sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

“Não passa mais ninguém. Se me ajudasse?”



Estranho mundo este, de finas sensibilidades, que, pugnando por uma igualdade universal de costas direitas, e de cabeça erguida, entende que não há pior trabalho do que o de distribuidor de fast food. Eu só conhecia o distribuidor de pizzas, não que já tenha usado esses serviços, mas por ouvir falar, e nunca pensei que andassem assim curvados, de caixa cúbica às costas, nem pensei mesmo que fossem equiparados aos antigos distribuidores de pão ou de leite, ou até de água, estes em tempos mais recuados. Talvez o autor da crónica, António Guerreiro, todavia, se tenha inspirado na vendedeira de hortaliças de Cesário Verde, carregando a sua giga, e não se inibindo de pedir ajuda ao poeta observador e sensível aos contrastes entre a debilidade humana e a bruteza da carga, rematada por duas formidáveis abóboras carneiras - uma vendedeira “magra, enfezadita” e apesar de tudo, “pitoresca e audaz na sua chita, o peito erguido, os pulsos nas ilhargas” cumpridora, como lhe competia. Hoje, que se acentuou a consciência da igualdade social, conhecendo-se, embora, o fictício da questão igualitária, o trabalho, que até pode ser divertido, de distribuição de alimento, significa apenas servilismo rebaixante, para favorecer clientes que não têm que ser forçosamente deselegantes no seu estatuto de “pessoa que ordena, para ser servida”. Que dirão todos os outros que trabalham – e todos os trabalhos são para servir – e o que se deve estimular é o respeito e a educação, quer da pessoa que vem fazer a leitura da água e da electricidade, quer do cobrador de bilhetes no combóio, quer do taxista que nos leva ao destino... Por isso o título “Às ordens do cliente”, parece pura demagogia, na sua ironia rancorosa, que desvirtua a realidade de um simples pedido de comida, ou de passeio, no caso do “homem do riquexó”, servil por tradição.
Os comentadores, é claro, mal parecia que não apoiassem a “nobreza” do discurso e do sentimento, de um cronista moderno sensível, como tantos que o são hoje, por mando dos livros. Pobres tolos!

CRÓNICA ACÇÃO PARALELA:  Às ordens do cliente
ANTÓNIO GUERREIRO   PÚBLICO, 3 de Janeiro de 2020, 9:29
Uma figura conspícua e inquietante circula cada vez em maior número e com maior nervosismo nas ruas das grandes cidades: a figura do fornecedor de fast food ao domicílio, que se desloca em bicicleta ou em scooter, carregando uma enorme caixa cúbica às costas — uma versão demagogicamente ampliada da antiga marmita.
A figura é conspícua porque não se limita a cumprir uma tarefa remunerada, está obrigada à função retórica de se dar a ver de maneira quase teatral como um anúncio publicitário; e é inquietante porque, ainda que transporte um objecto leve, aquela caixa cúbica às costas sugere — e essa sugestão é reforçada por uma gestualidade enfática — um corpo dobrado pela carga, como o dos aguadeiros e as vendedoras de leite de outros tempos, ou os vendedores de carvão berlinenses, dos anos 20 do século passado, fotografados por August Sander (para não remontarmos muito mais atrás). Estes esforçados agentes da restauração “uberizada” não trazem às costas apenas uma carga neutra: transportam consigo uma memória histórica vinda de fontes arcaicas e que nós não podemos deixar de reconhecer enquanto sobrevivências dotadas de uma enorme tensão imagética (em suma: aquilo a que um famoso historiador de arte e fundador de uma muito singular iconologia, Aby Warburg, chamou “fórmula de pathos”). Pela forma como se apresentam, os carregadores de refeições e outros bens ao domicílio têm a faculdade de evocar — e invocar — as suas origens, marcados que estão por um índice histórico de outro tempo. Eles são a mais viva contradição: servem os mais modernos modelos de consumo, ao mesmo tempo que actualizam, nos seus elementos patéticos e na sua linguagem mímica, uma imagem escandalosamente anacrónica e politicamente incorrecta de um trabalho que suscita a memória da corveia. Há certamente outros trabalhos que exigem muito mais esforço físico e estão mais próximos de fontes primárias das actividades humanas, mas nenhum como este expõe voluntariamente (segundo uma estratégia comercial) e de maneira artificial um manifesto anacronismo. Se tivéssemos de escolher a imagem mais evidente das novas formas de escravatura, esta é talvez a que se apresenta publicamente aos olhos de todos, sem má consciência do seu espectáculo.
 O cliente, esse, é o suserano anónimo. Este anacronismo retórico é tanto mais notório quanto aquela tarefa que se apresenta aos clientes reais e potenciais como uma coreografia em que um corpo se dobra pelo volume que traz às costas e à medida de uma caminhada que está sempre a recomeçar é comandada por uma “plataforma”: o serviço, em primeira instância, é prestado ao cliente através dos instrumentos do capitalismo digital; só depois é que se “corporaliza” nos distribuidores ao domicílio. Isso podia ser feito de maneira discreta, mas não é o que se passa: o sucesso destes serviços, a atracção dos clientes, depende do seu aspecto conspícuo e do seu anacronismo.
Algo de semelhante se passa com os tuk-tuk. Também aí é notória a ideia de uma servidão na relação com o cliente. Quem, antes de o turismo de massas ter atingido, na Europa, a actual dimensão, visitou um país como a Índia, sentiu certamente a incomodidade pelo servilismo com que era solicitado pelos condutores de riquexós. Ali, estabelecia-se um contrato cheio de subterfúgios e desvios, onde, a troco de algum dinheiro, uma ancestral hierarquia podia continuar a vigorar. Hoje, essas imagens que eram próprias daquilo a que se chamava então “o terceiro mundo” apresentam-se aqui e agora, diante dos nossos olhos, nas nossas cidades europeias. Quem acha que caminhamos num único sentido, o do progresso, e a corrida é sempre para a frente, jamais compreenderá estes anacronismos e o modo como o passado nos assedia de todos os lados. De tal modo que até nas realizações tecnologicamente mais avançadas das “plataformas” comerciais, a tentação por expressões imagéticas dotadas de espessura histórico-cultural (mesmo que sinistras) é muito forte. Estamos sempre assediados pelo passado e não há nenhuma conquista daquilo a que se chama “civilização” que seja definitiva. 

COMENTÁRIOS:
Jeine Ósten: Excelente! António Guerreiro, mais uma vez, lança um olhar diferente sobre as imagens do quotidiano. Espero que escreva com mais regularidade.
Antonio Leitao: Mais uma crónica a desmontar os paradoxos e incongruências do nosso tempo e, bem, a desmistificar o sentido de progresso. Sempre um prazer de ler.
Clarisse Vilanova: Mais uma excelente crónica, acutilante, certeira.
Jose: Caro Antonio Leitao realmente o nosso tempo é qualitativamente o mesmo de há muitos, muitos séculos. Há um verniz que põe o velho a brilhar como novo. Uma fantasia que não altera as relações dos donos e dos seus servos.
Antonio Leitao: Concordo José, mas é a crítica a esse verniz que nos traz estas reflexões provocadoras. Sem o determinismo do progresso, mas também sem o da relação explorador-explorado.


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