sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Por morrer uma andorinha



Com este título final, Carlos do Carmo termina a justíssima homenagem que lhe é prestada, no Coliseu de Lisboa, retransmitida pela RTP, e que põe fim à sua participação activa, como voz sobriamente manipulada, em fados e canções de expressividade reconhecidamente única. Lembrei-me desse título a propósito do início do novo “roteiro de viagem” de Salles da Fonseca, que parece ter recobrado a alegria, ofuscada momentaneamente por problemas graves de saúde, após o descritivo memorialista da sua passagem por terras de Moçambique, em tempos de juventude arrojada, descritivo a que não faltou o humor crítico e o amor por terras que ajudámos a construir, tant bien que mal. Humor também saliente no igualmente arrojado passeio turístico por terras do Golfo pérsico. Apesar da gravidade da doença que o afectou, não deixou de ler os seus filósofos, em leituras que foi comunicando, sempre com o carisma da independência crítica, a que não faltaram episódios burlescos. É o caso desta sua nova digressão, desta vez pela Europa, talvez mais segura, apesar das esperas incomodamente longas de aviões que, apesar de tudo, cumprem sem greve, os seus horários, mas que os receios de perder o avião levam a uma antecipação longa de espera, a que não faltou o encontro casual com algum tagarela de face book da nossa banalidade diária. E a propósito de Nietzsche, surgiu a referência agora ao “Assim falou Zaratustra”, que me levou aos tempos em que se estudavam as civilizações antigas, passando pela Caldeia, com Zoroastro e o Zend-Avesta e o problema da dualidade religiosa, predecessora do monoteísmo judaico... Pinceladas de evocações que nos dão vontade de conhecer mais, mas a vida demasiado preenchida por tantos empenhos, entre os quais o do “dolce far niente” não nos faz ir mais além na informação. Todavia, assim nos vai elucidando Salles da Fonseca das suas ocupações, de que retira a graça das suas observações despretensiosas, e a nós agrada-nos que continue, mostrando-nos que a Primavera volta sempre, mau grado a morte da andorinha, a doença passageira que ofuscou momentaneamente a alegria.
E o seu “diário de bordo” promete. Bem haja.
Reno Romântico
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 02.01.20
- O Pessoal do aeroporto está em greve, os Senhores vão para lá com, pelo menos, 4 horas de antecedência - assim falou a funcionária da agência de viagens que certamente não se chamava Zaratustra.
O nosso voo era às 5 da manhã, chegámos ao aeroporto pela meia noite e meia. Pois… mas, mesmo sem greves, os serviços de terra encerram da meia noite às 3 da manhã. Valha-nos Zaratustra! Do mal, o menos: encontrámos um sítio de comes e bebes que estava aberto e que tinha umas quantas mesas altas com bancos também altos mas que, na circunstância, nos pareceram altíssimos. Amarinhámos e ficámos com os pés no ar a dar, a dar. Coisas feitas a pensar em clientes crescidos e não em minorcas. Mas sendo aquele o nosso «fado» para as próximas horas, vá de tirar partido da situação – e mandámos vir uma garrafa de água. Estávamos tranquilamente a beberricar quando um cavalheiro se me dirige e exclama – O Doutor, por aqui? Apeteceu-me responder que não, que estava ali mais à frente e que o cavalheiro estava a ver uma miragem. Mas seria rudeza minha e respondi que gostávamos muito da água que ali vendiam e, portanto, tínhamos ido lá bebê-la. Não acreditou, apontando para as nossas malas. Ainda estive para lhe responder que vínhamos de longe, da Estrela. Mas achei que era mangação de mais para tanta gentileza que até me tratava pelo título académico. Que me conhecia do Facebook e que assim me reconhecera. Só não se lembrava do meu nome. Disse-lho. Identificou-se como primo dos Caldeiras de Vila Boim e que ia passar o fim de semana a Berlim. E assim foi que ficámos a saber que os Caldeiras de Vila Boim têm um primo que foi a Berlim. Não tem importância nenhuma mas gostei da rima. Votos de boas viagens e de feliz ano novo e eis que, assim como aparecera vindo do nada, também se sumiu para parte incerta. Presumo que na direcção de Berlim…
Às 3 da manhã, tudo a funcionar como se fosse meio dia. Qual greve, qual carapuça! Com a calma de um reformado, lá fomos andando até às redondezas da sala de embarque. Sentámo-nos um pouco mas não aquecemos os lugares porque começaram a chamar-nos para criarmos filas por zonas de lugares no avião. Tais quais cordeiros pascais, enfileirámo-nos e… nos autocarros (não era embarque por manga), logo todas as pessoas de todas as filas se misturaram. E fomos assim, todos misturados, quase até ao Figo Maduro. E por que é que o Prior Velho não há-de ser um destino turístico como qualquer outro às 5 da manhã? Sim, porquê?
Rodas no ar à hora prevista. Greve? Connais pas!
Destino, Amesterdão.
(continua)
Janeiro de 2020

Henriqe Salles da Fonseca
(à espera de Zaratustra)


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