Compreendo a preocupação de José Pacheco Pereira, homem de
grande envergadura espiritual, em querer para o seu país aquilo que a este sempre
faltou - uma generalização de hábitos culturais que só os nascidos em berço propício
desde sempre usufruíram, e que faltou a uma maioria, por deficiente apoio
social e educativo, que provocou tanta revolta, desde a “geração de 70” do século XIX, e, entre esses, o primeiro de todos –
Eça de Queirós – na sua
sátira social de criação de figuras representativas do encardimento mental no
nosso país. Entre essas figuras de eleição, conta-se Fradique Mendes, espécie de alter-ego ideal, já reproduzido noutras
personagens - de Carlos da Maia a
Jacinto, a Craft, apesar da cidadania britânica deste, mas de uma elegância
espiritual superior. Por isso, e por me parecer que é também essa a intenção de
JPP, não de vergastar, mas de orientar, em
idêntica preocupação formativa – de uma linguagem não de expressão literária,
mas elegante e esclarecida tout court,
como é apanágio da prosa de Pacheco
Pereira - transcrevo da Internet um excerto sobre Fradique Mendes, grata por encontrar neste nosso século XXI uma
figura preocupada com a educação no seu país, como o foi Eça e a ilustre geração a que pertenceu, mau
grado o dandismo crítico de Fradique
Mendes, saturado de civilização e preferindo, aparentemente – o retrato é
vasto – a simplicidade formativa do bom
selvagem. Mas o fosso entre a educação por cá e a de outros povos
superiores – da França, Inglaterra,
Alemanha – que Eça privilegia - não se preencheu, e daí a
preocupação de Pacheco Pereira, como o
fora a de Eça, apesar do
retrato rebuscado e um tanto pedante de Fradique. Não se trata, contudo, de um paralelo entre Pacheco Pereira e Fradique Mendes. Trata-se,
sim, de uma idêntica intenção de
Eça e de Pacheco Pereira: contribuir
para a formação do espírito português.
Ainda bem que vão aparecendo destas
figuras ao longo dos tempos, que nos preenchem o vazio e o medo do futuro das
próximas gerações, que os mecanismos electrónicos cada vez mais comandam.
OPINIÃO: O recuo da cultura das humanidades e a
democracia
A crise da leitura, associada à crise do silêncio, do
tempo e do espaço do pensar, a crise do valor do saber e das mediações que
implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento humanístico.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 21 de
Novembro de 2020
Algum do processo de usura da
democracia, de crescimento do populismo, de tribalização da
política, da cloaca das redes sociais, está para além do sentimento de exclusão
económica, social e cultural, está para além dos efeitos perversos da corrupção
e do nepotismo, e do racismo e xenofobia modernos. Está na fragilidade do suporte cultural que é
essencial para a sobrevivência da democracia, que é uma escolha cultural no
sentido lato contra a natureza. Repito, a
democracia não é um regime natural, mas artificial. Natural era andarmos todos a comer-nos
uns aos outros, e todos os regimes que assentam na violência e na ordem do
poder estão mais próximos dessa natureza do que da democracia. O que distingue a escolha democrática é exactamente
ser uma opção, uma escolha, que nos afasta da barbárie através de um conjunto
de procedimentos cujo objectivo é dar poder a todos, pela soberania do voto, e
construir sociedades reguladas pela lei, em que não vale tudo. É imperfeito, mas é o melhor que temos, e está a ruir
diante dos nossos olhos à custa de muita covardia, abolia e inércia.
Um dos aspectos dessa crise
democrática é o recuo daquilo que, à falta de melhor, podemos chamar humanidades. Não vou entrar aqui na discussão sobre as “duas
culturas”, que tem algum sentido em particular
onde uma das “culturas” não é reconhecida como tal, ou pelo menos como
igual à outra. Não me esqueço de um antigo flashback feito numa escola, ainda
com Vasco Pulido Valente, em que ele gozava
com Cavaco Silva porque este não sabia quantos Cantos tinham os Lusíadas.
Eu perguntei-lhe se ele sabia o Princípio de Arquimedes ou o que era a
inércia, e se não achava que isso era ignorância, e a coisa ficou por ali. Para
mim não tem sentido a distinção contraditória, porque os rudimentos de uma cultura
científica fazem parte das humanidades.
Vamos,
por isso, usar uma definição comum de vulgar de “humanidades”, para não complicar, que contém a literatura, a
arte, a música, o direito, as ciências sociais, a história, num contexto de
aproximação ao “homem” que desde a Renascença e o Iluminismo tem traços comuns.
Inclui uma ideia da fragilidade da vida humana, do
serviço do “bem comum”, dos direitos humanos, da liberdade, a começar pela mais
importante historicamente, a liberdade religiosa, do valor da igualdade, do
papel da educação na luta contra a servidão, na emancipação e dignificação do
trabalho, na recusa da violência, do respeito pelas escolhas de género e da
aceitação de que cada um é livre de viver a vida que quer desde que não seja à
custa da liberdade de outrem. É um sistema
de valores ideal, que não nos protege em absoluto contra a barbárie, mas ajuda. E sem ele, como “visão do mundo” e contexto, a
democracia não é possível, porque ele é uma peça fundamental na ecologia da democracia.
Não é por acaso que todos os anti-democratas se manifestam contra esta
tradição iluminista, que foi historicamente muito importante nos debates e
decisões da independência dos EUA, e preferem falar das perversões do
jacobinismo.
Mas esta cultura de
humanidades é uma cultura, implica conhecimento, saber, referências, capacidade
para viver experiências indirectas. É
livresca? Também é, porque implica ler livros e não pensar que meia dúzia de
simples competências num computador ou num telemóvel o substitui. E é incompatível com os traços anti-intelectuais típicos da
ignorância agressiva das redes sociais que
extravasam para a vida política no negacionismo da ciência que tem morto muita
gente na
actual pandemia. A crise da leitura, associada à
crise do silêncio, do tempo e do espaço do pensar, a crise do valor do saber e
das mediações que implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento
humanístico. É por isso que não se pode embarcar
no mito da “geração mais bem preparada”, quando essa “preparação” pouco mais é
do que um frágil diploma, conseguido com muito laxismo do lado das escolas, sem
ler um livro fora da sebenta, com mais consumo das indústrias de simplificação
e da logomaquia que vão do futebol ao Facebook, do engraçadismo dos vídeos
virais, ou à adoração das imagens no Instagram.
Querem
um exemplo do que é uma resposta à barbárie assente nas humanidades? Olhem para
a fotografia: Unamuno, velho e débil, em plena guerra civil
espanhola, diante de Millan Astray, legionário, mutilado de guerra, o típico
herói fascista, que dizia que sempre que ouvia falar de cultura puxava da
pistola, numa sala aos gritos de braços ao alto. Não se sabe bem os termos
exactos do que disse Unamuno, mas teve que ser tirado da sala protegido, mas o
que é importante é que sentiu o dever de ter que dizer ao falangista numa sala
cheia de falangistas que “vencer” não é “convencer”. A
coragem na defesa do sentimento humanista é hoje mais importante do que nunca.
Historiador
TÓPICOS OPINIÃO
HISTÓRIA DEMOCRACIA POPULISMO CULTURA CIÊNCIAS SOCIAIS EDUCAÇÃO
COMENTÁRIOS:
Jose INFLUENTE: Neste mesmo
jornal, aqui ao lado em P3, se denuncia a hostilidade e manipulação de
Bernardo Santareno nas comemorações do Centenário do seu nascimento. O
presidente da Câmara, Ricardo Gonçalves é autor e difusor da mutilação cultural
da obra de Santareno e censor da comemoração da efeméride. Mais um PPD que não
engoliu nem aprendeu com o 25 de Abril. Ao contrário prossegue as práticas
censórias e provocatórias de que foi vítima Santareno e toda a cultura
portuguesa. Eles andam por aí! Não espanta a preocupação de JPP com a
democracia expressa, mais uma vez, no texto de hoje. Como repetiu Santareno
"Lutem para que
fascismo não torne a acontecer neste país"! 21.11.2020 É muito oportuna
esta chamada da cultura humanista neste momento. Aprende-se há já muito tempo,
nas lições dos professores de ciência política que a democracia cedeu à
tecnocracia. O exemplo eloquente que dão é o da tecnocracia da UE
amordaçar e substituir as democracias dos povos membros como ficou explícito em
2015 e evidentíssimo na Grécia. Cá temos o Técnico inculto Rui Rio a levar
alegremente a democracia para o iliberalismo e já lá estão os polacos, os
húngaros... Não é possível evitar as redes sociais e menos ainda evitar os seus
efeitos. É melhor prestar-lhes atenção para se perceber a dimensão da
iliteracia das pessoas comuns. As pessoas são cultas, são produto das mesmas
colisões históricas dos eruditos clássicos, mas apresentam essa cultura em
bruto. Diamantes por lapidar. nunos INICIANTE: Está tudo muito
certo. Mas penso que terá sido em nome das Humanidades que as televisões
americanas cortaram o discurso do Trump. As Humanidades têm esse problema:
tendem a transformar-se em beatice.
Jose INFLUENTE: Caro nunos Erro
seu. Trump todos os dias chamou de todos os nomes às TV's excepto à Fox News
que mantinha sob chantagem. Fê-lo com o poder dos votos. Perdeu o poder dos
votos e não pode mais fazê-lo, nem à sua Fox. Foi o poder dos votos que deu
e tirou poder a Trump. Isso é possível em democracia. nunos INICIANTE: A vingançazinha
não é apanágio do Humanismo. As televisões deveriam ter mantido a
imparcialidade e informado o público. viana EXPERIENTE: Não tem a minima
idea do que significa imparcialidade. Vou-lhe dar uma dica: não consiste em
colocar perante o público, em pé de igualdade, a mentira e a verdade. Jose INFLUENTE: Caro nunos Não
há TV's imparciais em parte alguma. Nos EUA são oficialmente engajadas! Trump
empurrou-as mais para o lado do establishment. Saiu-lhe o tiro pela culatra.
21.11.2020
15:43 EXPERIENTE: Nem tudo é mau.
Tal como há cem anos se lia mais, mas eram muito menos os que eram letrados,
hoje há, por exemplo, negros a reflectir sobre a experiência da negritude, e
a democracia é mais participada. Há acesso à Wikipedia onde antes não chegavam
jornais. E como é possível diminuir a experiência do Instagram e da fotografia
fácil e facilmente partilhada, quando há poucos anos era difícil a um pobre ter
uma máquina fotográfica? A2 EXPERIENTE: O capitalismo de inspiração americana
dita aos estudantes de gestão e aos CEOs bem-sucedidos que estudar prepara a
sociedade para ter trabalhadores qualificados, mais do que cidadãos
conscientes. A França, pondo limites à liberdade religiosa na escola e
nos média, e cultivando o pensamento crítico dos alunos, acaba por ter escolas
muito mais iluministas do que os Estados Unidos. Mas ler livros está, de facto,
a passar de moda, em favor da visualização de filmes e séries e do sorvedor de
tempo que são as redes sociais. A2 EXPERIENTE: Engraçado como o JPP usa a palavra
"usura" com um sentido diferente do mais aceite. Até parece que é
para ganhar alguma disputa com um antigo professor... E se a ambiguidade das
palavras fosse perigosa? Por exemplo, "liberal" quer dizer
coisas opostas nos dois lados do Atlântico... "Despoletar" em vez
de desencadear ainda nos pode fazer perder uma guerra... O termo
"feminazis" é usado por homens intolerantes contra vítimas de
descriminação (a novilíngua orwelliana no seu melhor!)... PdellaF.468453
EXPERIENTE: Há
verdade neste texto, mas também alguma generalização abusivas. Por exemplo: livros
V.s computador ou. Um telemóvel pode conter muitos livros e já li alguns
em telemóvel que não leria noutro formato, já que aproveitei a portabilidade.
Há muitos "miúdos" que lêem nos seus ecrãs obras muitas vezes
inacessíveis por outros meios. Com a generalização da escolaridade
esperava-se um número mais alargado de gente mais bem preparada e, sobretudo,
um consumo de livros e de outras formas de comunicação cultural bem maior.
Passou-se de um país maioritariamente de analfabetos para o consumo massivo em
ecrã sem passar pelo livro. Tal como a democracia, ler não é natural e nessa
aprendizagem é importante o meio (família, etc.) Em Portugal, na geração de
JPP, não havia assim tanta gente que lesse.
Da Internet:
In “A Correspondência de Fradique
Mendes”
«O
homem do século XIX, o Europeu, porque só ele é essencialmente do século XIX
(diz Fradique numa carta a Carlos Mayer), vive dentro duma pálida e morna
infecção de banalidade, causada pelos quarenta mil volumes que todos os anos,
suando e gemendo, a Inglaterra, a França e a Alemanha depositam às esquinas, e
em que interminavelmente e monotonamente reproduzem, com um ou outro arrebique
sobreposto, as quatro ideias e as quatro impressões legadas pela Antiguidade e
pela Renascença. O Estado por meio das suas escolas canaliza esta
infecção. A isto, oh Carolus, se chama educar! A criança, desde a sua primeira «Selecta de
Leitura» ainda mal soletrada, começa a absorver esta camada do Lugar Comum —
camada que depois todos os dias, através da vida, o Jornal, a Revista, o
Folheto, o Livro Ihe vão atochando no espírito até lho empastarem todo em
banalidade, e lho tornarem tão inútil para a produção como um solo cuja
fertilidade nativa morreu sob a areia e pedregulho de que foi barbaramente
alastrado. Para que um Europeu lograsse ainda hoje ter algumas ideias
novas, de viçosa originalidade, seria necessário que se internasse no Deserto
ou nos Pampas; e aí esperasse pacientemente que os sopros vivos da Natureza,
batendo-lhe a Inteligência e dela pouco a pouco, varrendo os detritos de vinte
séculos de Literatura, lhe refizessem uma virgindade. Por isso eu te
afirmo, oh Carolus Mayerensis, que a Inteligência, que altivamente pretenda
readquirir a divina potência de gerar, deve ir curar-se da Civilização
literária por meio duma residência tónica, durante dois anos, entre os
Hotentotes e os Patagónios. A Patagónia opera sobre o Intelecto como
Vichy sobre o fígado — desobstruindo-o, e permitindo-lhe o são exercício da
função natural. Depois de dois anos de vida selvagem, entre o Hotentote nu
movendo-se na plenitude lógica do Instinto, — que restará ao civilizado de
todas as suas ideias sobre o Progresso, a Moral, a Religião, a Indústria, a
Economia Política, a Sociedade e a Arte? Farrapos. Os pendentes farrapos
que Ihe restarão das pantalonas e da quinzena que trouxe da Europa, depois de
vinte meses de matagal e de brejo. E não possuindo em torno de si Livros e
Revistas que Ihe renovem uma provisão de «ideias feitas», nem um benéfico Nunes
Algibebe que Ihe forneça uma outra andaina de «fato feito» — o Europeu irá
insensivelmente regressando a nobreza do estado primitivo, nudez do corpo e
originalidade da alma. Quando de lá voltar é um Adão forte e puro, virgem de
literatura, com o crânio limpo de todos os conceitos e todas as noções
amontoadas desde Aristóteles, podendo proceder soberbamente a um exame inédito
das coisas humanas. Carlos, espírito que destilas espíritos, queres remergulhar
nas Origens e vir comigo à inspiradora Hotentócia? Lá, livres e nus, estirados
ao sol entre a palmeira e o regato que tu telarmente nos darão o sustento do
corpo, com a nossa lança forte cravada na relva, e mulheres ao lado
vertendo-nos, num canto doce, a porção de poesia e de sonho que a alma precisa
— deixaremos livremente as ilhargas crestadas estalarem-nos de riso, à ideia
das grandes Filosofias, e das grandes Morais, e das grandes Economias, e das
grandes Críticas, e das grandes Pilhérias que vão por essa Europa, onde densos
formigueiros de chapéus altos se atropelam, estonteados pelas superstições da
civilização, pela ilusão do ouro, pelo pedantismo das ciências, pelas
mistificações dos reformadores, pela escravidão da rotina, e pela estúpida
admiração de si mesmos!...» Assim diz Fradique. Ora este «exame inédito das
coisas humanas», só possível, segundo o poeta das LAPIDÁRIAS, ao Adão
renovado que regressasse da Patagónia, com o espírito escarolado do pó e do
lixo de longos anos de Literatura — tentou-o ele, sem deixar os muros
clássicos da Rua de Varennes, com incomparável vigor e sinceridade. E nisto
mostrava intrepidez moral. No mundo a que irresistivelmente o prendiam os
seus gostos e os seus hábitos — mundo mediano e regrado, sem invenção e sem
iniciativa intelectual, onde as Ideias, para agradar, devem ser como as
Maneiras, «geralmente adoptadas» e não individualmente criadas — Fradique, com
a sua indócil e brusca liberdade de Juízos, afrontava o perigo de passar por um
petulante rebuscador de originalidade, ávido de gloriola e de excessivo
destaque. Um espírito inventivo e novo, com uma força de pensar muito
própria, deixando transbordar a vida abundante e múltipla que o anima e enche —
é mais desagradável a esse mundo do que o homem, rudemente natural, que não
regre e limite dentro das «Conveniências» a espessura da cabeleira, o estridor
das risadas, e o franco mover dos membros grossos. Desse espírito
indisciplinado e criador, logo se murmura com desconfiança: «Pretensioso! busca
o efeito e o destaque!» Ora Fradique nada detestava mais intensamente do que o
efeito e o destaque excessivo. Nunca Ihe conheci senão gravatas escuras. E
tudo preferiria a ser apontado como um desses homens, que, sem ódio sincero a
Diana e ao seu culto e só para que deles se fale com espanto nas praças, vão,
em plena festa, agitando um grande facho, incendiar-lhe o templo em Éfeso. Tudo
preferiria — menos (como ele diz numa carta a Madame de Jouarre) «ter de
vestir a Verdade nos armazéns do Louvre, para poder entrar com ela em casa de
Ana de Varle, duquesa de Varle e de Orgemont. A entrar hei-de levar a minha
amiga nua, toda nua, pisando os tapetes com os seus pés nus, enristando para os
homens as pontas fecundas dos seus nobres seios nus. Amicus Mundus, sed magis
amica Veritas! Este belo latim significa, minha madrinha, que eu, no fundo,
julgo que a originalidade é agradável às mulheres e só desagradável aos
homens — o que duplamente me leva a amá-la com pertinácia». Esta
independência, esta livre elasticidade de espírito e intensa sinceridade —
impedindo que, por sedução, ele se desse todo a um Sistema, onde para sempre
permanecesse por inércia — eram de resto as qualidades que melhor convinham à
função intelectual que, para Fradique, se tornara a mais continua e preferida «Não
há em mim infelizmente (escrevia ele a Oliveira Martins, em 1882) nem um sábio,
nem um filósofo. Quero dizer, não sou um desses homens seguros e úteis,
destinados por temperamento às análises secundárias que se chamam Ciências, e
que consistem em reduzir uma multidão de factos esparsos a Tipos e Leis
particulares, por onde se explicam modalidades do Universo; nem sou também um
desses homens, fascinantes e pouco seguros, destinados por génio às análises
superiores que se chamam Filosofias, e que consistem em reduzir essas Leis e
esses Tipos a uma fórmula geral, por onde se explica a essência mesma do
inteiro Universo. Não sendo pois um sábio, nem um filósofo, não posso
concorrer para o melhoramento dos meus semelhantes — nem acrescendo-lhes o
bem-estar por meio da Ciência, que é uma produtora de riqueza, nem
elevando-Ihes o bem-sentir por meio da Metafísica, que é uma inspiradora de
poesia. A entrada na História também se me conserva vedada: — porque, se,
para se produzir Literatura basta possuir talentos, para tentar a História
convém possuir virtudes. E eu!. . . Só portanto me resta ser, através das
ideias e dos factos, um homem que passa, infinitamente curioso e atento. A
egoísta ocupação do meu espírito hoje, caro historiador, consiste em me acercar
duma ideia ou dum facto, deslizar suavemente para dentro, percorrê-lo
miudamente, explorar-lhe o inédito, gozar todas as surpresas e emoções
intelectuais que ele possa dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcela de
verdade que exista nos seus refolhos — e sair, passar a outro facto ou a outra
ideia, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as cidades dum país
de arte e luxo. Assim visitei outrora a Itália, enlevado no esplendor das cores
e das formas. Temporal e espiritualmente fiquei simplesmente um touriste»
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