Contrastando com um aprendizado por via
de críticos literários bem enriquecedores sobre os nossos escritores - de António José Saraiva e Óscar Lopes a Joel Serrão, Jacinto
do Prado Coelho, Rodrigues
Lapa, João Gaspar Simões e tantos outros que foram abrindo as pistas para uma
caminhada de docência entusiástica e minimamente honesta, um dia comprei um
livro de Eduardo Prado Coelho, para
avaliar se, como seu pai, a quem tanto devi, com o seu “Ao Contrário de Penélope” e outros
estudos facilmente e enriquecedoramente apreensíveis, Eduardo Prado Coelho, de quem
ouvia falar, como professor já dos tempos mais recentes, me encheria também
desse prazer de desbravar autores através de técnicas analíticas que a
modernidade dos estudos ia proporcionando. “A
palavra sobre a palavra”, foi o livro que dele comprei, mas que facilmente
pus de parte, incompatível então, com a necessidade de estudos mais acessíveis
e específicos das matérias leccionadas. Eram estudos complicados pelo muito
saber, talvez, mas sem a simplicidade “iluminista” do seu pai, Jacinto do
Prado Coelho.
Creio que vou ler esse livro, agora que
tenho mais tempo. A Crónica de Nuno Pacheco sobre Eduardo Prado Coelho despertou-me
a coragem.
OPINIÃO
Um regresso a Eduardo Prado Coelho, que
há-de voltar à televisão num filme
Os 51 minutos do documentário Resistir à Cegueira do Mundo trazem-nos,
na soma de recortes de jornais e depoimentos, os múltiplos “eus” de Eduardo Prado Coelho.
PÚBLICO, 16 de Janeiro de 2020
Foi
exibido em ante-estreia, no lisboeta Cinema São Jorge, o documentário Eduardo
Prado Coelho, Resistir à Cegueira do Mundo, uma produção para a RTP2, realizado
e produzido por Abílio Leitão, que também escreveu o guião de parceria com
Fernando Luís Sampaio. Não o motivou nenhuma data “redonda”, daquelas que
convidam a celebrações, pois nem o nascimento de Eduardo Prado
Coelho (a 29 de Março de 1944, há quase 76 anos) nem a sua
morte (a 25 de Agosto de 2007, agora a caminho dos 13 anos) se ajustam a tal.
Mas podia ter sido: o filme é datado de 2017, quando se assinalaram dez anos do
seu desaparecimento.
Independentemente
dos méritos ou deméritos do filme (e disso tratarão os críticos), os seus 51
minutos trazem-nos, na soma de recortes de jornais e depoimentos, os múltiplos
“eus” de Eduardo Prado Coelho (EPC), ao som de Mahler, Bach, Satie, mas também
Martial Solal ou José Afonso. E ouvimos falar dele Colette Kleber, Alexandra
Prado Coelho (sua única filha), Maria Eduarda (sua primeira mulher e mãe de
Alexandra), Eduardo Lourenço, Maria Alzira Seixo, Paula Morão, Nuno Nabais,
João Mário Grilo, Pierre Léglise-Costa, João Manuel Esteves, António Mega
Ferreira, Alexandre Melo, entre outros. Uns, como Paula Morão, elogiando-lhe o
“cruzamento de saberes” ou o facto de EPC ser um “franco-atirador” com “uma
relação de toca-e-foge com tudo e mais alguma coisa” (Nuno Nabais); outros
afirmando que ele foi “o maior embaixador da arte cinematográfica portuguesa”
(João Manuel Esteves) ou um
“tudólogo”, porque “nada do que era conhecível lhe era estranho” (António
Mega Ferreira). Eduardo Lourenço, que como muitos portugueses o viu primeiro
pela sua exposição mediática (“conheci-o antes de o conhecer”), faz-lhe ali um
acertado elogio: “Não tinha o culto do patético, do trágico. (…) tinha o gosto
da felicidade.”
Foi,
aliás, Eduardo Lourenço quem no dia 26 de Agosto de 2007 (no PÚBLICO) melhor
retratou a perda que a morte de EPC significava: “Com ele desaparece — como
custa escrevê-lo — o actor mais disponível, mediático e plural da cena
portuguesa da sua geração e do nosso tempo. Tudo lhe interessou, do cinema à
poesia, da crítica literária, que teve nele o seu cronista-mor, à ficção, mar
de sonhos sem fim que desde jovem se tornaram para ele uma precoce
segunda life.” Na mesma edição, Pedro Mexia sublinhava-lhe igualmente os
traços dessa ânsia intelectual, escrevendo que com ele desaparecia “o último
crítico”: “O último com influência e prestígio, o último que desencadeava
verdadeiros amores e ódios, o último conhecido mesmo por quem não lia os seus
textos. (…) Censuraram-lhe muitas vezes essa voracidade do ‘nada que é humano
me é estranho’; mas provavelmente era acima de tudo essa capacidade de risco (e
de ridículo) que fazia dele um intelectual, ou seja, uma pessoa com uma imensa
curiosidade pelo mundo.”
O
título do filme, neste particular, faz-lhe justiça: Resistir à Cegueira do
Mundo é uma forma de batalhar pela inteligência das coisas e é o próprio
EPC que, no texto que fecha o livro O Cálculo das Sombras (ASA,
1997), o diz explicitamente: “O mais belo poema do mundo (por exemplo, ‘A
Tabacaria’, do Pessoa-Campos) pode sempre ser lido de modo a que tudo fique
massacrado e destruído, e face a esse tipo de barbarismo não há defesa que se
invente.” Daí a urgência do conhecimento.
No
primeiro texto do mesmo livro (“Dedicatória: Tu”, para o pai Jacinto), EPC
descreve a casa paterna como lugar obrigado ao silêncio, para que o pai pudesse
trabalhar: “Todos os dias chegavam livros, a casa era invadida pelos livros, os
livros devoravam os espaços e eu começava a ler os livros que devoravam os
espaços, e lia ao acaso das cadeiras. (…) O meu pai nunca impunha a leitura de
um livro, lê este em vez daquele, e nunca desaconselhava a leitura de um livro.
Deixava que as cadeiras decidissem — e eu lia.” O mesmo fez EPC com a filha, e
ela di-lo no filme: nenhuma imposição, apenas o simples desfrutar da arte do
mundo — enquanto na escrita ele o ia desafiando, numa provocação que ainda
hoje nos é saudosa.
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