Estranho mundo este, de finas sensibilidades, que, pugnando por uma
igualdade universal de costas direitas, e de cabeça erguida, entende que não há
pior trabalho do que o de distribuidor de fast food. Eu só conhecia o distribuidor
de pizzas, não que já tenha usado esses serviços, mas por ouvir falar, e nunca
pensei que andassem assim curvados, de caixa cúbica às costas, nem pensei mesmo
que fossem equiparados aos antigos distribuidores de pão ou de leite, ou até de
água, estes em tempos mais recuados. Talvez o autor da crónica, António
Guerreiro, todavia, se tenha
inspirado na vendedeira de hortaliças de Cesário Verde, carregando
a sua giga, e não se inibindo de pedir ajuda ao poeta observador e sensível aos
contrastes entre a debilidade humana e a bruteza da carga, rematada por duas
formidáveis abóboras carneiras - uma vendedeira “magra, enfezadita” e
apesar de tudo, “pitoresca e audaz na sua chita, o peito erguido, os pulsos nas
ilhargas” cumpridora, como lhe competia. Hoje, que se acentuou a
consciência da igualdade social, conhecendo-se, embora, o fictício da questão
igualitária, o trabalho, que até pode ser divertido, de distribuição de
alimento, significa apenas servilismo rebaixante, para favorecer clientes que não
têm que ser forçosamente deselegantes no seu estatuto de “pessoa que ordena,
para ser servida”. Que dirão todos os outros que trabalham – e todos os
trabalhos são para servir – e o que se deve estimular é o respeito e a educação,
quer da pessoa que vem fazer a leitura da água e da electricidade, quer do cobrador
de bilhetes no combóio, quer do taxista que nos leva ao destino... Por isso o
título “Às ordens do cliente”, parece pura demagogia, na sua ironia
rancorosa, que desvirtua a realidade de um simples pedido de comida, ou de
passeio, no caso do “homem do riquexó”, servil por tradição.
Os comentadores, é claro, mal parecia que não apoiassem a “nobreza” do
discurso e do sentimento, de um cronista moderno sensível, como tantos que o
são hoje, por mando dos livros. Pobres tolos!
CRÓNICA ACÇÃO PARALELA: Às ordens do cliente
ANTÓNIO GUERREIRO PÚBLICO, 3 de Janeiro de 2020, 9:29
Uma figura conspícua e inquietante circula cada vez em maior
número e com maior nervosismo nas ruas das grandes cidades: a figura do
fornecedor de fast food ao domicílio, que se desloca em bicicleta ou em scooter,
carregando uma enorme caixa cúbica às costas — uma versão demagogicamente
ampliada da antiga marmita.
A figura é conspícua porque não se limita a cumprir uma tarefa
remunerada, está obrigada à função retórica de se dar a ver de maneira quase
teatral como um anúncio publicitário; e é inquietante porque, ainda que
transporte um objecto leve, aquela caixa cúbica às costas sugere — e essa
sugestão é reforçada por uma gestualidade enfática — um corpo dobrado pela
carga, como o dos aguadeiros e as vendedoras de leite de outros tempos, ou os
vendedores de carvão berlinenses, dos anos 20 do século passado, fotografados por
August Sander (para não remontarmos muito mais atrás). Estes esforçados
agentes da restauração “uberizada” não trazem às costas apenas uma carga
neutra: transportam consigo uma memória histórica vinda de fontes arcaicas e
que nós não podemos deixar de reconhecer enquanto sobrevivências dotadas de uma
enorme tensão imagética (em suma: aquilo a que um famoso historiador de arte e
fundador de uma muito singular iconologia, Aby Warburg, chamou “fórmula de pathos”).
Pela forma como se apresentam, os carregadores de refeições e outros bens ao
domicílio têm a faculdade de evocar — e invocar — as suas origens, marcados que
estão por um índice histórico de outro tempo. Eles são a mais viva
contradição: servem os mais modernos modelos de consumo, ao mesmo tempo que
actualizam, nos seus elementos patéticos e na sua linguagem mímica, uma imagem
escandalosamente anacrónica e politicamente incorrecta de um trabalho que
suscita a memória da corveia. Há certamente outros trabalhos que exigem
muito mais esforço físico e estão mais próximos de fontes primárias das
actividades humanas, mas nenhum como este expõe voluntariamente (segundo uma
estratégia comercial) e de maneira artificial um manifesto anacronismo. Se
tivéssemos de escolher a imagem mais evidente das novas formas de escravatura,
esta é talvez a que se apresenta publicamente aos olhos de todos, sem má
consciência do seu espectáculo.
O cliente, esse, é o suserano anónimo. Este
anacronismo retórico é tanto mais notório quanto aquela tarefa que se apresenta
aos clientes reais e potenciais como uma coreografia em que um corpo se
dobra pelo volume que traz às costas e à medida de uma caminhada que está
sempre a recomeçar é comandada por uma “plataforma”: o serviço, em primeira
instância, é prestado ao cliente através dos instrumentos do capitalismo
digital; só depois é que se “corporaliza” nos distribuidores ao domicílio. Isso
podia ser feito de maneira discreta, mas não é o que se passa: o sucesso destes
serviços, a atracção dos clientes, depende do seu aspecto conspícuo e do seu
anacronismo.
Algo de semelhante se passa com os tuk-tuk. Também aí é notória a ideia de uma servidão na
relação com o cliente. Quem, antes de o turismo de massas ter atingido, na
Europa, a actual dimensão, visitou um país como a Índia, sentiu certamente a
incomodidade pelo servilismo com que era solicitado pelos condutores de
riquexós. Ali, estabelecia-se um contrato cheio de subterfúgios e
desvios, onde, a troco de algum dinheiro, uma ancestral hierarquia podia
continuar a vigorar. Hoje, essas imagens que eram próprias daquilo a que se
chamava então “o terceiro mundo” apresentam-se aqui e agora, diante dos nossos
olhos, nas nossas cidades europeias. Quem acha que caminhamos num único
sentido, o do progresso, e a corrida é sempre para a frente, jamais
compreenderá estes anacronismos e o modo como o passado nos assedia de todos os
lados. De tal modo que até nas realizações tecnologicamente mais avançadas das
“plataformas” comerciais, a tentação por expressões imagéticas dotadas de
espessura histórico-cultural (mesmo que sinistras) é muito forte. Estamos
sempre assediados pelo passado e não há nenhuma conquista daquilo a que se
chama “civilização” que seja definitiva.
COMENTÁRIOS:
Jeine Ósten: Excelente! António Guerreiro, mais uma
vez, lança um olhar diferente sobre as imagens do quotidiano. Espero que
escreva com mais regularidade.
Antonio Leitao: Mais uma crónica a
desmontar os paradoxos e incongruências do nosso tempo e, bem, a desmistificar
o sentido de progresso. Sempre um prazer de ler.
Jose: Caro Antonio Leitao realmente o nosso tempo é qualitativamente o mesmo
de há muitos, muitos séculos. Há um verniz que põe o velho a brilhar como novo.
Uma fantasia que não altera as relações dos donos e dos seus servos.
Antonio Leitao: Concordo José, mas é a crítica a esse verniz que nos
traz estas reflexões provocadoras. Sem o determinismo do progresso, mas também
sem o da relação explorador-explorado.
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