Fazer-se o
balanço anual. Nas empresas é assim. No Governo também. Na Justiça idem, só que
mais solene, responsável pelo atraso e o mau funcionamento processual,
prestando contas a defender-se, talvez pouco sincera, ou menos verdadeira,
atemorizada mas sem vergonha, sobrecarregada que está. António Barreto conta como é, à sua maneira aprumada, o pessimismo a minar o seu parecer e
a aprimorar a sua prosa, que é sempre um prazer ler.
OPINIÃO
Todos os anos,
pelo Inverno…
A liturgia da abertura do ano judicial
é o local por excelência para a “culpa circular”: todos apontam para os outros
e se isentam de responsabilidades.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 12 de Janeiro de 2020
Todos os anos, por esta
altura. Falam, aplaudem e sorriem… São os magistrados judiciais e do Ministério
Público. Os membros dos Conselhos Superiores. Os advogados, sua ordem e
seu bastonário. Os presidentes
dos Supremos e outros tribunais superiores. A procuradora-geral
da República. Os representantes das Relações. Os magistrados do
Tribunal Constitucional, especial entre todos. Os dirigentes dos sindicatos e
das associações de magistrados, estes tão estranhos corpos no meio de órgãos de
soberania. É a abertura do ano judicial, cerimónia muito
peculiar. Tem Presidente da República e Presidente do Parlamento. Tem Ministra
da Justiça. Ao
contrário de outros anos, não teve primeiro-ministro, ausência
incompreensível, pesada de significado, não se percebe bem porquê, mas deve
haver caso. Tem cardeal, generais,
comandantes das polícias, inspectores e directores. É a fina-flor da justiça,
da segurança, da paz nas ruas e da ordem no espaço público. Normalmente, a
cerimónia decorre nos salões do Supremo, no Terreiro do Paço, mas este ano, por
motivos de obras, foi deslocada para o Palácio da Ajuda.
Os
assistentes, muitos enfarpelados também, reúnem-se com antecedência. O ambiente
é solene e cerimonioso. Chega o cortejo. Começa a sessão. A
liturgia da abertura do ano judicial é o local por
excelência para a “culpa circular”: todos apontam para os outros e se isentam
de responsabilidades. A culpa
B, que denuncia C, que responsabiliza C, que acusa D… Por vezes fazem-no com
elegância, outras com truculentos desabafos. Este ano, a
cortesia foi a regra. Quando
assim é, culpa-se o sistema, o maior responsável por tudo o que não funciona.
Todos querem reformas, reclamam
melhores leis, pedem mais meios, exigem mais recursos humanos e
reivindicam mais celeridade, recato, respeito e confiança. Mas, este aparente
consenso não resiste à análise. Na
verdade, os recursos e os meios de que cada um fala são diferentes. Mais juízes,
mais procuradores, mais oficiais de justiça… Mas também vencimentos, promoções,
pessoal técnico, despesas de deslocação, equipamento de informação, bases de
dados e contratação de serviços especializados … E ainda subsídios de
compensação, descontos para a Caixa Geral de Aposentações e isenção de IRS. Uns olham para os meios materiais, outros
para os meios técnicos, outros ainda para os meios humanos. Não faltam os que
querem os gabinetes de apoio aos juízes. Finalmente, muitos preferem referir-se
aos meios materiais e humanos das estruturas de investigação e das polícias em
especial. Não! Não
há consenso. Cada um pede o que quer e lhe falta, o que é natural. A verdade é
que temos ali, durante uma longa e transpirada cerimónia, a maior assembleia de
reivindicações de toda a sociedade portuguesa. Só que a cortesia ritual e os
bons modos fazem com que em nada se pareça com uma assembleia da CGTP, uma
reunião de camionistas ou um piquete de estivadores. Não se parecem com eles,
mas exigem mais do que eles.
Não
há razões para não acreditarmos em pessoas tão qualificadas e responsáveis. Está
ali a nata da sociedade, a elite do Estado e o que de mais prestigiado tem a
administração pública. Quer isto dizer que não se
pode sequer imaginar que um dos representantes esteja a mentir ou a enganar. Só
dizem verdades. Mesmo se verdades parciais e interessadas. Mas sempre
verdades. É verdade que faltam pessoas e meios. Que
as leis são em geral mal feitas. Que existe interferência política onde não
deve haver. Que a rivalidade entre os grandes corpos da Justiça (magistrados,
procuradores, advogados, oficiais e polícias) é responsável por uma boa parte
da sua má reputação. Que um número excessivo de “mega processos” atrasa
a justiça, dá mau nome aos magistrados e cria má reputação. Que a produtividade
dos tribunais é reduzida, mesmo se os últimos vinte anos têm mostrado uma
melhoria. Que a justiça é socialmente injusta. Que os códigos processuais estão
desactualizados. Que existe a “justiça dos mais fortes”, o que se revela no
facto de aquela ser bondosa para os que mais são ou mais têm. Que os prazos e
os processos favorecem escandalosamente o Governo, os políticos e os poderosos.
Que são deficientes as condições físicas de funcionamento dos tribunais e
ineficientes as redes de comunicação. Que continua a vigorar o desprezo pelos
mecanismos de segredo de justiça. Que há uma enorme passividade
parlamentar relativamente à justiça.
Esta
última deficiência é das mais gritantes e, ao mesmo tempo, das menos referidas.
Na verdade, muito depende do Parlamento, a começar pelas leis e pelos códigos.
O Parlamento tem vastíssimas competências, muitas delas exclusivas, desde a
definição de crimes e de penas, à nomeação de magistrados para os órgãos
superiores, passando pelos estatutos dos tribunais. O Parlamento esconde-se
atrás da independência dos juízes e da autonomia dos tribunais, assim como da
iniciativa do Governo, para justificar a sua indolência e a sua passividade.
Alguns
discursos, na cerimónia de abertura, sublinharam os melhoramentos do sistema de
justiça. Em certos
casos, têm razão. Os números de processos entrados, findos e transitados
mostram uma evolução positiva. Isto é, nos tribunais comuns, parece que a
tendência é de progresso: o número de resoluções é superior ao de entradas.
Isto apesar de o número de magistrados judiciais estar estagnado há dez anos e
o de procuradores em diminuição durante o mesmo período. Numa breve observação
europeia, o número de magistrados por habitante é razoável, a meio da tabela.
O problema é evidentemente o dos crimes e processos de corrupção, de criminalidade
financeira e económica ou que envolvem nomes pesados da sociedade, da economia
e da política.
Como
se pode ver com o estado actual do “caso
de Tancos”. O primeiro-ministro e o Governo não perceberam que a sua
reacção e a sua posição relativamente a este caso só os prejudicam a si
próprios. O comportamento do primeiro-ministro foi culposo e envergonhado.
Mostrou desconforto e mácula, além de receio de escrutínio público.
Por
sua vez, o presidente da Assembleia da República percebeu que lhe era difícil
isentar os parlamentares de culpas e sobretudo sentiu-se pouco à vontade para
criticar os juízes, numa altura em que os processos que visam os políticos são
mais do que muitos. Numa intervenção excêntrica e de rara imaginação, denunciou
“as presunções de regeneração justicialista”, acusou “um certo clima anti-parlamentar” e defendeu
a Assembleia da República que, aliás, ninguém acusou!
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Fowler Fowler, 12.01.2020 : Mais uma sátira na qual o sr. Barreto se toma por juiz
e o oráculo da República. Pessoalmente, não gosto de o ver a atacar as
instituições que nos proporcionam a democracia e as liberdades.
Jose, 12.01.2020: O que incomoda AB são os sindicatos, o parlamento, as
reivindicações de meios humanos e materiais, os megaprocessos cujos arguidos e
acusados são os seus amigos de antes e, claro, o Presidente da República que
denuncia as tendências justiceiras. Quanto à natureza de classe da Justiça está
tudo bem, quanto à superlotação das cadeias, à indigência das refeições e
alojamentos, à incapacidade dos guardas prisionais, nada! Quanto ao sentimento
de injustiça que cresce nas almas dos vivos desesperançados e carentes de quase
tudo, nada! Quanto à submissão da Justiça da Pátria à apátrida
"Justiça" estrangeira, nada!
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