Maria João Avillez
exemplifica, na pessoa de um pintor-escritor dos seus arrebatamentos culturais –
Jorge Martins – num ano
perverso, de que a sua vida, de escalada contínua pelo requintado mundo
cultural, ajuda a minorar os efeitos perversos sobre os incautos humanos.
Os benditos do maldito 2020 /premium
Há pequenos intervalos, breves espaços
de luz. São breves, mas são os benditos desvios da maldita dupla. Essa tormenta
global que ficará registada na História como o assassino número 2O/2O.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 04 nov
2020
1.Há
muita boa gente que aprecia capicuas, anos bissextos, o número 13, coisas
assim. Como qualquer supersticiosa de boa cepa rejeito veementemente tudo isso.
No
Brasil, nos primeiros minutos de 2020, com um copo de champanhe na mão e
Copacabana aos pés, teria preferido brindar a um ano vindouro com outros
algarismos, mas era o que havia: 2020. Mal eu sabia, mal sabíamos todos, que
era isto: incerteza sem prazo e outra vida, sabe-se lá até quando. Os filmes de ficção científica costumam demorar um
pouco menos.
2. Mas
há pequenos intervalos, breves espaços de luz, bóias de salvação. No
cruzamento da aflição do vírus com a incógnita americana – à hora a que escrevo
nada se pode saber – agarro-me a uma dessas bóias. Com a plena consciência de
que só elas nos podem aclarar o desconhecido que tacteamos. E que só elas – a
atenção, a curiosidade, a não desistência do real – nos manterão à tona
desta prova. E nos municiarão para captar a vibração para além da pandemia,
redescobrir a criatividade, percepcionar a singularidade poética de alguns
momentos. São breves, mas são os benditos desvios da maldita dupla. Essa
tormenta global que ficará registada na História como o assassino número 20/20.
3. É um livro. Mas uma contadora
remetida à sua mera condição de contadora, vê-se aflita: e como definir o que
ali está? É que o que ali está, é um bom bocado da alma e da “forma mentis” de Jorge
Martins. Já conhecíamos o risco do seu
desenho e o traço do seu pincel –
magníficos, ambos – mas agora eis que o pintor nos chega de outro e mais
inesperado modo, através da palavra. Outros artistas plásticos – e não
poucos – também usaram o verbo como instrumento, mas julgo que não deste modo.
Aqui não são diários, ainda menos memórias, não há disciplina cronológica nem
propósito definido. Há um rio de pensamentos, fragmentos, aforismos, notas
(talvez “ desabafos”, como me disse o seu autor); um rio que não parou de
correr desde 1964,
quando Jorge Martins começou,
de si para si, a escrevinhar em caderninhos. O novelo das palavras desenrola-se à flor da
pele, da observação, da vivência, numa viagem – mansa ou tempestuosa, terna ou
rendida, incerta ou indignada, triste ou perplexa, banal ou sentimental -, que
é desigual como desigual é, afinal, a própria vida, mas que captura, intacta, a
vida do seu autor dentro de cada sílaba. E… que dizer de melhor de um autor
– malgré lui, que se nos “oferece”
assim? Que a oferta é bendita.
Vale
a pena contar: no Outono
de 2018 – quando não sabíamos que éramos felizes, lembram-se? – Jorge
Martins é convidado pelo Museu de Arte Contemporânea de Badajoz, para
uma mostra comissariada por Oscar Molina,
brilhante intelectual, professor de estética e hoje dedicado à curadoria. A
relação entre artista e curador viria, aliás, a desaguar em recíproca (e
fértil!) admiração e cúmplice amizade. Meses depois, o director do também
Museu de Arte Contemporânea de Vigo, Miguel Fernandéz-Cid, fez “absoluta” questão em que a “sua” casa
acolhesse igualmente a exposição de tão esplendorosos desenhos. Assim foi:
as obras moveram-se de uma para a outra cidade espanhola e os (breves)
“escritos” de Martins que emolduravam a exposição em Badajoz, viajaram também
para Vigo. Curioso e admirado, Fernandez-Cid pediu para ler mais. E leu.
A descoberta empolgou-o. Como empolgara já Oscar Molina, quando com eles “privara”. Mereceriam livro, mas desta feita como que ao
contrário: a escrita é que seria emoldurada por alguns desenhos. Assim
foi de novo: “Cadernos-Cuadernos” é
hoje um vasto volume em edição bilingue (português/espanhol), fruto da
iniciativa do Museu de Vigo e do seu director. Mas – avisado adágio – como
“a Cesar o que é de Cesar”, os “Cadernos” de Jorge Martins são também filhos da
editora “Documenta”, de Manuel Rosa. Que o mesmo é dizer – mas não seria
preciso – que são graficamente perfeitos. Eis uma história onde vários “beaux
esprits”… se cruzaram. Para nosso privilégio (e bóia de salvação).
4. Há
dias, no auditório 2 da Fundação Gulbenkian,
viveu-se um desses momentos a que acima aludi. Raros e preciosos, porque
verdadeiramente capazes de iluminar a sombra que tinge os dias. A sala também o
terá percebido, a expectativa ia de par com o que ali se celebrava: a
atribuição a José Tolentino de Mendonça do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva
para a Divulgação do Património Cultural, dado pelo Centro Nacional de Cultura,
no âmbito da sua estreita colaboração com a prestigiada Europa Nostra.
Apesar da distância geográfica, do regresso feroz da pandemia a Itália e da
agenda que se lhe conhece em Roma, a vinda de Tolentino a Lisboa tornou
ainda mais grata a expectativa, amplamente correspondida. Dei mesmo comigo
a pensar que talvez raras vezes naquela sala onde tantas, tantas vezes estive,
se tivesse acolhido um tão inspirado uso do verbo: foi notabilíssimo o que se
ouviu naquele fim de tarde e admirável o que o Cardeal Tolentino nos disse.
Posso nomear os intervenientes que o antecederam – Isabel Mota, Graça
Fonseca, Maria Calado, Dinis Abreu, António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa
-, mas ficarei aquém. O que deixou rasto e memória foi a harmonia e a
consonância entre todos eles no entendimento do que é ser culto e do que se
pode fazer com a cultura: no modus operandi da palavra, na imperativa
importância de se homenagear alguém como este homem de Deus, poeta e português
nosso. Tolentino subiu ao pequeno palco, igual a si mesmo: simples, sereno,
sorridentemente luminoso. Redimiu o livro de tantas mortes anunciadas,
falando-nos dele polifonicamente, mas dizer isto é de novo ficar aquém. Só
ouvi-lo, ou lê-lo, será o único gesto possível à altura do que nos concede
quando fala ou escreve. Um bendito.
Percebi
que em pouco mais de uma hora se tinha voltado à vida naquela sala.
5. Pequeno
excerto da intervenção de José Tolentino de Mendonça:
“(…)
Não podemos esquecer, porém, que a civilização que inventou o livro tal como
até aqui o conhecemos, inventou também as condições requeridas para a sua
leitura e que essas nos modelaram antropologicamente durante séculos e
constituem um património cultural que precisamos de preservar. Pois quem
inventou o livro inventou o silêncio da leitura; inventou essa forma íntima
de temporalidade que torna o encontro com o livro indissociável do encontro
connosco próprios; inventou a atenção, a aventura do conhecimento elaborada a
partir de certas premissas e a curiosidade; inventou um regime social onde a
actividade intelectual era admitida e, não podemos esquecer, esse regime
libertou o homem, revelando-lhe a sua dignidade; inventou o direito universal à
alfabetização e multiplicou as comunidades de leitores; inventou o
individuo e a vida privada; inventou a confiança na consistência da linguagem e
as bibliotecas; inventou os salões literários, os cafés e as praças como
lugares de debate; inventou os sistemas críticos e hermenêuticos, que garantem
não só a legibilidade dos livros, mas a compreensão dos mundos possíveis;
inventou as escolas monacais e a ideia moderna de universidade; inventou o
humanismo e a liberdade de expressão, que é sempre inseparável da liberdade de
ser. O livro acompanhou o nascimento e expansão das línguas modernas do
Ocidente e assistiu ao desenvolvimento das suas possibilidades expressivas,
cognitivas e de imaginação. Quem inventou o livro inventou uma certa forma de
produzir história e inventou também a figura de leitor que ainda somos.
O
património humano, cultural e espiritual que o livro representa é, por isso,
incalculável. O que o livro põe em jogo é muito mais do que o livro. Não nos
podemos desfazer dele como se fosse um arcaico vestígio destinado a ser
progressivamente desactivado. (…)”
CULTURA PANDEMIA SAÚDE LITERATURA ARTE
COMENTÁRIOS
Cisca Impllit: Superstição de parte, mas também os há: os malditos do
bendito ano tal! Aguçou uma vontade de ler Jorge Martins; parece que
desde 1964, bendito, o bendito Pintor, de risco e traço, vem juntado benditos
escritos!!
bento guerra: Como é que se diz isso em chinês?
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