Transcrevo, saboreando, parte de um dos
últimos textos – uma epístola – desta obra de saltos e soluços, ironias e raivas
e finezas cabalísticas - mais do que maneiristas - nos espaços e tempos -
estes, contudo, convergindo poderosamente para o seu intuito final de
desmistificação dos podres de uma sociedade desde sempre chauvinista,
especialmente o mundo latino a que pertencem os povos ibéricos - o povo
português, sobretudo, entre esses - que os condicionalismos de uma educação
unilateral, de predomínio masculino, durante séculos, tornou, desde sempre, a
mulher, como refém do machismo castrador. Tudo isso vai sendo eloquentemente
demonstrado, nesta obra de estrutura multifacetada, as mais das vezes em estilo
disperso e de construção obscura, mistificatória, satírica, o narrador ou
sujeito poético muitas vezes presentes, bem como os respectivos destinatários, de
acessibilidade quantas vezes apenas cúmplice – nela se incluindo os literatos e
mais componentes amigos do grupo escritor. Sem dúvida extremamente rico o
estilo, não de natureza barroca, mas de metáfora e fraseado pleno de alusões e
intelectualidades brilhantemente rebuscadas no seu contexto actual ou de
informação clássica, onde joga também a paráfrase. Não resisto, pois, a transcrever
o longo texto – “Segunda carta última”
– como indispensável remate para o reconhecimento de uma obra a que não falta a
dimensão épica – na intenção crítica, na multiplicidade das suas figuras e
peripécias e estilos de alusões e ambiguidades, e de autorias enigmáticas, de
muitas vozes narrativas, ao sabor dos considerandos. De cumplicidades, sem
dúvida, na sua mística específica de um jogo a três, original mas um tanto
perverso, na sua displicência, que não poupa a maternidade e a família. De
misoginia também, sem dúvida, e de anti conservadorismo burguês … Ou mesmo
revolta contra essa condição da mulher que o útero torna imprescindível para a
continuidade da espécie…
Uma Carta, em suma, de intenção política, que a par da defesa
dos valores democráticos, tem um sentido satírico de plena actualidade - o que
não obsta a um posicionamento por vezes brincalhão e caprichoso, entre as próprias escritoras, achando-se, sem dúvida, de uma inteligência superior, pioneiras num
mundo de criatividade feminina contestatária e desinibida, que parte de uma “Mariana”
sofredora, a qual se condena no seu narcisismo implorativo, para se alargar a
tantas outras figuras centrais nos seus destinos de melodramas variados e tão
comuns em todos os tempos. Uma amálgama caprichosa de planos e estilos e
obscuridades, que a existência de uma PIDE, na altura, ajuda, talvez, também, a
compreender, para além do engenho próprio.
Segunda Carta Última
Entreolhámo-nos
com muita cautela. Fizemos como quem num serão de convívio amigável, na sala
cheia, é convidado a fazer uma habilidade, a sua habilidade; a pessoa
ajeita-se, apura a garganta, compõe o fato e o gesto, vai começar, hesita, “não
é assim, não está bem”, compõe o cabelo, etc. Foi assim o começo, com
bilhetinhos e versos a ti e a mim. Um tonzinho setecentista para dar patine
mariânica, rebola a frase para um lado, rebola a frase para outro. E esta mania
de nos apodarmos de “meninas” (o certo é que o fomos, “oh menina, a mãezinha
está a chamar”, “se as meninas não se calam”, e que o somos com a nossa
menoridade jurídica. E sempre o narcisismo. Tu, mulher, olhando o seu corpo
como coisa distinta, como seu próprio objecto erótico, e não como seu eu
(porque toda a sobrevivência da cidade assenta nessa prática, do corpo se
retirou a mulher para que aquele possa ser usado e explorado sem resis-tência
pessoal, «eu? Eu não, eu adoro vestir-me, e o sexo é a mania dos homens» e
quando as mulheres se casam levam seu corpo de dote, com lençóis e guardanapos,
para uso diário e produção de filhos, e mulher e marido juntam as cabeças ao
serão olhando o corpo que cresce emprenhado, e porque o homem procura seu
útero, e porque no corpo da mulher se gera fruto dito do homem e da sociedade;
as mulheres regressam da sua longa hibernação sexual mas ainda não habitam seu
corpo, olham-no, falam dele como dum animal de muita estimação. Tu,
comprazendo-te numa certa «aventura de espírito», não do espírito mas com
espírito, no jogo de palavras.
Ah,
como vocês me foram insuportáveis, por vezes, ao longo destas páginas de
começo, e eu também, com a minha retórica pedante (eu entendo, tu entendes, ele
entende, todos entendemos a situação, ao princípio era o verbo, e cá ficamos à
espera do poder criador e actuante da palavra). Fartar-me de mim não é novo, já
estou habituada, farto-me à noite que a seguir adormeço e recomponho o amor
próprio. Fartar-me de vocês, enjoar-me foi o grande risco desta aventura.
Intimista, narcisista, ainda este contar-vos da minha amizade (comovida,
generosa, pois, etc., etc.) que superou a náusea das nossas apresentações) Não,
isto não é evangélico, pelo contrário. O outro vomitava os hipócritas e desde
aí (já antes) ficaram todos muito crentes em verdades límpidas, bem e mal, sim
e não, fronteiras, linhas maginots, sistemas totalitários e respectivas
oposições unificadas; então nos sistemas totalitários, quem pensa logo é intelectual,
e ainda nunca foi com a crença que se mexeram as montanhas, por isso veio o
outro e disse que se não vinha a montanha a ele ia ele à montanha, daí os
alpinistas mas também os arrivistas, e se grão a grão enche muita gente o papo
(e mais a galinha do campo que não quer capoeira, por aí fora, toda essa
sabedoria das nações), grão a grão também se pode arrasar o monte (com a
eternidade ainda no princípio) tudo está no definir de como ir à montanha, daí
os alpinistas mas também os arrivistas, e se grão a grão enche muita gente o
papo (e mais a galinha do campo que não quer capoeira, por aí fora, toda essa
sabedoria das nações), grão a grão também se pode arrasar o monte (com a
eternidade ainda no princípio), tudo está no definir de como ir à montanha, quem
come e quem cospe, e com bem e mal, sim ou não, quem pensa logo disjunta, tu ou
eu, quer quer, seja seja, fronteira aqui fronteira ali, tudo alternativas, aqui
não é ali, o bom sou eu o mal é o resto, logo todos se vomitam, e se uma
revolução saudável digere um «Paraíso» , um «paraíso mal amanhado ainda digere
muitos intelectuais todos vomitados. Porque o chão da revolução é: não comas o
teu irmão (que já não o vomitas); por isso os nossos vómitos foram secos e
passámos o risco.
Depois
o resto. A que brincou com as meninas, fez rodinhas e bolinhas de sabão, entra
a sério com um extravasamento místico do cavaleiro. E também o amor chão,
lavado e esfregado, simples como o sabão amarelo, da viúva branca. E nos
declara tão porreiras de companhia como rapazes. E que a morte da diferença, o
chão da revolução é o bom riso à flor da mão. Não é por te rires que te caem os
dentes, mas entretanto há desdentados. O chão da revolução não é a morte da
diferença, nem o bom riso está à flor da mão. O chão da revolução é a morte do
valor da diferença, de todas as diferenças e não só daquelas em que estás a
pensar; espero mesmo que “inteligente” deixe de ser um túmulo honorífico. O bom
riso à flor da mão, era bom era, mas há muita gente que ainda tem de aprender a
rir – projecto da revolução - - e à mão só há graças parvas. A morte da
diferença? Retire o “tão porreiras de companhia como os rapazes e não disfarce.
Talvez de amor ou de morte vos fale, disse a outra. De ambas as coisas;
escreveste: “ouve, minha irmã, o corpo. Que só o corpo nos leva até aos outros
e às palavras», «tu és fruto, Mariana, e produto e lento gemido de um sintoma
tão perdido e reencontrado, retornado sempre ao longo de uma magra história… é
medo, e medo ainda, sem qualquer segredo ou habilidade… que tudo de posse é
macho, Mariana, e ainda hoje… Brando queixume que te escapa, me ocupa, me
emprenha, me ultrapassa e mata… minha escrita… te fingi querer até ao vício». Quem
não se empanturra com a tua apresentação obsessiva, narcisista, - as longas
pernas, os seios, a vagina, irmã, como te explicar como te expões, objecto de
ti própria, à raiva de ti própria – quem não se enjoa, irmã, entende que te
respeita, foste a mais exposta e penso que ser exposta é mesmo ser verdadeira. E
os meus anátemas de sobrinhas e tias grandiloquentes, rebentos extemporâneos da
linhagem feminina – e o que nos resta senão sermos, todas, extemporâneas, sem o
chão da revolução, que ainda se come o irmão?
(e
pensei em escrever a carta de amor ao homem que há-de vir a ser, lembram-se? É
preciso curar o homem; dizer-lhe que nem o seu corpo é estéril, e nem só o falo
é criador; dizer-lhe que nem sempre é preciso erigir para criar, e que criar
primeiro para erigir depois pode deixar de ser um privilégio feminino. Muitas coisas,
mas não se sabe ainda como dizê-las.)
E
depois vieram as ramificações. Primeiro tu, continuando a tua «magra história».
Medo e medo ainda, sempre amor e morte, melodrama, muitos e desvairados
personagens chegam pela tua mão, todos uivando, sempre a mesma magra história,
o pai, a prostituta, a louca, a criada. Como imaginar o amor num mundo todo
torto? Mas como recusá-lo? Só com a morte. Tu, irmã, a da morte, a da carne, dizes
irmã, «só o corpo» e se nada podemos com ele que seja cadáver. E tu que te
ramificas no gozo da palavra escrita, ninho vinho, morte marte, ouve irmã não é
verdade, duas palavras que se juntam para soarem parecido não quer dizer que se
progrida, não quer dizer que o salto do amor, o da morte, para além, para o
sonho (o teu) seja garantido, nem com o menino que nos trazes, «anjo da
guarda», homem inocente velando pela harmonia dos sons. E eu, irmãs, quis falar
do cenário, das fronteiras, certo errado, fronteira aqui fronteira ali, quis
dizer que só se arrasam montanhas fazendo o cerco completo e que facilmente as
grandes causas são aquelas que nos tocam, e foi pobre: o cárcere, o corpo. Ouve,
irmã, o corpo; talvez esteja escrita a carta de amor ao homem que há-de vir a
ser.
(e pensei escrever outro texto, sobre o par
que faz amor, e depois sozinha em casa, curvada e meticulosa a mulher refaz a
cama desmanchada, compõe a dobra do lençol, curvada, paramenta o ninho, ou o
altar – vítima sacerdotisa? - enquanto o homem vai às suas ocupações «viris» -
usufruir apenas. Mas como ainda escrever mais sobre o que está, que é pouco,
não por quantidade, mas porque lhe faltou seguirmos o traço até ao fim, o
desenho todo das personagens e as suas raízes, podres ou não, e os seus
tentáculos, as suas ondas que se espalham a toda a volta, nos outros, nas
coisas, no passado, no futuro – o pai capaz de violar e banir a filha,
sossegado, onde se talhou, até onde vai chegar? Está de certeza na guerra, na
exploração, mas até onde irá, que novas guerras poderá ainda inventar? Nunca
poderíamos seguir o desenho todo das personagens, das situações até ao fim.)
Que
se faça um sino que se possa tocar. Com o corpo, o cadáver, do nem homem nem
menino, disseste. O que pensava em D. Sebastião, Zé Maria; Zé Maria também o
que tu pões em África, escrevendo ao amigo, o da noiva perdida. Três séculos de
intervalo não é nada, aí estão eles, as palavras juntam-nos, são os mesmos. Não
é só juntar as palavras, bem sei, irmã; bem sei que queres seguir o desenho
todo de tudo, não deve haver hiatos, o tecido deve ser unido e encorpado. Falas
então da universitária, do medíocre, do emigrante objecto de amor lavado e que
se estrangeira – o noivo também mas em parte incerta. Bem sei que queres seguir
o desenho todo, mas daquele onde pões suor teu, ao outro, à rendinha estilizada
de pilhas de palavras, não mostras a distância; e muito facilmente esqueces a
fome e quem a tem, para te interrogares sobre as eventuais compensações,
interstícios e motivos do esfomeado. «Reizinhos de tronos postos à venda»; a
contestação torna-se uma merda que se vende em cartazes. Das palavras fazes
jogos e cavalinhos. Autant en faire, puisque c’est toujours pareil, discurso recuperado em lixo? O tecido de mim
a ti, de nós aos outros, estará no silêncio, nos gestos brandos, no pulsar
subterrâneo, ou na acção? O que podem as palavras perguntei; resmas de papel de
meses, e o que podemos, o que fazemos? As palavras não substituem mas ajudam.
Enquadramento político ao problema da mulher, que enquanto o não tiver,
dissolve-se nas sopas de pacote e no «Como deitar-se bem com o seu marido». E
tu trazes mais gente à matança, mónica «me dou e nego»: mais qu’est-ce que
je vais faire?
(e projectei também resposta à Mariana
grávida, contente rotunda como o mundo – mas uma barriga redonda não é o mundo.
A justeza das coisas, o solinho a entrar pelo corpo… pois. Isso dá quando se
está cansado, e dura enquanto se está a descansar. Projectei resposta – e considero
urgente demonstrar a mística da gravidez – mas já estou cansada das palavras,
quando se insiste passamos a pô-las no lugar do acto.)
Pois
do princípio não gostei. E muito me apeteceu emendar, omitir, elaborar, retirar
os preciosismos do dito e da forma. Depois contive-me. O que é a literatura? E o
que é esta experiência de três? Talvez mais nada do que o espremer de um
furúnculo. Talvez mais nada do que o dizermos em alta voz – coragem? Necessidade?
– os mal-estares, os ataques, as recusas e os medos. Quem escreve, omite e
elabora, segundo as regras do tempo e do lugar, alinda o auto-retrato. Aqui e
agora, por exemplo, podem aparecer certas liberdades de linguagem, mas outras
não, os maneirismos aceites são uns quantos, e ser reaccionário é a desqualificação
sem recurso; somos todos escritores puros e limpos, ai, e de tão bons
sentimentos. Por isso não emendei, não omiti, etc. Que saia a nossa dialéctica
de mulheres-nascidas-e-criadas-na-burguesia-citadina-desta-sociedade-cujos-valores-bem-sabemos-e-simpatizantes-com-todas-as-classes-e-grupos-explorados-com-agudo-sentimento-de-pertença-ao
grupo-explorado-«mulheres», que esta nossa dialéctica retorcida se desenrole
entre nós e os outros, e não só intra-eus ou intra-nós.
Estarei
a sacudir a água do capote? O escritor que se desvenda pondo-se humilde e
sinceramente ao dispor da maledicência e da crítica, vejam, cidadãos quanto é simpático.
Preso por ter cão e preso por não ter, voltando, mais uma vez, à sabedoria das
nações; quem se venda, finge, quem se desvenda, vende-se; e acaba-se em
joguinhos de palavras, ó delícias da cultura (não é, mana?). e nesta carta,
neste fim, outra vez o tropeço inicial. O melhor foi a meio, quando estivemos
entretidas na conversa que até esquecemos eventuais espectadores. Impossível é
a sobrevivência nos meandros da reflexão auto-analítica; por isso disrompo,
disruptivamente, merda; estou farta.
(e ainda queria ter-vos dito, das margens de
areia que nos cercam, cada gesto que fazemos é como uma pedra na água, as ondas
vão e chegam ou não onde não podemos saber, e chegam mansas, bravas, tortas,
direitas; as margens de areia estão sempre prontas a desmoronar-se, a água empapa-se,
aí chafurdamos, «foi por bem, nunca fiz mal a ninguém» dizem os cidadãos
honestos irrepreensíveis, mas o bem só serve de crivo às intenções, à partida;
largado o gesto de nós, para os outros, tudo é questão de oportunidade.)
4/10/71
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