Uma bonita lição de democracia utópica,
de autêntico requinte aristocrático nos dizeres. Gente fina é outra coisa. Mas será
que a gente fina é sincera nos ditames? Porque, como se tem visto, há sempre
naturais distâncias e discrepâncias nas igualdades dadas como ponto assente, e
que fazem convergir a liberdade para o estado de anarquia, como nós, os da vila
morena, bem temos notado. E só não vai mais longe, por ora, porque a
pandemia é geral e o medo também, e impõe máscaras de subserviência, agora sim,
de verdadeira similitude na palhaçada do encobrimento igualitário.
Recordando Churchill e Tocqueville /premium
Um olhar
retrospectivo sobre dois conceitos de democracia, a partir de dois aristocratas
que defenderam a democracia liberal como “regime
da regra” que presta contas aos eleitores.
JOÃO CARLOS
ESPADA ,
OBSERVADOR, 16
nov 2020
Na
passada quinta-feira, tive o prazer e o privilégio de apresentar na Academia
das Ciências de Lisboa uma breve comunicação sobre “Churchill e Tocqueville: A comum paixão aristocrática
pela liberdade”. Embora o
tema seja antigo, e tivesse sido escolhido há quase um ano, pode ter
actualidade inesperada nos conturbados dias que correm.
Basicamente,
recordando a comum condição aristocrática de Winston Churchill e Alexis de Tocqueville, sugeri um olhar retrospectivo sobre dois conceitos
modernos de democracia.
Na tradição associada a Rousseau (que
muito influenciou Robespierre,
Marx, Lenine e Mussolini, entre outros), a democracia tende a ser
entendida como regime monista, fundado na ‘vontade geral’. Alegadamente resultante de uma ruptura com a
tradição aristocrática descentralizada, a ‘vontade geral’ dos ‘iguais’ daria
lugar, segundo Rousseau, ‘à total alienação por cada associado de ele próprio e
de todos os seus direitos para toda a comunidade’.
Em
contrapartida, Churchill e, no
plano teórico, sobretudo Tocqueville sublinharam o potencial despotismo
desse entendimento da democracia, que associaram a um culto imoderado e moderno
da igualdade. Por
contraste, defenderam um entendimento liberal da democracia, que acentua a
limitação de todos os poderes e o pluralismo da sociedade civil com base na
“regra da lei”.
Observando
em acção a falácia de Rousseau na sua França natal, Tocqueville registou que “os homens que vivem nos séculos de
igualdade gostam naturalmente do poder central (…) e julgarão que tudo o que
lhe concedem estão a conceder a si próprios”. Por este motivo, prossegue o autor, na era da
igualdade, “a ciência do despotismo, outrora
tão complexa, simplifica-se e, por assim dizer, fica reduzido a um princípio
único”: os governantes que mais se identificarem com o homem comum e mais
ostentarem o culto da igualdade serão aqueles que maior facilidade terão em
retirar aos seus concidadãos a liberdade de que eles se imaginam soberanos
detentores. O resultado será uma nova forma de despotismo, antes desconhecida: o
despotismo em nome do povo.
Em suma, no centro do inquérito de
Tocqueville está a percepção de uma tensão intemporal entre liberdade e
igualdade. Esta tensão pode ser domesticada, mas Tocqueville não oferece razões
para pensar que ela possa ser inteiramente superada:
“Penso
que os povos democráticos têm um gosto natural pela liberdade; entregues a si
próprios, procuram-na, amam-na, e só dolorosamente se vêem separados dela. Mas,
pela igualdade, a sua paixão é ardente, insaciável, eterna, invencível: querem
a igualdade na liberdade e, se não podem alcançá-la, desejam-na mesmo na
escravidão.”
Para
tentar domesticar e civilizar a paixão ardente pela igualdade, Tocqueville sublinhou a importância de regras gerais imparciais
que garantam a separação de poderes bem como o equilíbrio e controlo mútuo
entre eles — aquilo que hoje denominamos Estado de Direito democrático. Citando os Federalist Papers americanos, sublinhou a
importância da independência estrita do poder judicial, começando pelo
julgamento por júri; a liberdade de imprensa; a descentralização política e
administrativa, que começa no governo local; a liberdade religiosa. E acrescentou um elemento raramente enfatizado
antes dele: a arte de associação espontânea, independente do poder
político (a que hoje chamamos “sociedade civil”).
No pluralismo das associações civis,
independentes do estado, Tocqueville viu uma espécie de “personalidades aristocráticas na era
democrática”:
“Desta
forma, obter-se-ia várias das maiores vantagens da aristocracia, sem ter de
incorrer nas suas injustiças, nem nos perigos que ela comporta. Uma associação
política, industrial, comercial, ou até científica e literária, é como que um
cidadão instruído e poderoso cuja vontade não pode ser vergada e que não se
consegue oprimir na sombra e que, ao defender os seus direitos particulares
contra as exigências do poder, salva as liberdades comuns”.
Também
Churchill defendeu
a tradição pluralista aristocrática e a limitação de todos os poderes
por regras gerais imparciais — o que
os ingleses chamam “rule of law”
e no continente chamamos “Estado de Direito”. Churchill foi mesmo ao ponto de dizer que o
segredo da liberdade inglesa — a sua antipatia por revoluções e
contra-revoluções — assentava na capacidade de ter assimilado todas as
reivindicações sociais modernas sem precisar de romper com a tradição
aristocrática da Magna Carta de 1215.
Disse Churchill sobre a filosofia política de seu pai, o líder conservador
Lord [Randolph] Churchill:
“Ele
não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do
País, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou que as massas
do povo trabalhador não pudessem tornar-se as maiores defensoras daquelas
antigas instituições através das quais as suas liberdades e o seu progresso têm
sido alcançados. É esta união entre o passado e o presente, da tradição e do
progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão
indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a
qualidade soberana da vida nacional inglesa.”
Post Scriptum: Na abertura da referida sessão da Academia das
Ciências foi muito justamente recordado pelo Presidente da Classe de Letras, Professor
Jorge Gaspar, o dia de
luto nacional por Gonçalo
Ribeiro Telles. Conheci-o
pessoalmente, através do então Presidente Mário Soares, e tinha por ele grande estima e admiração pessoal.
Associo-me à homenagem tocante que o país lhe tem prestado. À família enlutada
envio as mais sentidas condolências.
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