quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Uma fada madrinha precisa-se



E mais o que se conta de corrupção, a contribuir para o descalabro. Fala-se também em paraísos fiscais para os mais argutos, favorecedores do buraco negro financeiro. Mais se poderia dizer que tem relação com uma educação deficitária e uma ausência de princípios e de brio profissional…
Não, nem a varinha da fada já nos pode valer. E sobretudo às gerações futuras, os filhos dos nossos filhos, dos nossos netos …
A dívida e a debilidade das instituições /premium
A dívida total do Estado, empresas e famílias representa cerca de 320% do PIB, continua a ser uma das mais elevadas do mundo, expõe a economia a graves riscos e põe a nu a debilidade das instituições.
FERNANDO ALEXANDRE
OBSERVADOR, 15 jan 2020
A dívida total do Estado, empresas e das famílias representa cerca de 320% do PIB. Apesar deste valor ser bastante inferior ao valor máximo de 380% registado em 2012, continua a ser um dos mais elevados do mundo. Este montante de dívida expõe a economia portuguesa a graves riscos e põe a nu a debilidade das nossas instituições.
Uma crise nos mercados financeiros pode expor a população portuguesa a graves riscos. Num contexto de redução demográfica e da população em idade activa, quanto mais tarde a dívida for paga maior será o esforço exigido por trabalhador. Reduzir a dívida é assim o melhor seguro que podemos fazer para acautelar o futuro. Daqui decorre a importância de alcançar excedentes orçamentais em 2020 e nos anos seguintes.
A dívida foi uma das mais importantes inovações da história da humanidade. A dívida é um instrumento financeiro que permite realizar investimentos ou antecipar consumo que os rendimentos do Estado, das empresas ou das famílias não permitem financiar na totalidade. O desenvolvimento dos mercados financeiros tornou mais complexa a relação entre o presente e o futuro e, por outro lado, mais imbrincada a relação económica entre os países.
Na história económica não faltam exemplos dos efeitos positivos da dívida no crescimento das economias e no bem-estar das sociedades. No entanto, não faltam também exemplos de crises económicas e de falências empresariais e pessoais, com consequências muitas vezes trágicas, em resultado da incapacidade de cumprir um contrato de crédito. De facto, as crises da dívida, sobretudo quando estão associadas a crises bancárias, resultam em recessões prolongadas, recuperações lentas e elevados custos económicos e sociais.
Na vigência do regime democrático, os portugueses conheceram por três vezes os custos impostos por crises de dívida. Nessas três ocasiões, o Estado português, para cumprir as suas obrigações com os credores e com os portugueses (funcionários públicos, pensionistas e utilizadores dos serviços públicos) foi obrigado a recorrer à assistência financeira de instituições internacionais. As duas primeiras crises financeiras – em 1977 e 1983 – aconteceram na juventude do novo regime democrático, num contexto de instabilidade económica, incluindo um choque petrolífero. Por outro lado, as debilidades existentes nos mecanismos de controlo orçamental eram também compreensíveis.
A terceira crise, que resultou no resgate pela troika em 2011, é mais difícil de compreender. As nossas instituições democráticas estavam já mais maduras, Portugal integrava a moeda única desde a sua criação em 1999 e estava obrigado a respeitar as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Por outro lado, os mercados financeiros internacionais e as agências de rating avaliavam a solvabilidade do Estado português e do sistema bancário.
Entre 2008 e 2012, a economia portuguesa perdeu 12% do PIB (na UE, naquele período, só a Grécia e a Espanha tiveram uma quebra maior no PIB), o desemprego atingiu 17%, cerca de 50 mil portugueses emigraram anualmente, os pensionistas viram as suas pensões reduzidas e os funcionários públicos receberam apenas 12 meses de salários, com cortes.
O que falhou nas instituições para que a crise da dívida tivesse custos tão elevados?
Sabemos que houve muitas falhas nas instituições internacionais, incluindo na Comissão Europeia e no Banco Central Europeu, que subavaliaram os riscos do endividamento. As agências de rating e os investidores internacionais – que nos continuaram a financiar a baixas taxas de juro – também não fizeram soar sinais de alarme.
Muitos ainda argumentam que se as instituições internacionais não anteciparam os riscos para a economia portuguesa, como é que as instituições nacionais o poderiam ter feito.
A história do sucesso de uma economia ou de uma sociedade é a história do sucesso das suas instituições – peço desculpa por referir esta evidência. Ao longo da história, as sociedades mais bem-sucedidas aperfeiçoaram as suas instituições para promoverem a cooperação entre os seus membros e para se protegerem dos riscos que sobre elas impendiam. Numa economia com níveis de endividamento elevado, um dos maiores riscos é o risco de incumprimento dos contratos estabelecidos com os credores. Na crise da dívida, as instituições nacionais, que promoveram a contracção de mais crédito público e privado, falharam ao não antecipar os riscos a que expunham os portugueses.
As debilidades das nossas instituições, e as suas implicações para o aumento da dívida, revelaram-se a vários níveis. Em primeiro lugar, através a prevalência de uma visão de curto prazo sobre uma visão de médio e de longo prazo. A concentração nos objectivos de curto prazo, muitas vezes associados ao ciclo eleitoral, reflectiu-se, por exemplo, no aumento dos défices orçamentais e nas dificuldades de consolidação orçamental. A prevalência da visão de curto prazo lançou um pesado fardo sobre o bem-estar das gerações futuras. Por outro lado, o enfoque no curto prazo também não contribuiu para criar uma cultura de poupança nas famílias. De tal forma, que a palavra poupança, um instrumento essencial de protecção do risco, continua a ter uma conotação negativa.
Em segundo lugar, a coincidência de um elevado endividamento com um fraco crescimento reflecte um insuficiente conhecimento das vantagens competitivas da nossa economia. Ora, as instituições devem incorporar todo o conhecimento disponível sobre a sociedade, a economia e o contexto em que se inserem e desenhar as melhores políticas para que possam prosperar. Esta falha das instituições está patente na incapacidade de recolher benefícios da grande vaga da globalização e na aposta nos sectores não transaccionáveis.
Em terceiro lugar, a crise da dívida, em particular a que afectou os bancos e as empresas, está associada a problemas de supervisão, governação e gestão – três dimensões institucionais. As empresas portuguesas, desde meados da década de 90, tiveram acesso a crédito como nunca tinha acontecido – em 2012, o seu endividamento representava 150% do PIB. Deste endividamento não resultou crescimento económico. O nível de crédito às empresas em incumprimento atingiu 15% do total em 2015. O resultado destas decisões de atribuição de crédito já terá custado aos contribuintes mais de 20 mil milhões de euros. Entretanto registaram-se alterações importantes na governação do sistema bancário. O aumento das exportações também sugere melhorias na gestão. As regras da supervisão também foram alteradas.
O sucesso do processo de ajustamento da economia portuguesa, com redução da dívida, alcançado num contexto de estabilidade social e institucional, sugere melhorias no funcionamento das instituições. De facto, se o elevado montante de dívida reflecte a debilidade das instituições, a determinação em reduzi-la será um bom indicador da sua melhoria.
Colunista do Observador, Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho



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