Com eloquente evocação, com explícita
descrição, com desfavorável retrato de todos nós – de esquerda, de direita,
relativamente a uma América poderosa,
que a nossa inveja, talvez, desdenha conquanto cobice… Excelente quadro de António Barreto. Só desejamos, nós, os invejosos, que a
América continue a ser a guardiã do mundo ocidental, no qual nos fixámos desde os
primórdios…
OPINIÃO
América, América!
Mandar no mundo tem vantagens. Em
importância, respeito dos outros, bem-estar e lucros. É o que faz com que
metade dos americanos queira ter uma “América grande, outra vez”.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 8 de Novembro de 2020
Com
algumas notáveis excepções, como Tocqueville, Einstein, Kazan, Hitchcock ou
Kissinger, os europeus nunca gostaram da América. Ainda menos dos americanos,
que odeiam ou desprezam com a mesma intensidade.
Grande parte da direita europeia é
ciumenta, não gosta da meritocracia, não preza a liberdade, não tem especial
afecto pela tolerância nem pelo igualitarismo e despreza aquilo que considera
ser a vulgaridade americana. Essa mesma direita acha que os americanos são boçais, dominadores e ignorantes. Ao lado dos
americanos plebeus e sem maneiras, a direita europeia considera-se
aristocrática. Democratas ou não, europeus de várias direitas como De Gaulle, Franco e Salazar
detestavam os americanos.
A maior parte da esquerda
europeia detesta a América e os americanos. Estes
seriam imperialistas, arrogantes, sem sofisticação cultural, barulhentos,
racistas e violentos. A maior parte da esquerda europeia detesta o liberalismo
em geral, o americano em particular. A esquerda europeia considera-se
sofisticada e culta, despreza o que acredita ser a rudeza americana, condena a
brutalidade dos americanos e critica asperamente a alegada inclinação para a
violência e a pornografia de metade da América e o fanatismo religioso e
ignorante de outra metade.
Direita e esquerda europeias não gostam do dinheiro, do liberalismo,
da eficácia e do individualismo americanos. Esquerda
e direita europeias detestam o facto de terem sido ajudados, defendidos e
libertados pelos americanos nas duas guerras mundiais. Esquerda e direita europeias adoram e cultivam, em
segredo, quase tudo o que condenam publicamente nos americanos.
Ao afastar Donald Trump, líder popular e
carismático, Presidente dos EUA durante um período de excepcional crescimento
da economia e do emprego (sem contar o ano da pandemia) e que conseguiu, na
tentativa de reeleição, aumentar em sete milhões de votos os resultados de
2016, os eleitores americanos prestaram insigne serviço ao mundo e às
liberdades, quem sabe se à paz. É
verdade que sobram problemas enormes, para os Estados Unidos e o mundo, como
seria de esperar. Mas o certo é que Trump era um claro obstáculo
ao entendimento racional entre Estados e uma ameaça, que agora parece estar
removida.
Trump é um desordeiro narcisista, mentiroso, sem escrúpulos,
arrogante, machista, violento e paranóico! Certo. Mas metade dos cidadãos
americanos votou nele uma vez e repetiu, com vantagem, quatro anos depois. E
ninguém parece queixar-se de ter sido enganado. Entre muitos que votaram nele,
contam-se milhões de mulheres, trabalhadores, agricultores, negros e
hispânicos.
Não
há diferenças absolutas entre os eleitorados de Biden e de Trump. Ou antes, há
pequenas diferenças (idade,
educação, residência, classe social, emprego, trabalho…), duas ou três mais significativas. A maioria
dos “não-brancos”, dos residentes nas grandes cidades e dos negros e latinos
votou em Biden. Nada
absolutamente distinto, mas o suficiente para separar algumas áreas. Realmente
distintos e definitivos são as preferências políticas. Dos que se consideram
liberais, 90% votaram em Biden, só 10% em Trump. Dos que se consideram
conservadores, 85% votaram em Trump e só 15% em Biden. Quer isto dizer que a opinião
política pesou mais do que as habituais categorias de classe, de idade, de
sexo, de educação e outras.
A América pós-Trump tem pelo menos tantos problemas quanto tinha
antes. A América está, gradualmente, a deixar de mandar no mundo. Por razões
internas e externas. Muitos americanos não querem isso. Desejam continuar a
mandar, a ter uma voz especial e a ter mais peso do que qualquer outro país. E
a verdade é que a América tem a força, o dinheiro, a ciência e a técnica
suficientes para querer mandar no mundo e para não passar a ter uma posição
subordinada ou igual aos outros. O que não quer dizer que os outros devam
aceitar essa hegemonia.
Mandar no mundo tem vantagens. Em
importância, respeito dos outros, bem-estar e lucros. É o que faz com que metade
dos americanos queira ter uma “América grande, outra vez”, e não queiram perder
tempo com o multilateralismo ou a ONU. Mandar
no mundo, receber proveitos, ter interesses em todo o planeta e ser receado tem
essas vantagens. Metade dos americanos não quer ceder! Trump é igual a metade
da América, a esses americanos que querem mandar no mundo.
Nada de grande se faz sem grandes defeitos. Vale a pena recordar a escravatura, o
massacre dos índios, o banditismo e a violência armada que fazem parte da
América? Será necessário recordar que o racismo, o machismo e a arrogância
encontraram, na América, terrenos férteis? É tudo verdade, tal como o facto de
a liberdade, a criação, o mérito, as letras, as artes, as ciências, os museus,
as bibliotecas e as universidades terem ali terras acolhedoras e quase
ilimitadas oportunidades. Como também é verdade que a justiça encontrou terra
eleita, enquanto os grandes combates pela liberdade e pela dignidade das
mulheres, das crianças, dos negros e das minorias ali tiveram alfobre e estufa!
O
caos e os excessos desta eleição. A
violência verbal inexcedível. As ameaças presentes na rua. A divisão radical da América. Os perigos
das reacções dos derrotados e o vácuo doutrinário dos vencedores indiciam uma
crise americana inédita. A ponto de nos interrogarmos com tristeza. Que
é feito do pensamento liberal? Que
aconteceu à liderança democrática do mundo? Onde está a tradição cultural do
cinema americano, da grande literatura, da mais avançada ciência do mundo? Será que desaparece a capacidade de atrair gente de
todo o planeta, emigrantes de todos os países, trabalhadores de todos os
continentes? Que é feito da tradição americana de acolhimento de dezenas de
milhões de imigrantes e refugiados do mundo inteiro?
Onde está a tradição dos
limites ao poder? Das instituições fortes, independentes e autónomas. Do poder
civil. Dos “checks and balances”… Temos todos
os motivos para ficar inquietos. A América, cuja decadência se anuncia há
décadas, cujo fim da hegemonia se prevê há cinquenta anos, continuará a ser
militarmente poderosa, assim como científica e economicamente muito forte. Mas
tem cada vez menos influência política. Este contraste entre o excesso de poder
militar e a falta de influência política pode estar na origem de crises e
desastres.
Para onde foi aquele orgulho na
independência das instituições que parece estar ser substituído pela sede de
conquista partidária? Onde está a terra de esperança que, durante décadas ou
séculos, alimentou os sonhos de tantos povos? A América sempre esteve entre
Deus e o diabo. Sempre foi Deus e diabo.
Sociólogo
TÓPICOS AMÉRICA DONALD TRUMP EUA HISTÓRIA EUROPA ELEIÇÕES EUA 2020
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