quarta-feira, 25 de novembro de 2020

José Pacheco Pereira e Eça de Queirós

 

Compreendo a preocupação de José Pacheco Pereira, homem de grande envergadura espiritual, em querer para o seu país aquilo que a este sempre faltou - uma generalização de hábitos culturais que só os nascidos em berço propício desde sempre usufruíram, e que faltou a uma maioria, por deficiente apoio social e educativo, que provocou tanta revolta, desde a “geração de 70” do século XIX, e, entre esses, o primeiro de todos – Eça de Queirós – na sua sátira social de criação de figuras representativas do encardimento mental no nosso país. Entre essas figuras de eleição, conta-se Fradique Mendes, espécie de alter-ego ideal, já reproduzido noutras personagens - de Carlos da Maia a Jacinto, a Craft, apesar da cidadania britânica deste, mas de uma elegância espiritual superior. Por isso, e por me parecer que é também essa a intenção de JPP, não de vergastar, mas de orientar, em idêntica preocupação formativa – de uma linguagem não de expressão literária, mas elegante e esclarecida tout court, como é apanágio da prosa de Pacheco Pereira - transcrevo da Internet um excerto sobre Fradique Mendes, grata por encontrar neste nosso século XXI uma figura preocupada com a educação no seu país, como o foi Eça e a ilustre geração a que pertenceu, mau grado o dandismo crítico de Fradique Mendes, saturado de civilização e preferindo, aparentemente – o retrato é vasto – a simplicidade formativa do bom selvagem. Mas o fosso entre a educação por cá e a de outros povos superiores – da França, Inglaterra, Alemanha – que Eça privilegia - não se preencheu, e daí a preocupação de Pacheco Pereira, como o fora a de Eça, apesar do retrato rebuscado e um tanto pedante de Fradique. Não se trata, contudo, de um paralelo entre Pacheco Pereira e Fradique Mendes. Trata-se, sim, de uma idêntica intenção de Eça e de Pacheco Pereira: contribuir para a formação do espírito português.

Ainda bem que vão aparecendo destas figuras ao longo dos tempos, que nos preenchem o vazio e o medo do futuro das próximas gerações, que os mecanismos electrónicos cada vez mais comandam.

 

OPINIÃO: O recuo da cultura das humanidades e a democracia

A crise da leitura, associada à crise do silêncio, do tempo e do espaço do pensar, a crise do valor do saber e das mediações que implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento humanístico.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 21 de Novembro de 2020

Algum do processo de usura da democracia, de crescimento do populismo, de tribalização da política, da cloaca das redes sociais, está para além do sentimento de exclusão económica, social e cultural, está para além dos efeitos perversos da corrupção e do nepotismo, e do racismo e xenofobia modernos. Está na fragilidade do suporte cultural que é essencial para a sobrevivência da democracia, que é uma escolha cultural no sentido lato contra a natureza. Repito, a democracia não é um regime natural, mas artificial. Natural era andarmos todos a comer-nos uns aos outros, e todos os regimes que assentam na violência e na ordem do poder estão mais próximos dessa natureza do que da democracia. O que distingue a escolha democrática é exactamente ser uma opção, uma escolha, que nos afasta da barbárie através de um conjunto de procedimentos cujo objectivo é dar poder a todos, pela soberania do voto, e construir sociedades reguladas pela lei, em que não vale tudo. É imperfeito, mas é o melhor que temos, e está a ruir diante dos nossos olhos à custa de muita covardia, abolia e inércia.

Um dos aspectos dessa crise democrática é o recuo daquilo que, à falta de melhor, podemos chamar humanidades. Não vou entrar aqui na discussão sobre as “duas culturas”, que tem algum sentido em particular onde uma das “culturas” não é reconhecida como tal, ou pelo menos como igual à outra. Não me esqueço de um antigo flashback feito numa escola, ainda com Vasco Pulido Valente, em que ele gozava com Cavaco Silva porque este não sabia quantos Cantos tinham os Lusíadas. Eu perguntei-lhe se ele sabia o Princípio de Arquimedes ou o que era a inércia, e se não achava que isso era ignorância, e a coisa ficou por ali. Para mim não tem sentido a distinção contraditória, porque os rudimentos de uma cultura científica fazem parte das humanidades.

Vamos, por isso, usar uma definição comum de vulgar de “humanidades”, para não complicar, que contém a literatura, a arte, a música, o direito, as ciências sociais, a história, num contexto de aproximação ao “homem” que desde a Renascença e o Iluminismo tem traços comuns. Inclui uma ideia da fragilidade da vida humana, do serviço do “bem comum”, dos direitos humanos, da liberdade, a começar pela mais importante historicamente, a liberdade religiosa, do valor da igualdade, do papel da educação na luta contra a servidão, na emancipação e dignificação do trabalho, na recusa da violência, do respeito pelas escolhas de género e da aceitação de que cada um é livre de viver a vida que quer desde que não seja à custa da liberdade de outrem. É um sistema de valores ideal, que não nos protege em absoluto contra a barbárie, mas ajuda. E sem ele, como “visão do mundo” e contexto, a democracia não é possível, porque ele é uma peça fundamental na ecologia da democracia. Não é por acaso que todos os anti-democratas se manifestam contra esta tradição iluminista, que foi historicamente muito importante nos debates e decisões da independência dos EUA, e preferem falar das perversões do jacobinismo.

Mas esta cultura de humanidades é uma cultura, implica conhecimento, saber, referências, capacidade para viver experiências indirectas. É livresca? Também é, porque implica ler livros e não pensar que meia dúzia de simples competências num computador ou num telemóvel o substitui. E é incompatível com os traços anti-intelectuais típicos da ignorância agressiva das redes sociais que extravasam para a vida política no negacionismo da ciência que tem morto muita gente na actual pandemia. A crise da leitura, associada à crise do silêncio, do tempo e do espaço do pensar, a crise do valor do saber e das mediações que implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento humanístico. É por isso que não se pode embarcar no mito da “geração mais bem preparada”, quando essa “preparação” pouco mais é do que um frágil diploma, conseguido com muito laxismo do lado das escolas, sem ler um livro fora da sebenta, com mais consumo das indústrias de simplificação e da logomaquia que vão do futebol ao Facebook, do engraçadismo dos vídeos virais, ou à adoração das imagens no Instagram.

Querem um exemplo do que é uma resposta à barbárie assente nas humanidades? Olhem para a fotografia: Unamuno, velho e débil, em plena guerra civil espanhola, diante de Millan Astray, legionário, mutilado de guerra, o típico herói fascista, que dizia que sempre que ouvia falar de cultura puxava da pistola, numa sala aos gritos de braços ao alto. Não se sabe bem os termos exactos do que disse Unamuno, mas teve que ser tirado da sala protegido, mas o que é importante é que sentiu o dever de ter que dizer ao falangista numa sala cheia de falangistas que “vencer” não é “convencer”. A coragem na defesa do sentimento humanista é hoje mais importante do que nunca.

Historiador

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COMENTÁRIOS:

Jose INFLUENTE: Neste mesmo jornal, aqui ao lado em P3, se denuncia a hostilidade e manipulação de Bernardo Santareno nas comemorações do Centenário do seu nascimento. O presidente da Câmara, Ricardo Gonçalves é autor e difusor da mutilação cultural da obra de Santareno e censor da comemoração da efeméride. Mais um PPD que não engoliu nem aprendeu com o 25 de Abril. Ao contrário prossegue as práticas censórias e provocatórias de que foi vítima Santareno e toda a cultura portuguesa. Eles andam por aí! Não espanta a preocupação de JPP com a democracia expressa, mais uma vez, no texto de hoje. Como repetiu Santareno "Lutem para que fascismo não torne a acontecer neste país"! 21.11.2020 É muito oportuna esta chamada da cultura humanista neste momento. Aprende-se há já muito tempo, nas lições dos professores de ciência política que a democracia cedeu à tecnocracia. O exemplo eloquente que dão é o da tecnocracia da UE amordaçar e substituir as democracias dos povos membros como ficou explícito em 2015 e evidentíssimo na Grécia. Cá temos o Técnico inculto Rui Rio a levar alegremente a democracia para o iliberalismo e já lá estão os polacos, os húngaros... Não é possível evitar as redes sociais e menos ainda evitar os seus efeitos. É melhor prestar-lhes atenção para se perceber a dimensão da iliteracia das pessoas comuns. As pessoas são cultas, são produto das mesmas colisões históricas dos eruditos clássicos, mas apresentam essa cultura em bruto. Diamantes por lapidar.         nunos INICIANTE: Está tudo muito certo. Mas penso que terá sido em nome das Humanidades que as televisões americanas cortaram o discurso do Trump. As Humanidades têm esse problema: tendem a transformar-se em beatice.       Jose INFLUENTE: Caro nunos Erro seu. Trump todos os dias chamou de todos os nomes às TV's excepto à Fox News que mantinha sob chantagem. Fê-lo com o poder dos votos. Perdeu o poder dos votos e não pode mais fazê-lo, nem à sua Fox. Foi o poder dos votos que deu e tirou poder a Trump. Isso é possível em democracia. nunos INICIANTE: A vingançazinha não é apanágio do Humanismo. As televisões deveriam ter mantido a imparcialidade e informado o público.           viana EXPERIENTE: Não tem a minima idea do que significa imparcialidade. Vou-lhe dar uma dica: não consiste em colocar perante o público, em pé de igualdade, a mentira e a verdade.       Jose INFLUENTE: Caro nunos Não há TV's imparciais em parte alguma. Nos EUA são oficialmente engajadas! Trump empurrou-as mais para o lado do establishment. Saiu-lhe o tiro pela culatra. 21.11.2020 15:43 EXPERIENTE: Nem tudo é mau. Tal como há cem anos se lia mais, mas eram muito menos os que eram letrados, hoje há, por exemplo, negros a reflectir sobre a experiência da negritude, e a democracia é mais participada. Há acesso à Wikipedia onde antes não chegavam jornais. E como é possível diminuir a experiência do Instagram e da fotografia fácil e facilmente partilhada, quando há poucos anos era difícil a um pobre ter uma máquina fotográfica? A2 EXPERIENTE: O capitalismo de inspiração americana dita aos estudantes de gestão e aos CEOs bem-sucedidos que estudar prepara a sociedade para ter trabalhadores qualificados, mais do que cidadãos conscientes. A França, pondo limites à liberdade religiosa na escola e nos média, e cultivando o pensamento crítico dos alunos, acaba por ter escolas muito mais iluministas do que os Estados Unidos. Mas ler livros está, de facto, a passar de moda, em favor da visualização de filmes e séries e do sorvedor de tempo que são as redes sociais.         A2 EXPERIENTE: Engraçado como o JPP usa a palavra "usura" com um sentido diferente do mais aceite. Até parece que é para ganhar alguma disputa com um antigo professor... E se a ambiguidade das palavras fosse perigosa? Por exemplo, "liberal" quer dizer coisas opostas nos dois lados do Atlântico... "Despoletar" em vez de desencadear ainda nos pode fazer perder uma guerra... O termo "feminazis" é usado por homens intolerantes contra vítimas de descriminação (a novilíngua orwelliana no seu melhor!)...         PdellaF.468453 EXPERIENTE: Há verdade neste texto, mas também alguma generalização abusivas. Por exemplo: livros V.s computador ou. Um telemóvel pode conter muitos livros e já li alguns em telemóvel que não leria noutro formato, já que aproveitei a portabilidade. Há muitos "miúdos" que lêem nos seus ecrãs obras muitas vezes inacessíveis por outros meios. Com a generalização da escolaridade esperava-se um número mais alargado de gente mais bem preparada e, sobretudo, um consumo de livros e de outras formas de comunicação cultural bem maior. Passou-se de um país maioritariamente de analfabetos para o consumo massivo em ecrã sem passar pelo livro. Tal como a democracia, ler não é natural e nessa aprendizagem é importante o meio (família, etc.) Em Portugal, na geração de JPP, não havia assim tanta gente que lesse.

 

Da Internet:

In “A Correspondência de Fradique Mendes”

«O homem do século XIX, o Europeu, porque só ele é essencialmente do século XIX (diz Fradique numa carta a Carlos Mayer), vive dentro duma pálida e morna infecção de banalidade, causada pelos quarenta mil volumes que todos os anos, suando e gemendo, a Inglaterra, a França e a Alemanha depositam às esquinas, e em que interminavelmente e monotonamente reproduzem, com um ou outro arrebique sobreposto, as quatro ideias e as quatro impressões legadas pela Antiguidade e pela Renascença. O Estado por meio das suas escolas canaliza esta infecção. A isto, oh Carolus, se chama educar! A criança, desde a sua primeira «Selecta de Leitura» ainda mal soletrada, começa a absorver esta camada do Lugar Comum — camada que depois todos os dias, através da vida, o Jornal, a Revista, o Folheto, o Livro Ihe vão atochando no espírito até lho empastarem todo em banalidade, e lho tornarem tão inútil para a produção como um solo cuja fertilidade nativa morreu sob a areia e pedregulho de que foi barbaramente alastrado. Para que um Europeu lograsse ainda hoje ter algumas ideias novas, de viçosa originalidade, seria necessário que se internasse no Deserto ou nos Pampas; e aí esperasse pacientemente que os sopros vivos da Natureza, batendo-lhe a Inteligência e dela pouco a pouco, varrendo os detritos de vinte séculos de Literatura, lhe refizessem uma virgindade. Por isso eu te afirmo, oh Carolus Mayerensis, que a Inteligência, que altivamente pretenda readquirir a divina potência de gerar, deve ir curar-se da Civilização literária por meio duma residência tónica, durante dois anos, entre os Hotentotes e os Patagónios. A Patagónia opera sobre o Intelecto como Vichy sobre o fígado — desobstruindo-o, e permitindo-lhe o são exercício da função natural. Depois de dois anos de vida selvagem, entre o Hotentote nu movendo-se na plenitude lógica do Instinto, — que restará ao civilizado de todas as suas ideias sobre o Progresso, a Moral, a Religião, a Indústria, a Economia Política, a Sociedade e a Arte? Farrapos. Os pendentes farrapos que Ihe restarão das pantalonas e da quinzena que trouxe da Europa, depois de vinte meses de matagal e de brejo. E não possuindo em torno de si Livros e Revistas que Ihe renovem uma provisão de «ideias feitas», nem um benéfico Nunes Algibebe que Ihe forneça uma outra andaina de «fato feito» — o Europeu irá insensivelmente regressando a nobreza do estado primitivo, nudez do corpo e originalidade da alma. Quando de lá voltar é um Adão forte e puro, virgem de literatura, com o crânio limpo de todos os conceitos e todas as noções amontoadas desde Aristóteles, podendo proceder soberbamente a um exame inédito das coisas humanas. Carlos, espírito que destilas espíritos, queres remergulhar nas Origens e vir comigo à inspiradora Hotentócia? Lá, livres e nus, estirados ao sol entre a palmeira e o regato que tu telarmente nos darão o sustento do corpo, com a nossa lança forte cravada na relva, e mulheres ao lado vertendo-nos, num canto doce, a porção de poesia e de sonho que a alma precisa — deixaremos livremente as ilhargas crestadas estalarem-nos de riso, à ideia das grandes Filosofias, e das grandes Morais, e das grandes Economias, e das grandes Críticas, e das grandes Pilhérias que vão por essa Europa, onde densos formigueiros de chapéus altos se atropelam, estonteados pelas superstições da civilização, pela ilusão do ouro, pelo pedantismo das ciências, pelas mistificações dos reformadores, pela escravidão da rotina, e pela estúpida admiração de si mesmos!...» Assim diz Fradique. Ora este «exame inédito das coisas humanas», só possível, segundo o poeta das LAPIDÁRIAS, ao Adão renovado que regressasse da Patagónia, com o espírito escarolado do pó e do lixo de longos anos de Literatura — tentou-o ele, sem deixar os muros clássicos da Rua de Varennes, com incomparável vigor e sinceridade. E nisto mostrava intrepidez moral. No mundo a que irresistivelmente o prendiam os seus gostos e os seus hábitos — mundo mediano e regrado, sem invenção e sem iniciativa intelectual, onde as Ideias, para agradar, devem ser como as Maneiras, «geralmente adoptadas» e não individualmente criadas — Fradique, com a sua indócil e brusca liberdade de Juízos, afrontava o perigo de passar por um petulante rebuscador de originalidade, ávido de gloriola e de excessivo destaque. Um espírito inventivo e novo, com uma força de pensar muito própria, deixando transbordar a vida abundante e múltipla que o anima e enche — é mais desagradável a esse mundo do que o homem, rudemente natural, que não regre e limite dentro das «Conveniências» a espessura da cabeleira, o estridor das risadas, e o franco mover dos membros grossos. Desse espírito indisciplinado e criador, logo se murmura com desconfiança: «Pretensioso! busca o efeito e o destaque!» Ora Fradique nada detestava mais intensamente do que o efeito e o destaque excessivo. Nunca Ihe conheci senão gravatas escuras. E tudo preferiria a ser apontado como um desses homens, que, sem ódio sincero a Diana e ao seu culto e só para que deles se fale com espanto nas praças, vão, em plena festa, agitando um grande facho, incendiar-lhe o templo em Éfeso. Tudo preferiria — menos (como ele diz numa carta a Madame de Jouarre) «ter de vestir a Verdade nos armazéns do Louvre, para poder entrar com ela em casa de Ana de Varle, duquesa de Varle e de Orgemont. A entrar hei-de levar a minha amiga nua, toda nua, pisando os tapetes com os seus pés nus, enristando para os homens as pontas fecundas dos seus nobres seios nus. Amicus Mundus, sed magis amica Veritas! Este belo latim significa, minha madrinha, que eu, no fundo, julgo que a originalidade é agradável às mulheres e só desagradável aos homens — o que duplamente me leva a amá-la com pertinácia». Esta independência, esta livre elasticidade de espírito e intensa sinceridade — impedindo que, por sedução, ele se desse todo a um Sistema, onde para sempre permanecesse por inércia — eram de resto as qualidades que melhor convinham à função intelectual que, para Fradique, se tornara a mais continua e preferida «Não há em mim infelizmente (escrevia ele a Oliveira Martins, em 1882) nem um sábio, nem um filósofo. Quero dizer, não sou um desses homens seguros e úteis, destinados por temperamento às análises secundárias que se chamam Ciências, e que consistem em reduzir uma multidão de factos esparsos a Tipos e Leis particulares, por onde se explicam modalidades do Universo; nem sou também um desses homens, fascinantes e pouco seguros, destinados por génio às análises superiores que se chamam Filosofias, e que consistem em reduzir essas Leis e esses Tipos a uma fórmula geral, por onde se explica a essência mesma do inteiro Universo. Não sendo pois um sábio, nem um filósofo, não posso concorrer para o melhoramento dos meus semelhantes — nem acrescendo-lhes o bem-estar por meio da Ciência, que é uma produtora de riqueza, nem elevando-Ihes o bem-sentir por meio da Metafísica, que é uma inspiradora de poesia. A entrada na História também se me conserva vedada: — porque, se, para se produzir Literatura basta possuir talentos, para tentar a História convém possuir virtudes. E eu!. . . Só portanto me resta ser, através das ideias e dos factos, um homem que passa, infinitamente curioso e atento. A egoísta ocupação do meu espírito hoje, caro historiador, consiste em me acercar duma ideia ou dum facto, deslizar suavemente para dentro, percorrê-lo miudamente, explorar-lhe o inédito, gozar todas as surpresas e emoções intelectuais que ele possa dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcela de verdade que exista nos seus refolhos — e sair, passar a outro facto ou a outra ideia, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as cidades dum país de arte e luxo. Assim visitei outrora a Itália, enlevado no esplendor das cores e das formas. Temporal e espiritualmente fiquei simplesmente um touriste»

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