l’Europe, I, nota da p. 561.
maioria dos casos podem ter razão, não só no plano moral como também do ponto de vista prático. Quantas guerras não foram evitadas graças à paciência e a uma persistente boa vontade! A religião e a virtude encorajam do mesmo modo a docilidade e a humildade, não só nas relações entre os homens mas também entre as nações. Quantas guerras não foram desencadeadas levianamente por atiçadores de discórdias! Quantos mal-entendidos conduziram a guerras que podiam ter sido evitadas por contemporização! Quantos países se envolveram entre si em guerras cruéis, para se tornarem, após alguns anos de paz, não só amigos, mas aliados! O Sermão da Montanha constitui a última palavra da moral cristã. Todo o mundo respeita os Quakers. No entanto, não é nestas bases que os ministros assumem a responsabilidade do governo dos Estados. O seu primeiro dever é lidar com as outras nações de maneira a evitar os conflitos e a guerra, e de prevenir a agressão sob todas as suas formas, seja ela de origem nacionalista ou ideológica. Mas a segurança do Estado, a salvaguarda da vida e da liberdade dos seus concidadãos, aos quais devem a sua posição, tornam correcto e imperativo, como último argumento ou quando foi alcançada uma convicção final e segura, que o recurso à força não seja excluído. Se as circunstâncias forem tais que o justifiquem, impõe-se o emprego da força. E, em tal caso, ela deve ser usada nas condições mais favoráveis. Não há mérito algum em adiar uma guerra por um ano se, quando ela se desencadeia, se revela uma guerra muito pior ou mais difícil de vencer. São estes os tormentosos dilemas nos quais a humanidade, no decurso dos tempos, tem sido frequentemente envolvida. O juízo final acerca dos mesmos só pode ser registado pela história em relação aos factos do caso, nos precisos termos em que, à época, eram do conhecimento das partes e, também, consoante foram subsequentemente provados. Resta, de qualquer maneira, um guia útil, nomeadamente, para uma nação: o dever de manter a sua palavra e agir em conformidade com as obrigações assumidas mediante tratados em relação aos seus aliados. Este guia chama-se honra. Por desconcertante que possa parecer, o que os homens assim designam nem sempre corresponde à moral cristã. A Honra é, muitas vezes, influenciada por esse elemento de orgulho que entra em tão grande parte na sua concepção. Não poderíamos defender, por mais sedutor que parecesse, um código de honra exagerado, se ele conduzisse a acções completamente inúteis ou irrazoáveis. Mas chegara o momento em que a Honra apontava o caminho do Dever, e onde uma justa apreciação dos factos teria assim dado mais força aos imperativos por ela ditados. Quando o governo francês abandonou ao seu destino a Checoslováquia, sua fiel aliada, esse gesto foi da sua parte um triste incumprimento, o qual foi seguido de consequências terríveis. Uma política sagaz e justa, com mais espírito cavalheiresco, e um sentido de honra e simpatia por um pequeno povo ameaçado, teriam formado um conjunto de forças irresistíveis. A Grã-Bretanha, que, seguramente, teria combatido se estivesse comprometida por um tratado, estava então profundamente envolvida, e, deve ficar registado, com tristeza, que o governo britânico não só aprovou como incentivou o governo francês a seguir aquela via funesta.

(In Winston Churchill, The Second World War. Tradução de David Martelo a partir da versão francesa da obra – Mémoires sur la deuxième Guerre Mondiale – Vol. I – L’Orage Approche – D’Une Guerre à l’autre – 1919-1939, Plon, Paris, 1948, pp. 321-327. – Novembro de 2019)

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