segunda-feira, 2 de novembro de 2020

É preciso muita coragem


Para repegar no tema banalizado da morte assistida, contestando o chumbo do referendo pelos digníssimos parlamentares que não sei se estudaram bem a lição ou se se deixaram embarcar nos argumentos dos que palram melhor, em obediência aos seus anseios de difusão do bem-estar social. Nenhum dos comentadores apoiou Isilda Pegado, todos do partido da piedade pelos que sofrem, como se tem visto. E foram insultuosos, tais comentadores. Ainda eliminei uma das diatribes – do último comentador, por me parecer excessiva, mas a facúndia insultuosa foi geral. A morte desses sofredores será bem-vinda, no mundo de intensa piedade em que vivemos. Creio que o nazismo também foi adepto desses extermínios, embora sem assistência, naturalmente, para não se pôr em risco as vidas dos que os ordenavam. A nossa morte assistida é entregue a médicos especializados, despenalizados desses crimes que lhes pesarão nas consciências, se as tiverem, em vez de dizerem à família do condenado: “Faça você isso! Carregue você com o fardo…”

Chumbo do referendo ou a eutanásia chumbada

Se esta lei for aprovada deste modo, está aberto caminho para o autoritarismo e o despotismo. A democracia está fragilizada e à mercê de quem se quiser apresentar para “limpar o mundo”.

ISILDA PEGADO, Presidente Federação Portuguesa pela Vida, mandatária da I. P. Referendo

OBSERVADOR, 01 nov 2020

1O Parlamento reprovou o Referendo à Eutanásia que uma iniciativa popular, nos termos da Constituição, lhe dirigiu. Fê-lo com argumentos falaciosos e toldados por uma ideologia que não se pode deixar de denunciar.

2Disse-se: “A pergunta proposta era inconstitucional”. Não foi fácil formular a pergunta, mas a apresentada colheu o visto de ilustres constitucionalistas e é fiel ao texto penal. Se os deputados  tinham esse óbice poderiam, nos termos dos poderes que lhes estão conferidos, apresentar iniciativa legislativa com pergunta que lhes parecesse mais conforme à Constituição. Além de que cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a conformidade da pergunta. Mas, em Setembro próximo, se o processo legislativo ainda não estiver concluído, qualquer um dos grupos parlamentares pode ainda propor, de novo, um referendo à eutanásia. Com a pergunta que desejarem. Porque não?

Tal argumento é bacoco e sem credibilidade política/científica. Areia para olhos incautos.

3Argumentou-se que “nem a Vida nem os Direitos Humanos são referendáveis”. Ora, tudo o que é legislável (e não vedado pela Constituição, art.º 115 n.º 4) é referendável. Este não era um referendo à vida ou à morte. Era o pressuposto para que se pudesse fazer, ou não, uma lei que permite ao Estado autorizar que se mate um homem ou uma mulher, pretensamente na plenitude das suas capacidades mentais.

Se a matéria não fosse referendável, não teria, sequer, sido admitida na sequência do relatório do deputado António Filipe (PCP) e proferido, subsequentemente, despacho do Presidente da Assembleia da República.

É, por isso, um argumento bacoco e sem credibilidade política/científica. Areia para olhos incautos.

4A questão é demasiado complexa para ser decidida por sim ou não”. Todas as questões levadas a referendo, no mundo inteiro, são complexas e a resposta só pode ser um sim ou um não. É por isso que o poder legislativo é do Parlamento. Mas a questão basilar é clara. Será o povo menos sabedor do que os deputados? Aliás, dezenas de entidades, reconhecidas e ouvidas pelo Parlamento, deram parecer negativo à eutanásia. Serão menos capacitados que os srs. deputados? Bem sabemos que o referendo seria apenas para dar, ou não, luz verde ao legislador.

Mais um argumento sem qualquer fundamento político/científico. Areia para olhos de incautos.

5Invocou-se o “direito à liberdade de cada indíviduo” em optar entre o “sofrimento indizível” e a eutanásia. Como se a alternativa só tivesse esses dois polos. Esquece-se que esse argumento (do século passado) tem hoje um conjunto de alternativas que não podemos ignorar. Entre o “sofrimento” e o “pedir para ser morto”, há todo um conjunto de alternativas da Medicina, dos cuidados paliativos, das unidades de dor, do amor e dos que estão mais próximos, que podem e devem falar mais alto. E que a lei e a sociedade têm a obrigação de proporcionar a quem se encontre nessas circunstâncias.

O argumento da pseudo-liberdade (individualismo) não tem qualquer fundamento político/científico. Areia para olhos de incautos.

6Será inútil continuar a esgrimir contra todos os “moinhos de vento”, que infelizmente se levantaram como objecção ao referendo. Do debate parlamentar apenas resultou a falta de fundamentos científicos, éticos e sociais. Mas transbordou a força do poder e a arrogância de quem, uma vez eleito, esquece o eleitor e os mais carenciados. Esquece o bem comum e fica cego por uma ideologia que não olha a meios para impor até a morte dos mais vulneráveis.

7Mas também se viu um poder que não suporta, e por isso tenta humilhar, ignorar, desdenhar e esmagar os movimentos cívicos que não são manipulados pelos partidos. A movimentação cívica espontânea e independente é incomoda e deve ser abafada, ainda que com argumentos sem sentido – areia para os olhos de alguns….

8A eutanásia ainda tem caminho a percorrer. Ficou claro que quem se propõe fazer a lei não ouve a ciência (Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros, Conselhos Superiores das Magistraturas, professores universitários de topo, associações reconhecidas e dezenas de entidades), não reconhece a ética (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – entidade nomeada por órgãos estatais e pelo próprio Parlamento) e não quer ouvir o povo. O chumbo do referendo pode ter arrastado consigo o chumbo da eutanásia.

9Se esta lei for aprovada deste modo, está aberto caminho para o autoritarismo e o despotismo. A democracia está fragilizada e à mercê de quem se quiser apresentar para “limpar o mundo”. No governo dos povos não basta seguir a forma dos actos, quando essa “forma” destrói a substância. O edifício está ferido e facilmente cai.

10Oxalá, ainda haja quem olhe para esta lei que permitiria ao estado licenciar a morte de pessoas (a pedido destas) e possa fazer valer a democracia, o Estado de Direito e a Constituição.

O chumbo do referendo pode também chumbar a eutanásia.

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PARLAMENTO  POLÍTICA  EUTANÁSIA  SAÚDE  REFERENDO  SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Paulo Alexandre : Ateu: Foi a Isabelinha que falou em argumentos sem sentido? Curiosamente, quando esta questão foi colocada pela primeira vez, há uns anos, a percentagem de portugueses favoráveis à eutanásia não ia além dos 40%. Entretanto, as sondagens mais recentes dizem que 3/4 dos portugueses têm uma posição favorável à dita cuja. Parece que os vossos "argumentos" é que não têm sentido e não convencem os portugueses. Já agora, foi a Isabelinha que falou em "movimentos cívicos"? Não me faça rir! Desde quando a Igreja Católica é cívica e passou a ser um "movimento"? Paulo Alexandre : Ateu: Será o povo menos sabedor do que os deputados? Sim, é! Não sabe disso? Porque será que o povo elege deputados, supostamente membros das elites científicas, intelectuais, artísticas, filosóficas, etc? Porque será que os deputados são obrigados a estudar as matérias que votam, consultando documentos, ouvindo argumentos e pesando factos, questões e problemas que a esmagadora maioria do povo não está minimamente preparada para avaliar? Se acha que o povo é tão sabedor como os deputados, defenda a transformação do regime numa democracia participativa com referendos regulares. Que tal governar os destinos de Portugal com referendos diários online? Seriam lindos os resultados!       Paulo Alexandre : Ateu: Se os deputados tinham esse óbice poderiam, nos termos dos poderes que lhes estão conferidos, apresentar iniciativa legislativa com pergunta que lhes parecesse mais conforme à Constituição. Sim, sim, Isabelinha! Por isso mesmo é que, há dois anos, defenderam a necessidade de realização de um referendo, não foi? Santa hipocrisia!     José Crispim O artigo, deplorável na minha perspectiva, continua a invocar argumentos que se resumem apenas a: 1 - Terá alguém o direito de decidir o que EU faço com a "minha vida"? 2 - Terá alguém o direito de invocar um inexistente deus (realço INEXISTENTE) para fundamentar que a vida "só a ele pertence"? Eu, por exemplo, nunca aceitaria "viver" sem o uso das minhas faculdades (andar, ver, ouvir, usufruir da minha inteligência...). Não tenho esse direito? Ok, provavelmente terei posses para ir para a clínica Veritas e, a meu pedido, que seja terminada a minha vida. Mas quem não tem? Aparecessem as "Isildas Pegados" que vão levar para as suas casas para "que se cumpram os desígnios de deus? Estas... senhoras. apenas "defendem a vida" porque "...a deus pertence...", mas "palavras" são o que são! Pergunto quantas adopções fizeram? De quantos tetraplégicos tratam? Quantos doentes terminais tratam? Minha Senhora (Isilda Pego). O facto de a Senhora achar que a sua vida pertence a deus, tem todo o direito de assim pensar e eu respeito. Mas o facto de interferir na minha perspectiva - A MINHA VIDA PERTENCE-ME - denota, pelo menos, uma baixa condição cultural, no mínimo...!!!!       bento guerra: Cega, ou só descaramento?       Maria Clotilde Osório: Muito obrigada a todos os cidadãos que se mobilizam para participar na vida da Polis. Não são monstros; são cidadãos responsáveis que, no pleno uso da sua liberdade, se organizam para expor as suas opiniões e apresentarem sugestões ou alternativas. Devem ser ouvidos e respeitados. E o Estado/sociedade devem oferecer ao indivíduo todas as opções permitidas actualmente pela ciência para que este escolha em liberdade. Não me parece que actualmente exista no nosso País um sistema de saúde público ou apoios sociais que o permitam. Antes pelo contrário         Paulo Alexandre : Ateu > Maria Clotilde Osório: Que nome se poderá dar a alguém que sabe que uma pessoa se encontra em grande sofrimento, sofrimento que não tem cura e não pode ser minorado, sofrimento que se perpetuará durante anos ou até décadas de constante agonia e, ainda assim, acha que a dita cuja deve manter-se viva, quando ela implora pela morte? Que nome se poderá dar a alguém que se comporta dessa forma, a não ser um monstro sádico e cruel, incapaz de desenvolver a mais mínima empatia porque considera que as suas próprias crenças devem ser impostas à vida alheia? O que é que vocês, monstros sádicos e cruéis, fizeram ao conceito de livre-arbítrio, que passam a vida a propagandear?       Antes pelo contrário: Esta agitadora desonesta, reclama é o direito a ser déspota em relação ao sofrimento dos outros, invocando falsamente a democracia para impedir que cada um decida por si próprio.

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